Nanni Rios, colunista
Nanni Rios

Muito barulho por nada

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Muito barulho por nada Um vulcão próximo à cidade de Grindavík, na Islândia, despertou na última segunda, após vários terremotos | Foto: Viken Kantarci/AFP

A escritora sul-africana Deborah Levy escreveu o livro Coisas que não quero saber, publicado no Brasil em 2017, por ocasião de sua participação na Flip naquele ano. O texto foi encomenda de uma pequena editora londrina e a proposta era fazer um contraponto ensaístico a algum texto clássico. Ela escolheu o célebre artigo Por que escrevo, de George Orwell, publicado pela primeira vez na revista inglesa Gangrel, em 1946.

Para começo de conversa, o texto de Levy, diferente do artigo de Orwell, é aberto e sem respostas, como uma grande reflexão cheia de elementos e inputs biográficos que cada leitora pode vestir como bem entender, como aquelas camisas de botão que, a depender da amarração e da criatividade, vira vestido ou saia, sabe?

O título do texto de Orwell é Por que escrevo, sem interrogação, porque não parece mesmo haver dúvidas. Escrever, para ele, é uma certeza. “Desde muito pequeno, talvez com cinco ou seis anos de idade, eu sabia que devia ser escritor quando crescesse” é a primeira frase do texto. E isso engancha (e dói) em algum lugar, né, gurias? Porque o que a gente quer ser quando crescer esbarra, não raro, no que a gente pode ou não pode ser. Isso sem contar todas as pinceladas de raça e classe que se somam nessa paisagem. Mas o recorte de gênero dessa primeira memória de Orwell salta aos olhos.

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A Fuvest, entidade responsável pelo vestibular da USP, apresentou no mês passado a lista de leituras obrigatórias para a prova de literatura dos próximos anos: de 2026 a 2029, os postulantes a uma vaga numa das universidades públicas mais importantes do país vão ler apenas autoras mulheres. Clarice Lispector, Conceição Evaristo, Djaimilia Pereira de Almeida, Julia Lopes de Almeida, Lygia Fagundes Telles, Narcisa Amália, Nísia Floresta, Paulina Chiziane, Rachel de Queiroz e Sophia de Mello Breyner Andresen são as escolhidas.

Lembro que estava na Flip, no mês passado, em Paraty, quando saiu a notícia. Boa parte da vida literária brasileira (ao menos a parte que mais movimenta grana) estava lá, bem representada. Muita gente celebrou e o feito foi mencionado em alguns eventos. Mas tinha também muita gente quieta. Ou falava-se bem ou não se falava. Não presenciei ninguém contrariado. E isso era um pouco preocupante.

Passou a Flip e a Folha de S. Paulo voltou ao assunto, faz uns dias, dizendo que as opiniões contrárias àquela decisão da Fuvest estavam silenciadas pela ameaça de cancelamento. Essa era a notícia. Segundo a Folha, as opiniões contrárias existiam, mas não eram públicas (e nem seriam publicadas ali), porque as pessoas falavam somente em off. Olha, eu me formei em Jornalismo e aprendi que isso não é um jeito honesto de dizer algo, muito menos se você é um jornal.

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Eu nunca cheguei perto de um vulcão, mas a sensação com a qual convivemos esses anos todos de emergência de novas vozes (de mulheres, pessoas pretas e/ou LGBTQIAP+ etc) era a de dividir a vida, a rotina e até a paisagem com um vulcão adormecido que, a qualquer momento, poderia irromper a crosta e cuspir lava para todo lado. E é interessante lembrar: a crosta que barra a erupção da lava quente é formada por material do próprio vulcão, só que sedimentado, endurecido, rijo, parado ali há anos.

Também não sou geóloga ou especialista em fenômenos geológicos naturais, mas gosto de metáforas: não se sabe exatamente quando um vulcão entrará em erupção, mas ele dá muitos sinais, pequenos abalos, terremotos, veias saltadas, essas coisas. Tudo muito silencioso.

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No artigo de Orwell, ele conta fatos biográficos que o levaram a ser escritor – na sequência daquela epifania que tivera aos cinco ou seis anos – e encena uma falsa modéstia ao justificar aquelas páginas e páginas de informações pessoais: “Forneço aqui esses antecedentes todos porque não acho possível avaliar os motivos de um escritor sem conhecer alguma coisa do seu desenvolvimento inicial”. Uma lista de feitos extraordinários que imprime o tom melindrado de um delírio insustentável no texto.

Feito o longo preâmbulo, ele chega aos quatro motivos que levam um homem a ser escritor: 1) puro egoísmo; 2) entusiasmo estético; 3) impulso histórico; 4) proposta política.

Levy comenta: “Quando Orwell descreveu o puro egoísmo como qualidade obrigatória aos escritores, talvez não estivesse pensando no puro egoísmo das escritoras. Até a mais arrogante das escritoras precisa se empenhar muito para construir um ego robusto o bastante para conseguir atravessar o mês de janeiro, tanto mais para chegar até dezembro.” E mais além: “É exaustivo aprender a se tornar sujeito, é bastante difícil aprender a ser escritora.”

