Juremir Machado da Silva

Uma temporada na tristeza

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Uma temporada na tristeza Largo da Rodoviária/Fotos de Luis Gomes e Juremir Machado da Silva

Domingo pela manhã, céu brutalmente cinza, vez ou outra, um chuvisco. Saímos, Luís Gomes e eu, da frente do Hospital de Clínicas rumo ao ponto mais próximo possível da rodoviária da capital gaúcha. Avançamos pela avenida Osvaldo Aranha, suja, encharcada, deserta, tristonha. Subimos a Barros Cassal, mais sóbria. Chegamos à pracinha em frente ao Colégio Rosário, onde pessoas faziam fila para pegar água no grande distribuidor azul instalado pela prefeitura municipal.

Distribuidor de água

Atravessamos a Independência, descemos a escadaria ao lado da Beneficência Portuguesa. Dali em diante começamos a ver as cenas da inundação. O largo da rodoviária, com suas elevadas, continua alagado. Havia algo entre melancólico e chocante em cada imagem já banalizada.

Moradores em situação de rua agrupavam-se na calçada entre a Avenida Farrapos e a Alberto Bins. Estavam no território que costumam ocupar. Só faltava tudo o mais que compõe aquele cenário. Mais de uma semana depois do grande temporal, um barquinho a remo avançava lentamente pelo “canal” Voluntários da Pátria, paralelo aos “rios” Júlio de Castilhos Mauá, como se fizesse parte de uma paisagem fluvial pacata num dia das Mães de recolhimento doméstico. Do outro lado do muro, bem mais alto, com seus seis metros, as águas do Guaíba pareciam emparelhadas com a “laguna” da Conceição.

Voluntários da Pátria

Seguimos caminhando pela estreita aba de pedestres da elevada sem trânsito de carros, na pista que normalmente leva do bairro ao centro. Água por todos lados. No outro lado, na pista que conduz em tempos normais do centro ao bairro, avistava-se a alta sobrepista construída como caminho de emergência, corredor humanitário, via de abastecimento, entrada e saída de socorro. Um bloco de um metro de altura acima da linha da água.

Sobrepista ou caminho humanitário

Ficamos ali, estupefatos, contemplando o rio, as antigas ruas, as águas marrons, as poucas pessoas em lugares secos, a solidão de um local outrora fervilhante, os velhos prédios, a loja Tumelero, a rodoviária, ao fundo, ilhada, inacessível, tão próxima e tão distante, à frente da qual boiava muito lixo, e o movimento de veículos no corredor humanitário, no modelo pare e siga, ora do bairro para a saída da cidade, ora da entrada de Porto Alegre para a Sarmento Leite, Osvaldo Aranha e bairros.

Caminhão de reabastecimento

Carros da polícia, da Brigada Militar e caminhões carregados num sentido. No outro, que leva à avenida Castelo Branco, camionetes puxando jet-skys escoltadas por viaturas oficiais.

Um velho jornalista perplexo

De repente, a sensação: falta alguma coisa, claro: um pedaço da antiga e conhecida passarela da rodoviária. Ela foi cortada no meio, como quem rasga um rosto com uma lâmina, para a passagem dos caminhões sobre o piso agora mais elevado. É como olhar um cartão postal sem a figura central da imagem. Fizemos fotos e vídeos. Nunca se é mais informado do que pelos próprios olhos.

Trecho feito em urgência

A televisão mostra a objetividade das cenas. Só o próprio olhar captura o essencial, a subjetividade que se esconde à flor das águas. Quatro décadas e meia vendo aquele espaço quase todo dia de um jeito e subitamente ele é outro, desfigurado, desafiando a constância das imagens e dos afetos.

Vista da velha rodoviária

Na volta, choveu como se estivesse faltando água dos céus.

Tambor tribal (Melo e os culpados)

Políticos gostam de dizer, na hora do aperto, especialmente quando não fizeram o prévio dever de casa, que não é hora de apontar culpas. Mas o prefeito de Porto Alegre, Sebastião Melo, apontou os seus em entrevista a William Bonner, no Jornal Nacional: as vítimas. Para Melo os culpados são os pobres que “nunca deveriam morar onde moram”. Só que a água desabrigou gente em bairros com Cidade Baixa, Menino Deus, Centro, Navegantes, Sarandi e outros. Sem contar que o próprio prefeito é entusiasta de um condomínio de luxo quase dentro do Guaíba, nas imediações da alagada rodoviária de Porto Alegre. O ambientalista Beto Moesch lembra que a própria Orla do Guaíba tem construções a menos de 30 metros da água, o máximo permitido para um providencial lago. No caso de um incômodo rio são 600 metros. As declarações de Melo chocaram muita gente e bombaram as redes sociais.

Parêntese da semana

O editorial da Parêntese #225, assinado por Fischer, põe o dedo no ponto de onde a água jorra: dos culpados aos falsos heróis, passando pelas vítimas, a população gaúcha, até nos oportunistas, que nunca faltam.

Frase do Noites

O iluminista ora sem luz, ora sem internet e sem água, mas com a firme decisão de não arredar pé, reflete sobre gestores públicos: “Quem não prevê fica obrigado a prover quando o desastre acontece. Melhor ser previdente do que ter de tomar providências tarde demais”.

Imagens e imaginários

No Pensando Bem, que vai ar todo sábado, 9 horas, na FM Cultura, 107,7, em parceria com a Matinal, a revista Parêntese e a Cubo Play, e apoio da Adufrgs Sindical, Nando Gross e eu entrevistamos os ambientalistas Beto Moesch e Francisco Milanez. Uma conversa direta e consistente sobre as razões profundas da tragédia das águas no RS.

Escuta essa

Felicidade foi-se embora
E a saudade no meu peito ainda mora…

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