Juremir Machado da Silva

Um grande romance dos últimos anos

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Um grande romance dos últimos anos Reprodução

Num arroubo, direi: o melhor romance publicado no Brasil nos últimos dois anos tem o selo da L&PM: O mistério de Henri Pick, do francês David Foenkinos. Por que é o melhor? Eis a questão. Porque ironiza formidavelmente o mundo editorial atual e seus truques. Falar disso exige uma digressão. Durante muito tempo, depois de Marcel Proust, se considerou que, nascida a obra, morria o autor. Também se elevou ao ápice a primazia da forma (texto) sobre o conteúdo”. Triunfo absoluto de James Joyce e de Guimarães Rosa contra os textos límpidos.

Nesse sentido, há quem diga que Michel Houellebecq é um sociólogo, não um escritor. Quando ele publicou Plataforma, sofreu com o trocadilho óbvio: forma rasa. Mas Houellebecq é da cepa de Machado de Assis: ironia e texto cristalino. Por ironia, Machado de Assis, o maior escritor brasileiro de todos os tempos, não se impõe como parâmetro literário no Brasil de hoje. Para ganhar prêmio, em geral, precisa de texto barroco. Se não tornear a frase, não é literatura. A régua é o estilo Carla Madeira. Todos podem ser maravilhosos. Só um é realmente aceito. Machado de Assis ironizava o “estilo antitético e asmático”: “O cão ia. A lata saltava como os guizos do arlequim”. É o padrão dominante na literatura fashion Flip.

Algo, contudo, mudou no mundo e ainda não foi compreendido pela crítica. O texto e o conteúdo perdem espaço para o contexto. Por exemplo, na literatura de lugar de fala. O que conta é quem conta. Acho ótimo. Sou fã. O bastião moderno, do escritor cientista neutro e distanciado, toma um tranco. E choraminga nos cantos. Contradições aparecem no lado oposto. Pede-se valorização do contexto antes do julgamento e comemora-se depois a vitória da forma pura. Rola isso.

Foenkinos conta a história de uma jovem editora francesa que descobre uma obra-prima numa estranha biblioteca dos originais recusados. Além do mais, a obra é assinada por Henri Pick, um homem comum que passou a vida fazendo pizzas. Quando escreveu esse livro sem que nem a sua esposa soubesse dessa sua aptidão? Por que não tentou publicá-lo? Uma engrenagem midiática se põe em marcha. A publicação do livro a partir do seu contexto – escrito por um homem banal, numa pizzaria, encontrado no lixão dos manuscritos desprezados – gera um encantamento midiático incrível. As vendas tocam os 300 mil exemplares. Sucesso absoluto. Um crítico literário desempregado fareja a farsa e decide investigar quem escreveu o livro do momento.

Em determinado instante, o narrador diz, enquanto fala de Michel Houellebecq: “Ele entrou antes de todo mundo numa nova era. O texto já não tem importância. O que conta é passar uma ideia potente e única. Uma ideia que dê o que falar”. Resolvido o mistério, o narrador insiste que é a vitória da forma sobre o conteúdo. Forma remete a texto. É o triunfo do contexto sobre a forma e o conteúdo. No caso, um case de marketing. Enquanto os modernos se apegam a um modelo datado de contar histórias, os pós-modernos navegam no contexto que faz querer ler tais histórias. Como tudo tem um precursor, Nietzsche para a pós-modernidade filosófica, salvo se foi Platão, que tal Kafka para a literatura pós-moderna? Em A metamorfose o que conta mesmo é a sacada: acordar inseto. O resto pode ser visto como “remplissage”.

O mistério de Henri Pick talvez seja ignorado pelos críticos literários brasileiros. Afinal, avisa que eles estão superados.

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