Juremir Machado da Silva

Um Doutor Honoris Causa nunca imaginado

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Um Doutor Honoris Causa nunca imaginado Recebendo o diploma das mãos da presidente da UPVM3, Anne Fraïsse, e do professor Philippe Joron | Foto: Ana Rodrigues

Ao receber o título de Doutor Honoris Causa na quinta-feira, 14 de setembro, na Universidade Paul Valéry, Montpellier 3, na França, pronunciei o discurso que segue. Ouso publicá-lo aqui para dividir com meus leitores essa homenagem que me emocionou e que ficará para sempre como uma dessas alegrias que a gente experimenta poucas vezes ao longo de uma vida.

*

Senhor reitor de Ensino Superior, Investigação e Inovação na região acadêmica da Occitânia, Khaled Bouabdallah.

Sr. Vice-Presidente-adjunto de Cultura de Montpellier Metrópole, Eric Penso.

Senhora secretária da Igualdade e dos Direitos da Mulher, Fatma Nakib.

Senhora presidente da Universidade Paul-Valéry, Montpellier 3, Anne Fraïsse.

Senhoras e Senhores vice-presidentes da UPM3, Patrice Sébauld, Antoine Coppolani, Sarah Hatchuel, Nathalie Vienne-Guerrin, Isabelle Lunay e Fabrice Hirsch.

Senhora decana da Faculdade de Ciências do Sujeito e da Sociedade, UFR 5, Arielle Syssau-Vacarella

Senhora decana da Escola de Comunicações, Artes e Design da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Rosângela Florczak

Senhor professor Philippe Joron, diretor do Laboratório LEIRIS, responsável pelo acordo de cooperação UPVM3-PUCRS,

Meu orientador de tese, professor e amigo, Michel Maffesoli.

Mesa composta para entrega do DHC

Eis-me aqui. Começo assim por nunca ter imaginado tal honraria para alguém que nasceu no Brasil mais profundo, nos confins da pampa, na distante fronteira com o Uruguai, terra de gaúchos, de sonhadores e de vaqueanos, os conhecedores do caminho, como meu pai e meus avós. O que sonho chegar a ser. Uma biblioteca na campanha, numa chácara aos cuidados do meu pai, me fez descobrir muito cedo a literatura francesa.

Adolescente, nos longos invernos do fim do mundo, eu lia Balzac, Flaubert, Dumas e Stendhal. Não por virtude. Simplesmente por falta de outras distrações quando o Minuano, vento cortante vindo da Patagônia, soprava. E assim sonhei que um dia eu moraria na França. Às vezes, eu me via como Julien Sorel, de “O vermelho e o negro”, ou Rastignac, de Balzac. Chegava a dizer: “Agora é entre nós dois, Paris”.

Quando vi, fazia doutorado com Michel Maffesoli, na Sorbonne, Paris V, autor capital que descobri numa manhã de verão de 1984, recém-formado em jornalismo e em história, em Porto Alegre, ao me deparar com seu livro “A conquista do presente”.

Com Michel Maffesoli

Li os primeiros parágrafos e tive certeza de que nunca mais seria o mesmo. Eu estudava o passado, desconfiava do futuro e só acreditava na potência do atual e do cotidiano. Michel Maffesoli mudou para sempre a minha vida. Eu lhe agradeço. A “conquista do presente” me deu um futuro.

E assim, jovem jornalista e historiador, vi-me instalado em Paris como doutorando em sociologia e depois também correspondente de jornal brasileiro. Passamos então a andar pela Europa: de ônibus, de avião, de trem, até, onde era possível, de navio, cobrindo festivais de cinema, Cannes, Berlim, Veneza, salões de livro, como em Frankfurt, esportes e um pouco de política, entrevistando cineastas, escritores, intelectuais, gente de todos os horizontes ideológicos, fazendo amigos, aprendendo, conhecendo pessoas, abrindo os olhos. Na Sorbonne, fiz amigos para sempre como Bertrand, Olivier, Jean-Serge, Federico, André Lemos e tantos outros.

