Juremir Machado da Silva

Um pensador no supermercado

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Um pensador no supermercado Foto: Reprodução/Archives de la Ville de Saint-Dié-des-Vosges

Morreu na semana passado o sociólogo francês Alain Touraine, aos 97 anos de idade. Ele ficou conhecido no Brasil como amigo do presidente Fernando Henrique Cardoso. Especialista em movimentos sociais, foi mestre do meu amigo Dominique Wolton. A primeira vez que o vi pessoalmente foi num auditório da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais (EHESS), em Paris. Ela falava naquele dia sobre movimentos sociais na América Latina. A segunda vez que o vi em cena foi na defesa de tese de doutorado de Estado, uma espécie de super-doutorado, de Patrick Tacussel, professor na Universidade de Montpellier, orientando de Michel Maffesoli. E assim foi, academicamente falando, durante algum tempo. Encontros muito formais.

Então, certa tarde, bati com ele entre as gôndolas do supermercado Inno, em Montparnasse, na capital francesa. O Inno era um grande supermercado de frente para a Gare Montparnasse, uma das maiores estações de metrô e trens de Paris. Confesso que logo olhei para a cestinha de metal que Touraine carregava. Estava sozinho e não parecia disposto a fazer muitas compras. Havia uma garrafa de vinho tinto e um queijo tipo Comté na sua cesta. Gostei daquilo. O Comté, queijo bem limpinho, sempre foi o meu preferido entre os famosos mais de 300 queijos franceses. Hesitei um pouco. Sempre achei chato importunar celebridades em público. Não resisti, porém, à tentação de falar com aquele homem intelectualmente tão poderoso. Respirei fundo e fui em direção a ele com a frase pronta:

– Não imaginava encontrar o senhor aqui.

– Por que não? Um professor também faz compras – ele respondeu.

Tratei de me apresentar. Disse-lhe que era doutorando em sociologia na Sorbonne e jornalista, correspondente de Zero Hora na Europa.

– Duas atividades importantes e difíceis – ele observou.

Então eu lhe perguntei sobre o Brasil de FHC, pois estava louco para ouvir dele mesmo o que pensava sobre Fernando Henrique, e ele me respondeu com ênfase, como se não lhe incomodasse falar entre gôndolas e carrinhos:

– O Brasil não pode perder essa oportunidade.

Não me lembro quantas vezes tornamos a esbarrar um no outro no subsolo do Inno. Às vezes, quando eu o avistava de longe, tratava – por certo pudor, creio que essa é a melhor palavra – de me perder noutro corredor para não o incomodar. Gostava de ver aquele homem já de cabelos brancos escolhendo suas coisas com ar meditativo. Não conseguia imaginar seu amigo FHC, mesmo antes da presidência do Brasil, em meio às gôndolas de um supermercado. Na última vez que vi Touraine no super, naqueles agora longínquos anos 1990, conversamos um pouco sobre a França pós-Mitterrand. A cada vez eu me apresentava para não lhe dar o trabalho de se lembrar de mim. Numa dessas vezes, ele não evitou a suave e gentil ironia:

– O senhor sempre se apresenta mais de uma vez para todo mundo?

Edgar Morin, prestes a completar 102 anos de idade, chorou, em postagem no twitter, a morte do amigo: “Lamento por Alain Touraine, companheiro de 70 anos de vida, grande e perspicaz sociólogo dos movimentos sociais, que introduziu a subjetividade humana numa ciência que a ignorava. Ele era um espírito nobre, leal e grande, orgulho do pensamento francês”. E ainda: “Que amizade, que fidelidade por 70 anos, que lealdade, que generosidade, que grande obra, que nobreza de caráter”.

Como esquecer aqueles encontros simpáticos com um grande intelectual no ambiente comezinho de um supermercado com a sua aura de não-lugar?

Merci, Alain Touraine.

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