Nanni Rios, colunista
Nanni Rios

Um conforto existencial

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Um conforto existencial Ilustração: Luísa Zardo/Dublinense

O ano era 2013 e eu estava numa festa numa boate LGBT em Caxias do Sul. Tocava música pop internacional, fazia frio, e eu já estava um pouco ébria àquela altura da madrugada, quando uma pessoa que eu não conhecia, vestida de Madonna (a da capa do disco Music, sabe? de chapéu e camisa azul), se aproxima com um livro em mãos e se apresenta. Diz que é escritora, que acabou de publicar um livro e gostaria de me dar um exemplar. Contou que a dona da boate – uma sapatão bem relacionada e antenada que conhecia ambas – disse pra ela fazer aquilo. Eu disse “claro que sim” e pedi a ela que autografasse o livro.

Na época, eu apresentava um programa de rádio na Ipanema FM, afiliada local da Bandeirantes, chamado Programa Gay, que ia ao ar uma vez por semana, de madrugada. Ficávamos duas horas ao vivo no estúdio, eu e mais três apresentadores, conversando e entrevistando pessoas sobre “cultura LGBT”, ou seja, tinha de tudo um pouco: política, cinema, festas, babados, música e até literatura. O programa era transmitido no dial 94.9 somente para o Rio Grande do Sul. Apesar da audiência restrita pelo horário e pela geografia, éramos a primeira iniciativa do tipo no Brasil, algo que a comunidade reconhecia e prestigiava.

Quando ela me entregou o livro autografado, eu agradeci. Ela rapidamente virou as costas e sumiu na boate lotada. Enquanto isso, meus amigos, que observavam a cena, se perguntavam de onde tinha saído aquela personagem de botas de cowboy com um livro (!) no meio da balada e ainda me zuaram porque, mesmo bêbada, eu abri o tal livro e fui direto ver a ficha catalográfica, uma mania de leitora curiosa em busca de mais informações sobre a autora, a editora e o próprio livro, que tinha um título bem curioso.

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Recortes para álbum de fotografia sem gente foi o livro que Natalia Borges Polesso me deu naquela noite. A editora era a saudosa Modelo de Nuvem, nascida ali mesmo, em Caxias, uma espécie de filha mais velha de Marco de Menezes e de Camila Cornutti, anos antes de Cecília vir ao mundo. E as caixas e mais caixas do livro, feito com grana do FinanciARTE, da prefeitura de Caxias do Sul, ficavam estocadas no sótão da Level Cult. Foi aí que a Lídia Ribeiro, dona da Level, disse a Natalia: sobe lá, pega um livro e dá pra Nanni.

Dias depois, Natalia me chamou para um café. Acho que foi por SMS. Queria saber se eu tinha lido e o que eu tinha achado. Foi só aí que peguei o livro pra ler e – uau! Tinha uma coisa muito nova ali, uma sensação que eu nunca tinha experimentado. Algo que eu nem sabia o que era, na verdade. Tanto não sabia que não falamos disso, especificamente, no café. E só uns anos depois, quando ela lançou seu segundo livro, Amora, eu entendi o que tinha acontecido.

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A vida de livreira desafia o banal do dia a dia e a capacidade de armazenamento da memória humana. Eu me lembro com exatidão de leitores e leitoras que entraram na livraria uma só vez, o que pediram e quais livros acabaram levando. Até dos clientes mais frequentes, sou capaz de lembrar tudo que já compraram comigo, ao longo de quase uma década, tamanho o envolvimento necessário para recomendar livros a alguém.

Lembro de uma vez, ainda no primeiro endereço da Livraria Baleia, na Santana, em que conheci a pesquisadora Helen Shepard, de San Francisco, que é uma pessoa intersexo, além de doutora em sexualidade humana. Ela me pediu: “você tem algo radical aqui? Eu queria conhecer algo radical do Brasil”. Pensei por uns segundos e puxei da estante o livro Um útero é do tamanho de um punho, de Angélica Freitas. Ela leu o título em voz alta (por ter morado dois anos na Bahia, ela falava e entendia português super bem) e fez cara de exclamação. Me pediu para escolher e ler para ela um “poema radical” e lá fui eu: a mulher é uma construção. Em seguida, arrisquei ler o poema alcachofra (“amélia que era mulher de verdade / fugiu com a mulher barbada / barbaridade”) e ela riu muito, disse que se identificou e que nunca tinha lido um poema sobre uma mulher como ela.

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Hoje, quase 10 anos depois da publicação do Amora e depois de vários prêmios, inúmeras resenhas e muito entusiasmo de fãs e leitoras em redes sociais, talvez seja desnecessário descrever o livro, mas vocês vão me dar o perdão da redundância para que o meu texto funcione.

