Nanni Rios, colunista
Nanni Rios

Os prêmios

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Os prêmios Stênio Gardel ganhou o National Book Award com "A palavra que resta" | Reprodução/National Book Foundation

Quando o livro A palavra que resta do escritor cearense Stênio Gardel ganhou o prestigioso National Book Award em novembro deste ano, o autor fez um discurso emocionado na cerimônia de premiação, nos Estados Unidos. Um trecho da fala de agradecimento diz o seguinte:

“Crescendo como um garoto gay no sertão do Nordeste brasileiro, era impossível para mim pensar em sonhar com tamanha honra, mas por estar aqui esta noite, como um homem gay, recebendo essa honraria pelo livro sobre a jornada de outro homem gay se aceitando, eu gostaria de dizer a todas as pessoas que já se sentiram erradas a respeito de si mesmas, que o coração e o desejo de vocês são reais, e vocês são merecedores, como todos os outros, de uma vida plena e de alcançar sonhos impossíveis.”

O livro conta a história de Raimundo, um homem que aprende a ler aos 70 anos para descobrir o que diz uma carta que o assombrou a vida toda. O autor da tal carta é Cícero, rapaz que ele amava às escondidas na adolescência e que o deixou após o relacionamento ser descoberto pela comunidade onde moravam. Aquele documento íntimo traz à tona memórias intensas, que ele divide com a gente: o primeiro amor, a vivência empobrecida no sertão do Nordeste brasileiro, a criação analfabeta e a vida que Raimundo criou para si após sair de lá.

Ler A palavra que resta é acessar a subjetividade de uma vivência oprimida – e não seria exagero chamar de uma existência proibida. Quando você é LGBT, tem que lidar com a sociedade – a começar pelas pessoas mais próximas, incluindo as que deveriam zelar pela sua segurança e te proteger – dizendo que: ou você se adequa ao “jeito certo” (cis-heterossexual e binário) de ser ou é melhor que você não exista. Ou, se quiser existir, é melhor que você suma daqui. Ninguém diz isso de forma literal, obviamente, mas de algum modo esse é o recado. E foi assim que, na história de Gardel, o jovem Cícero vai embora, deixando para trás o apaixonado Raimundo, que logo depois faz o mesmo. E não é como na fabulação heteronormativa, em que os pombinhos combinam de morrer para se encontrar na eternidade (desculpa, Shakespeare). Cícero e Raimundo nunca mais se viram.

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Lembro bem da cena: eu estava sentada com amigas em volta de uma mesa de bar, durante a Flip 2022, em Paraty, tomando uma caipirinha Sônia Braga, quando vi numa outra mesa um grupo de pessoas irrompendo numa celebração, todas com celular na mão. Tinha acabado de sair o resultado do Prêmio Jabuti daquele ano e o grande destaque era o livro Também guardamos pedras aqui, de Luiza Romão, eleito Livro do Ano, com direito a um prêmio de R$ 100 mil. Um livro de poesia, uau. Ou melhor: um livro feminista de poesia! No meu feed do instagram, só se falava nisso.

Naqueles poemas, Luiza retorna à guerra de Tróia e reconstrói os mitos e os personagens para demonstrar como a literatura ocidental foi erguida sobre a violência, em especial, contra a mulher. Também guardamos pedras aqui é uma releitura da Ilíada do ponto de vista feminista, que abala qualquer certeza sobre o ético e o estético. “Um livro poético-político feito de fúria e afeto”, diz a apresentação no site da editora.

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2021 foi um ano que demandou muitos cuidados, devido à pandemia de covid-19, mas lá pelo fim do ano já permitia alguns movimentos mais ousados, como uma cerimônia de premiação do Jabuti ainda sem plateia e com equipe de transmissão testada e devidamente mascarada, além de um apresentador global tentando ocupar todo aquele vazio do palco com tiradas um pouco forçadas e de humor duvidoso. Havia talvez uma euforia de ter, finalmente, algo a comemorar em meio aos desastres daqueles anos de pandemia.

Fato é que nós, da literatura, estávamos acompanhando aquela live (mais uma entre tantas lives daquele período!) para saber ao vivo quem seriam os premiados. Lembro que eu estava em casa, dobrando lençóis recém-saídos do varal, quando o apresentador anunciou O avesso da pele, de Jeferson Tenório, como vencedor na categoria Romance Literário.

O avesso já vinha sendo lido e celebrado por muitos leitores, sobretudo os mais atentos e interessados na produção antirracista contemporânea. Jeferson era, na época, professor de literatura numa escola de Porto Alegre e aquele prêmio furou algumas bolhas, levando o livro e seu autor para lugares inimagináveis antes dele (e talvez impossíveis sem ele). Portugal, Suécia, México, Itália, no teatro e no cinema.

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Em 2020, um livro de ficção despontou na lista de mais vendidos no Brasil e nunca mais saiu de lá: Torto arado, do baiano Itamar Vieira Júnior, já vendeu 700 mil cópias, uma marca estratosférica para um romance literário no país. De todos os que listei aqui, talvez esse seja o livro que eu arrisco dizer, com certeza, que você já leu.