Certo dia, na sala Louis Lliard, repleta de amigos, na Sorbonne, vi-me diante da banca de tese composta por Michel Maffesoli, Jean Duvignaud e Edgar Morin. Na plateia, o impressionante Jean Baudrillard.

De volta ao Brasil, como professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, entendi que era hora de estreitar laços de colaboração internacional com os amigos franceses. Algum tempo se passaria e o melhor vínculo se estabeleceria com Paris V e depois com Montpellier 3.

Começava com Philippe Joron, Patrick Tacussel e Martine Xiberras uma relação que integraria sempre mais meus colegas brasileiros e o corpo docente do departamento de sociologia de Montpellier 3, até chegar nesses grandes parceiros que são Vincenzo Susca e Fabio La Rocca, passando pelo generoso e gentil Jean-Bruno Renard, por Michel Moatti, Denis Fleurdorge, Hélène Houdayer, Marianne Celka, Bertrand Vidal…

Com colegas brasileiros e de Montpellier

Em mais de vinte anos de ações comuns, fizemos o que deve ser feito numa parceria internacional: intercâmbio de estudantes e professores, publicações conjuntas, organização e participação em seminários, colóquios e congressos, bancas de teses, cotutelas com dupla diplomação, etc.

Trabalhamos muito e colhemos frutos. Recebemos em Porto Alegre os nossos parceiros de Montpellier para cursos que mudaram a vida de nossos estudantes, que continuam a vir para cá em doutorado sanduíche ou pós-doutorado. Fomos recebidos em Montpellier como visitantes anuais, o que nos fez viver experiências inesquecíveis no campo do conhecimento e da vida. Ao longo desses anos de vida universitária e jornalística, tive a alegria de conhecer pessoas que me ensinaram o quanto pude aprender, em especial Edgar Morin, Michel Maffesoli e Jean Baudrillard. Ajudando a organizar eventos no Brasil, intermediei mais de cem viagens de franceses ao nosso país.

Fiz amigos, entre eles Michel Houellebecq, cuja literatura eu introduzi no Brasil, tendo traduzido “Extensão do domínio da luta” e “Partículas elementares”. Michel Houellebecq foi duas vezes a Porto Alegre e com ele fizemos uma viagem a Buenos Aires e à Patagônia.

As palavras de Michel lidas aqui, antes da minha fala, me tocaram profundamente. Esta é uma amizade que já tem mais de um quarto de século.

Na minha paixão pela cultura e pelo pensamento franceses, traduzi quatro dos seis volumes de “O método”, de Edgar Morin, para o Brasil, e fiz publicar os dois outros. Sinto a cada dia a força dessas ideias agindo em mim. Traduzi também de Charles Baudelaire a Yves Simon, Claude Simon, Alain Robbe-Grillet, de quem me orgulho de ter sido amigo, Pierre Michon, Dominique Wolton, Pierre Lévy, Lucien Sfez, Gilles Lipovetsky…

Foram 26 traduções de livros e incontáveis artigos.

Dias felizes de aprendizagem.

Lembro-me de muitas partes desse percurso. Por exemplo, de viagens com Edgar Morin e Michel Maffesoli à Amazônia. Não esqueço tampouco de todas as atividades e encontros com os parceiros de Montpellier, que concentro na figura amável, culta e incansável de Philippe Joron, com que não me canso de aprender sobre Georges Bataille.

Com Michel Maffesoli e Gilbert Durand descobri o imaginário.

Com Michel, encontrei ainda a sociologia compreensiva. O imaginário nos dá a possibilidade de ir além das ideologias, estudando as emoções, os sentimentos, os laços sociais, sem racionalizá-los, mas sem cair no obscurantismo e na negação da razão.

Com Morin, aprendi sobre a complexidade, a importância do acaso, do erro, da incerteza e da arte nas ciências humanas, princípios que uso até em minhas análises do futebol para desespero dos positivistas esportivos do Brasil.

