Nanni Rios, colunista
Nanni Rios

O perigo de estar lúcida

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O perigo de estar lúcida Coletivo As dramaturgas levou o Açorianos de Livro do Ano | Foto: Nanni Rios

Antes de mais nada, queria dar meu testemunho de quem sai para se exercitar todos os dias às 10 pras 7 da manhã e volta às 8h com todos os problemas resolvidos (ao menos dentro da minha cabeça). Não há porta emperrada, bloqueio criativo ou baleia encalhada que sobreviva a boas doses diárias de endorfina.

Na semana passada, a mudança de temperatura típica da passagem das estações aqui no paralelo 30 (onde temos, de fato, quatro estações ao ano) me trouxe uma sinusite. Passei uns três dias indisposta, com a voz anasalada, muita coriza e dor de cabeça, fora o raciocínio bem prejudicado. Fiquei de pé, porém medicada. Mas bastou uma semana sem meus exercícios diários pela manhã e o mundo parecia muito mais complexo do que sempre foi. As coisas pareciam difíceis, mais custosas, alguns problemas pareciam insondáveis, eu andava desanimada. Mas os remédios fizeram efeito e foi só restabelecer a rotina que me dei conta: mexendo o corpo eu sou mais lúcida.

Sim, nada de novo: mens sana in corpore sano (ou vice-versa). A teoria é difundida, mas sentir no corpo amplia o sentido do que se lê.

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O Prêmio Açorianos de Literatura – importante celebração da produção literária local, promovida anualmente pela Prefeitura de Porto Alegre desde 1977 – elegeu um livro de dramaturgia como Livro do Ano em sua última edição. A cerimônia aconteceu no dia 2 de abril e entregou o principal troféu da noite para o livro Liberdade publicado pela Concha Editora (pequena casa editorial sediada em Rio Grande, cidade do sul do estado) e que reúne textos de 15 dramaturgas gaúchas, integrantes do Coletivo As Dramaturgas. 

É raro um prêmio literário ter uma categoria Dramaturgia (as mais comuns são Contro/Crônica, Poesia, Romance/Narrativa longa, Ensaios/Humanidades etc). E mesmo quando a categoria Dramaturgia existe, é raro que um livro desse gênero leve o grande prêmio de Livro do Ano. Some-se a isso a autoria coletiva da obra, algo incomum no meio literário, em que a imagem do escritor é relacionada ao fazer solitário e até a imagem da escritora está condicionada a ter “um quarto só seu” onde ela pode escrever apartada das demandas banais da vida.

O Coletivo As Dramaturgas quebrou essas convenções e superou todas as expectativas da noite. “Por sua qualidade literária, pela importância e pelo relevo das vozes femininas da dramaturgia”, atestou o júri ao conceder-lhe o prêmio. Uma das autoras, em nítido improviso, muito emocionada e com o troféu em mãos, foi ao microfone e disse: “o teatro tem valor, o teatro não é só Shakespeare, (…) existem muitas mulheres que querem ir para o palco. (…) A dramaturgia é social: a palavra tem vida, tem corpo, tem sangue e tem voz. Palavra, sensibilidade e ação – essas são palavras femininas. Eu tô tremendo, porque eu jamais imaginei que um livro de dramaturgia fosse ganhar como Livro do Ano. (…) A palavra tem força, é científica, é pesquisa. A ciência é feminina, a pesquisa é feminina. (…) A palavra pode cortar ou pode acariciar. A palavra que se escreve tem vida na dramaturgia. Hoje os dramaturgos e as dramaturgas estão por aí, nas redes sociais, mas querem estar nas livrarias, nas bibliotecas, nas editoras, nas bolsas de pesquisa. (…) A gente quer oportunidade para levar o nosso discurso, a nossa palavra” – e foi muitíssimo aplaudida.

O coletivo existe desde 2017, mas o livro foi pensado e produzido na época da pandemia: mulheres enclausuradas escrevendo sobre… liberdade. Uma série de textos pensados para o corpo e para a ação. Talvez um jeito de manter a lucidez naqueles tempos enlouquecedores.

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Em O segredo da força sobre-humana, Alison Bechdel conta sua vida década por década costurando acontecimentos com o tipo de exercício físico que praticava em cada período. Os términos de relacionamento, a morte da mãe, mudanças de casa, livros que planejou, as vezes em que se machucou, transformações políticas na América – tudo sobre a mesma linha do tempo. Alison faz uma verdadeira ode aos exercícios físicos como forma de autoconhecimento. Dizendo assim, o livro fica com pinta de autoajuda, mas eu juro que não é. Até porque, ao praticar exercícios físicos, ela se depara com os seus limites e com a ideia de sua própria finitude enquanto um corpo no mundo.