Logo que foi publicado, Torto arado não teve muita projeção. O boom veio depois dos prêmios Jabuti e Oceanos que o livro abocanhou naquele ano, merecidíssimos e necessários para dar visibilidade a um livro cuja história se passa em uma comunidade quilombola no interior da Bahia. As tradições, as religiões e os costumes, a vida e as belezas de um povo esquecido (ou abandonado) não só pela literatura, mas também pelo Estado brasileiro. 

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Conceição Evaristo, uma das principais autoras brasileiras da atualidade, ganhou o Jabuti em 2015, aos 69 anos, com o livro Olhos d’água. Décadas de carreira e diversos livros publicados não foram capazes de lhe dar a visibilidade que o prêmio lhe deu. E depois desse prêmio, com o devido e merecido reconhecimento da magnitude da obra de Conceição Evaristo, o mercado editorial (bem como a imprensa especializada) começou a reconhecer outras autoras e autores negros até então ignorados. Parece que a literatura negra finalmente tinha entrado na moda e passado a fazer parte do restrito mundo das letras – e aqui tem todo um debate complexo, que eu vou guardar para uma próxima coluna.

Por falar em visibilidade, quando soubemos que Natalia Borges Polesso tinha levado o prêmio Jabuti em 2016 com Amora, a imprensa não escondeu o estranhamento e a notícia num dos maiores jornais do país foi “A desconhecida que superou Verissimo e Rubem Fonseca”, tirando de Natalia o espaço que lhe cabia nessa manchete.

Ainda assim, é prazeroso pensar que o mesmo país que já teve Cassandra Rios, uma das autoras mais censuradas de todos os tempos, com dezenas de romances proibidos pela ditadura, hoje tem Natalia Borges Polesso, uma autora assumidamente lésbica, sendo premiada com a maior honraria da literatura nacional por um livro de contos sobre mulheres lésbicas. Em que pese lhe terem roubado aquela manchete, ela segue publicando e aparecendo todos os anos nas listas de finalistas de vários prêmios.

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Prêmios literários são instituições complexas. Difícil julgar se o resultado de um prêmio foi justo ou se foi adequado para o contexto social em que ele está inserido. Até porque todo prêmio é definido por um júri, que é formado por pessoas diversas, com visões de mundo e bagagens muito próprias, que decidem as notas e conceitos como lhes convém.

Mas é fato que os prêmios literários mudam vidas e decidem o futuro de um livro, de seus autores e autoras e também, em alguma medida, dos leitores e leitoras. A visibilidade que um livro ganha depois de um prêmio é capaz de levantar debates sociais, dar força para determinadas causas e até inspirar outros livros com temáticas afins.

Prêmios literários definem se a pessoa vai seguir escrevendo ou não. Ou ainda se uma grande editora terá interesse em investir naquela carreira ou não. E isso pode parecer banal para quem coleciona oportunidades desde sempre, mas para pessoas cujas existências são subalternizadas, isso é questão de vida ou morte (de uma carreira literária).

Não sei se ficou nítido até aqui, mas eu escrevi todas essas linhas para tentar amenizar o desconforto com o resultado de um prêmio literário recente. E é bem complexo falar disso sem desmerecer ou diminuir o trabalho dos ganhadores, porque não é esse o caso. Por isso, não vou entrar em detalhes sobre o prêmio em si. Mas se esse solilóquio estiver lhe parecendo só um grande lamento subjetivo, eu vou terminar esse texto com um dado científico que cristaliza o que eu sinto.

Quem circula no meio literário já deve ter ouvido falar na famosa pesquisa comandada pela professora Regina Dalcastagnè, da UnB, sobre quem é e o que escreve o autor brasileiro. A pesquisa analisou um total de 692 romances escritos por 383 autores em três períodos distintos: de 1965 a 1979, de 1990 a 2004 e de 2005 a 2014. E o cenário é o seguinte: o perfil do romancista brasileiro publicado por grandes editoras se manteve o mesmo por quase 50 anos. Ele é homem, branco, de classe média, nascido no eixo Rio-São Paulo. Seus narradores, protagonistas e coadjuvantes são em sua maioria homens, também brancos, de classe média, heterossexuais e moradores de grandes cidades.

Isso por si só já seria motivo para uma guerra civil, se é que vocês me entendem. Mas esse cenário vinha mudando. Depois de 2014, conforme detalhado acima, vivemos anos muitos bons, revolucionários mesmo, no que diz respeito à emergência de novos nomes, diversidade de temas e vivências na literatura, bem como nas listas de prêmios e na curadoria de festivais e eventos literários Brasil afora. E mesmo com todos os avanços, ainda havia muito a ser feito para transformar a literatura em um campo menos conservador e enfadonho, além de excludente.

A gente tem celebrado inúmeras conquistas nos últimos tempos. E somos muito bons de comemoração, é verdade, porque é importante comemorar. Mas não temos cristalizado essas transformações. Tenho a impressão de que é tudo muito frágil e o pouco que conseguimos conquistar pode ruir a qualquer instante. Lembrei do incrível romance Os prêmios, de Julio Cortázar, pela sensação de travessia, mas também pela deriva surreal em que nos metemos quando o assunto é transformação social, ética e histórica de um povo.

Eu juro que não queria terminar isso aqui de forma pessimista, mas quando um determinado nicho comemora, é porque a gente perdeu alguma coisa.

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