Certa época, queria entrevistar todo mundo. Fiz centenas de entrevistas. Permito-me contar uma anedota. Houve um tempo em que marcava entrevistas com pensadores e eles morriam. Foi assim com Félix Guattari, Gilles Deleuze e Jean-François Lyotard. Pensei que devia parar pelo bem da filosofia francesa. Lyotard morreu no dia mesmo de nosso encontro. Chegamos a ir à casa dele. A esposa dele teve a delicadeza de me telefonar para justificar o acontecido. Aprendi um pouco mais responsabilidades.

Claro, isso ocorreu em anos diferentes, mas não esqueci.

De Montpellier guardo a luminosidade quase permanente do sol, os passeios por lugares impressionantes não tão longe como Saint-Guilhem-le-désert e Aigues Mortes. Guardo sobretudo as trocas intelectuais e afetivas com os colegas de Paul-Valéry 3.

Entendo esta honraria como uma homenagem ao professor universitário empenhado em realizar intercâmbios efetivos, ajudar estudantes a ter experiências internacionais, lançar pontes para as trocas entre pesquisadores, facilitar publicações, estimular pesquisas compartilhadas.

Em Philippe Joron, a quem chamo de vaqueano desde muito tempo, encontrei o parceiro ideal para isso.

Vejo essa enorme distinção também como um estímulo ao tradutor, ao entrevistador, ao passador de culturas.

Tenho sido um combatente das causas culturais, não me furtando às inevitáveis polêmicas que aparecem no caminho de quem se expõe, mas acima de tudo me vejo, para usar as imagens de Simmel, como porta e ponte, modestamente, muito modestamente, abrindo frestas e fixando passagens singelas, mas resistentes, para que a aventura do conhecimento banhe de alegria os companheiros de viagem.

Nos últimos três anos, tive covid duas vezes, com duas hospitalizações, e enfrentei a perseguição do bolsonarismo no Brasil, essa ideologia de extrema direita, inimiga da ciência e do saber, o que me custou a demissão do programa de rádio que eu apresentava havia dez anos numa importante emissora do Rio Grande do Sul, e a demissão do jornal onde mantinha uma crônica havia 22 anos.

Na vida de um jornalista, cair é do jogo. O importante é nunca trair a própria consciência. Tomo esta homenagem como um incentivo à resistência diante dos que censura, dos que conspiram contra a democracia e dos que não toleram a diversidade de opiniões, o pluralismo e o politeísmo de valores.

Coordenador novamente do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Escola de Artes, Design e Comunicação da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, um dos seis melhores do Brasil pelo trabalho de colegas como Cristiane Freitas e Cleusa Scroferneker aqui presentes, ouso afirmar que nos tornamos melhores graças aos ensinamentos dos nossos parceiros de Montpellier ao longo do tempo. Quero agradecer profundamente à decana de nossa escola, Rosângela Florczak, que me muito me honra com sua presença neste evento tão importante na minha carreira de professor universitário.

Colegas de PUCRS Cristiane Freitas e Cleusa Scroferneker e decana da Famecos Rosângela Florczak

A França tem me dado muito: um doutorado em sociologia, uma experiência de vida, amigos em profusão, três livros publicados em francês, dezenas de artigos em revistas de grande qualidade como Sociétés. Fez-me também “Chevalier des Palmes Académiques” do Ministério da Educação. E agora me faz Doutor Honoris Causa da Universidade Montpellier 3, o que nem em sonhos fui capaz de sonhar. Só posso terminar dizendo: obrigado, eu não merecia tanto. Guardarei este ato como um dos mais felizes da minha vida.

Vou realmente terminar citando o maior compositor filosófico da minha geração, Belchior, que disse em uma de suas canções mais famosas:

“Eu sou apenas um rapaz latino-americano
Sem dinheiro no banco sem parentes importantes
E vindo do interior

Mas trago de cabeça uma canção do rádio
Em que um antigo compositor baiano me dizia
Tudo é divino tudo é maravilhoso.”

Talvez devêssemos, no meu caso, trocar rapaz por velho senhor.

Mas isso não é uma certeza.

Foto final para a lembrança de todos

Fotos: Ana Rodrigues

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