Reproduzo aqui uma sequência de balõezinhos em tirinhas que ocupam uma mesma página logo no início da história, uma espécie de prólogo, típico dos livros de Bechdel:

“Corri atrás de praticamente todas as novidades fitness que surgiram nas últimas seis décadas.
Por quê?
Por que passei tantas horas da minha vida (…) fazendo exercício?
Não teria usado melhor esse tempo lendo? Aprendendo mandarim? Fazendo trabalho social?
Não.
Sem esses trabalhos corporais, eu seria uma mera carniça.
Meus motivos para fazer exercícios vão do físico ao mental, passando pelo emocional, pelo psicológico e pelo numinoso.”

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Na Trilogia de Copenhagen, a dinamarquesa Tove Ditlevsen (1917-1976) narra sua vida em três tomos: Infância, Adolescência e Dependência, publicados na Dinamarca nas décadas de 1960 e 1970. Uma das pioneiras da autoficção, Tove ficou mundialmente conhecida só depois de sua morte, em 1976, chegando ao Brasil em 2023 na esteira da apreciação de Annie Ernaux e Elena Ferrante.

No tomo Infância, ela narra seus primeiros anos de vida no bairro operário de Vesterbro: os primeiros versos escritos num diário, a difícil relação com a mãe, os atritos com o irmão, a incompreensão do pai, operário e sindicalista, leitor assíduo, que disse à filha que ser poeta não era coisa para meninas.

Ao longo do segundo volume (Adolescência) ela aprofunda sua relação com a escrita e com o profundo desejo de ser publicada. Até seus relacionamentos, incluindo os casamentos, tinham a ver com as possibilidades editoriais que cada pretendente oferecia. Até que chegamos à terceira parte (Dependência) em que ela descreve seu casamento com Carl, médico responsável por seu vício em petidina, opioide que ele aplica nela pela primeira vez durante um aborto. 

O título original da terceira parte é Gift, que em dinamarquês pode significar “casada” e também “veneno”, segundo a tradutora Kristin Lie Garrubo, explicitando o quão tóxico pode ser um casamento na visão de Tove, que foi internada em asilos e clínicas psiquiátricas diversas vezes até sua morte por overdose de pílulas para dormir, aos 58 anos.

A Trilogia de Copenhagen trata dos desafios e estigmas da dependência química, a complexidade das relações amorosas e familiares e a crueldade da desigualdade social. Como disse Patti Smith, Tove Ditlevsen é “uma escritora monumental”. E chama atenção que na primeira e na segunda parte de sua trilogia, antes da Dependência, ela foi uma jovem extremamente atenta ao seu entorno, sensível na observação das pessoas e da sociedade da época, obstinada por sua literatura e guiada unicamente por seus desejos, apesar das dificuldades. Em suma: lúcida.

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Sobre o livro novo de Rosa Montero, de quem tomei emprestado o título para esta coluna, eu costumo dizer, em resumo, quando me perguntam sobre ele na livraria: é um livro sobre mulheres que escrevem, porque uma mulher que escreve é uma mulher lúcida.

Dito assim, lembra um poema de Angélica Freitas, talvez pela cadência:

“porque uma mulher boa
é uma mulher limpa 
e se ela é uma mulher limpa 
ela é uma mulher boa 

há milhões, milhões de anos 
pôs-se sobre duas patas 
a mulher era braba e suja 
braba e suja e ladrava 

porque uma mulher braba 
não é uma mulher boa 
e uma mulher boa 
é uma mulher limpa 

há milhões, milhões de anos 
pôs-se sobre duas patas 
não ladra mais, é mansa 
é mansa e boa e limpa”

Abri o livro Um útero é do tamanho de um punho para conferir se minha memória estava confiável e achei outro poema:

“uma canção popular (séc. xix-xx) 

uma mulher incomoda
é interditada 
levada para o depósito
das mulheres que incomodam 

loucas louquinhas 
tantãs da cabeça 
ataduras banhos frios 
descargas elétricas 

são porcas permanentes 
mas como descobrem os maridos 
enriquecidos subitamente 
as porcas loucas trancafiadas 
são muito convenientes 

interna, enterra”

*

Como eu ia dizendo (vou repetir para retomar o fio da meada), O perigo de estar lúcida, de Rosa Montero, é um livro sobre mulheres que escrevem, porque uma mulher que escreve é uma mulher lúcida.

Ela cita inúmeras obras relacionadas ao “tema” ao longo do livro e eu vou destacar aqui o conto O papel de parede amarelo, de Charlotte Perkins Gilman (1860-1935), publicado pela primeira vez em 1892, que ficaria esquecido por décadas até ser redescoberto pelo movimento feminista nos anos 1970 e virar um ícone da literatura de mulheres. O texto chegou a entrar em coletâneas de contos de horror e a autora foi comparada a Edgar Allan Poe, pela sua capacidade de “imaginar” situações macabras e assustadoras – quando, na verdade, a história narrada por Charlotte retratava a realidade adoecida de inúmeras mulheres engaioladas pelo casamento e pelas convenções de gênero da época. E vale aqui um recorte de classe, obviamente.