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Antonio Prata, ganhador do prêmio Jabuti 2023 na categoria Crônica, publicou em seu espaço cativo semanal na Folha um texto intitulado Contra a gravidade patriarcal? – que o cache do Google (uma espécie de memória recente do buscador que, às vezes, demora a absorver atualizações) ainda me mostra aqui com um título anterior: Veto a livro de homens na Fuvest é burrismo institucional.

Tão grotesco quanto o título alterado é o argumento:

“O mundo é machista. O machismo, excluindo metade da população mundial do acesso ao estudo e ao debate na esfera pública, fez com que as maiores obras na literatura, nas artes e nas ciências, nos últimos milênios, tenham vindo de homens. Isto não é uma opinião, é um fato. As mulheres estavam oprimidas e caladas. Achar que pra cada Sócrates, Platão ou Aristóteles, para cada Hobbes, Rousseau e Locke, para cada Machado, Graciliano ou Rosa, existam obras equivalentes femininas até hoje ocultas, que brotarão ao se excluir as obras masculinas, é negar a existência e a eficácia do machismo.”

E segue, irritadíssimo:

“É fundamental incluir mais vozes de mulheres, negros e outras ‘minorias’ na conversa. Mas ninguém, em bom juízo, vai jogar fora a teoria da relatividade porque Einstein era um homem branco, hétero, cis e alemão –pelo menos, era o que eu pensava, até essa patacoada da Fuvest, de excluir autores homens de sua lista literária.”

Eu não sei vocês, mas eu só consigo ler isso aqui sendo dito aos berros. Se Antonio Prata fosse uma mulher dizendo isso em alto e bom som e nesse tom, alguém a interromperia para oferecer-lhe um copo d’água, sugerindo que ela deveria se acalmar.

O ruído é tanto e tão estridente (ainda que muitíssimo pontual, porque nem dá pra dizer que a polêmica viralizou para além de um – Marcelo Rubens Paiva – ou outro – Wilson Gomes – apoio) que ele mesmo parece não se ouvir.

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Deborah Levy tinha cinco anos de idade em 1964, quando seu pai foi preso na África do Sul por lutar contra o apartheid. A mãe dizia que ele ia voltar. E todo o resto era silêncio e ausência. Ela não podia falar, por exemplo, sobre por que o pai foi preso, não podia dizer a ninguém que tinha uma amiguinha negra, também não podia mencionar seu sobrenome de origem judia. Diante de tantas proibições, a voz de Levy vai sumindo a ponto de ela se tornar uma garota extremamente retraída. Em 1968, o pai regressa e a família emigra para Inglaterra. E lá tampouco se podia falar sobre o que tinha acontecido.

“Na escola, quando tentava falar, fazia um esforço enorme para minhas palavras saírem alto. O volume da minha voz tinha abaixado, e eu não sabia como aumentá-lo. O dia inteiro me pediam para repetir o que eu tinha acabado de dizer, e eu tentava, mas repetir as coisas não as tornava mais altas. ‘Você é muda?’.”

No teatro, ela aprendeu com uma diretora polonesa que “projetar a voz não tem a ver com falar mais alto, mas com se sentir no direito de exprimir um desejo. A gente sempre hesita quando deseja alguma coisa. (…) A hesitação é diferente da pausa. É uma tentativa de barrar o desejo. Mas quando você está pronta para agarrar esse desejo e colocá-lo em palavras, você pode sussurrar que a plateia inteira vai ouvir”.

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Já que não temos aqui na Matinal o Toledo com dados da Arquimedes para as polêmicas do X/Twitter, trouxe esse breve apanhado estatístico das listas de leituras da Fuvest, compilado pela pesquisadora Jana Viscardi em seu blog, mas que qualquer um, inclusive o Antonio Prata, poderia ter feito e escrito uma crônica estridente por ano:

2018 – 9 livros, 8 homens, 1 mulher
2019 – 9 livros, 8 homens, 1 mulher
2020 – 9 livros, 8 homens, 1 mulher
2021 – 9 livros, 8 homens, 1 mulher
2022 – 9 livros: 8 homens, 1 mulher
2023 – 9 livros, 8 homens, 1 mulher
2024 – 9 livros, 8 homens, 1 mulher
2025 – 9 livros, 7 homens, 2 mulheres
2026 – 9 livros, 8 homens, 1 mulher
2027 – 9 livros, 9 mulheres

Lembrei de uma vez em que um querido amigo – homem, branco, cis, hetero, empresário e muito bem intencionado, sócio de outros dois homens brancos, cis, heteros – queria deixar sua equipe mais diversa (com mais mulheres e pessoas pretas) e me perguntou como fazer isso. Eu disse o óbvio: vá em busca dessas pessoas, elas existem. Ele pensou por uns instantes e me confessou sua mais íntima preocupação naquele momento: se eu contratar uma pessoa preta, quando eu for demiti-la não serei acusado de racismo?

De boas intenções, o inferno está cheio. E a gente cansou de explicar o óbvio.

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Para finalizar, eu não podia deixar de mencionar que a lista da Fuvest que traz nove autoras mulheres entre os nove livros obrigatórios é revolucionária até a página dois. Ainda há muito a se diversificar nessa lista de leituras, considerando o debate interseccional na literatura, sem qualquer prejuízo à sua qualidade.

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