No conto, uma mulher com “problemas nos nervos” é levada pelo marido (que é médico) para uma temporada de três meses numa casa de campo, para que ela descanse e se cure. Na verdade, tudo que ela quer é escrever, mas o faz escondido para que o marido não a reprima. Presa na casa, vigiada pelas empregadas e sem poder sair nem para pegar um ar, o papel de parede amarelo do quarto do casal (cuja estampa é “repetitiva e nauseante”) vira sua obsessão. Ela começa a enxergar mulheres rastejantes presas ao papel e entende que precisa libertá-las – a elas e a si mesma. Ao final dos três meses, ela arranca todo o papel de parede do quarto com as próprias unhas e – aí sim! – enlouquece.

Como diz Marcia Tiburi no texto de apresentação da edição da José Olympio: “Ora, toda mulher conhece o papel de parede amarelo e seu bizarro padrão. Muitas o rasgam e saem de dentro dele num ato de transgressão cujo preço é conhecido. Contemplá-lo e rasgá-lo são atos de desconstrução que podem levar além da casa. Sair dela continua não sendo fácil. Mas é o convite que Gilman, em seu generoso gesto literário, nos faz ainda hoje”.

*

Minha última coluna publicada aqui na Matinal teve uma repercussão enorme e bem fora da curva. Os números impressionam: só no instagram foram 3300 likes, 202 comentários, 764 compartilhamentos e 158 salvamentos. O texto se chama Quem tem medo do gênero? (título que roubei do livro mais recente de Judith Butler) e traz vários causos, desde a violência sofrida pela própria Butler no Brasil em 2017 até a polêmica em torno do Prêmio SESC de Literatura, passando por uma história bem violenta que aconteceu comigo num evento para o qual fui contratada. Eu começo a coluna jogando a isca: “Se esse texto tivesse um subtítulo, seria: o dia em que fui expulsa do South Summit Brazil” e ali eu enlaço a leitora prometendo contar a fofoca mais adiante.

Por um lado, eu sei que as pessoas amam uma fofoca e eu tentei dar essa leveza a algo pesadíssimo que me aconteceu e que, por acaso, envolvia também pessoas ricas & famosas. Tem também o fato de que a censura é a melhor forma de divulgação que existe e o caso do Prêmio SESC de Literatura é exemplar. Mas o que eu acho que mais levantou o ibope daquele conteúdo foi a identificação que ele gerou em inúmeras mulheres. Ao menos, foi isso que eu senti lendo as dezenas de mensagens e centenas de comentários que recebi.

A todo mundo que me procurou para dizer algo e prestar solidariedade, eu agradeci assim: obrigada por falar. Porque o que mais acontece é a gente denunciar violências e receber de volta o silêncio frio de quem desconfia ou desdenha, de antemão, do tamanho, da intensidade e/ou da gravidade de qualquer queixa. Em suma: o mundo vive colocando em xeque a nossa lucidez.

Eu li e ouvi coisas incríveis de pessoas que acharam importante me dizer algo. Por isso eu reitero que a escrita é uma forma de revolução. E o coletivo é o lugar onde essa revolução acontece. Eu me senti validada depois daquele relato e essa é uma sensação indescritivelmente maravilhosa. Porque antes disso tudo era medo.

Poder dizer para outras mulheres o que eu vivi e senti e ouvir/ler de volta mensagens assim: “Aquela coisa de a gente, mulher, entender direitinho o que a outra sentiu, essa adrenalina, esse coração pulando. Sinto muito”.

Eu não tava exagerando. Eu não tava louca.

Um bando de mulheres isoladas em suas casas na pandemia e escrevendo sobre liberdade. Presas em casa, com ou sem papel de parede amarelo. As Dramaturgas sabiam que não eram A louca da casa – pra citar outro excelente livro de Rosa Montero.

Loucas, suicidas, internadas compulsoriamente ou “levadas para o depósito / das mulheres que incomodam”. A história da literatura é farta em exemplos de escritoras que tiveram esse destino, com os mais variados agravantes de raça, classe, etnia, sexualidade ou de condição mental mesmo, algo que merecia cuidados e tratamento adequado em vez de estigma e repressão.

Vou terminar essa coluna com o finalzinho de uma mensagem que recebi por email e que eu poderia encaminhar para todas as mulheres lúcidas que escrevem:

“Enfim, que bom que tu escreveu. Achei corajoso. Que a gente grite mesmo tudo que nos machuca.”

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