Ainda é preciso (e gostoso) dizer que Amora é um livro de histórias de mulheres, histórias de vida e de amor entre mulheres. Amigas, crushes, primas, senhoras, avós, donas de bar, adolescentes, namoradas e ex-namoradas. “Experiências multiplas sobre ser lésbica no mundo, lugares de existência para mulheres lésbicas”, como bem define Cidinha da Silva na orelha da nova edição comemorativa de 2022.

Amora ganhou dois prêmios Jabuti em 2016, um na categoria Contos e outro pelo voto popular. Mas aquele lugar de “autor premiado” (escrito assim, no masculino de propósito, pela naturalização do gênero desse lugar de existência) para uma lésbica causou estranhamento na imprensa. Nunca vou me esquecer da manchete do jornal O Globo que anunciava o prêmio: “A desconhecida que superou Verissimo e Rubem Fonseca”. Nem direito ao nome na manchete “a desconhecida” teve. E o destaque ficou para o segundo e o terceiro lugar. Amora também ganhou os prêmios Açorianos e AGES naquele ano.

Eu brinco que o Jabuti tem a categoria Livro do Ano, enquanto os leitores e leitoras têm a categoria Livro da Vida. “Este foi o livro que eu esperei toda a minha vida para ler” foi uma das coisas que eu disse sobre o Amora ao jornalista Rafael Glória, já em 2022, quando ele me entrevistou para um perfil de Natalia, a ser publicado no Jornal do Comércio de Porto Alegre. O que eu tinha sentido com o Amora, algo já prenunciado pelo Recortes, era, basicamente, um abraço, uma acolhida, uma espécie de conforto existencial. Pela primeira vez na vida.

Folha de rosto da nova edição do livro Amora de Natalia Borges Polesso| Foto: Nanni Rios
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Em 2013, logo após o lançamento de Um útero é do tamanho de um punho, um crítico literário de Porto Alegre escreveu sobre o livro e deu a Angélica o epíteto de “a versão de saias do chacrinha”, pois mulher fazendo humor, onde já se viu? Na leitura dele, o trecho “e mesmo no escuro sei que estou dormindo comigo / e quem quiser dormir comigo vai ter que dormir do lado” seria “[a troca] da virilidade pela esterilidade”. Ele diz ainda que o livro é “menos histérico do que histriônico” e justifica o uso desses termos patologizantes na crítica por serem palavras do mesmo léxico temático do livro, em referência ao útero do título.

Anos depois, encontrei o tal crítico num ambiente informal e não resisti: perguntei se ele se lembrava do texto. Ele disse que sim, com alguma tranquilidade. Um pouco incrédula, repassei as ideias e repeti as palavras que ele mesmo tinha escrito, só para me certificar de que estávamos falando do mesmo texto. Ele disse que não se lembrava tão exatamente daquelas palavras, mas se tinha enviado o texto para publicação, certamente mantinha aquelas convicções.

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Dia desses, eu, que durmo bem e acordo cedo, acordei antes do despertador, de madrugada. Não eram nem 5h da manhã e não consegui voltar a dormir. Apesar da pouca luz do dia àquela hora, os olhos protestaram um pouco quando saí do absoluto breu do quarto. Fui até a cozinha já com a cabeça cheia dos assuntos que tinham me despertado antes da hora. A primeira ação: um café. Liguei a cafeteira e fui ao banheiro, sem acender a luz. Quando voltei, o que tinha no copo era só água. Passei café sem o pó. Postei a foto trivial e sem importância no lugar oficial das fotos triviais e sem importância, os stories do instagram. E Natalia, que também acorda muito cedo, foi a primeira a comentar: “Marília, acorda”. Respondi que estou “velha e esquecida”. E rimos.

Tirando o fato de que não tenho nem 40 anos e que o lapso do café sem o pó era só sintoma de uma semana estressante, eu queria contar que foi no Amora que eu contemplei pela primeira vez a ideia de envelhecer. Ou melhor: a ideia de envelhecer como uma lésbica, ao lado de outra mulher. No conto Marília, acorda, a narradora repassa a rotina da velhice ao lado de sua companheira Marília. Reclama de quase tudo, das manias, dos barulhos (“Ela não faz por mal, só não tem silêncio nas mãos”), mas agradece por estarem juntas (“Duas velhas estranhas, Marília e eu”). É o meu conto preferido do livro.

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Eu queria muito continuar aqui contando o que eu senti quando li pela primeira vez os poemas de Audre Lorde, Cheryl Clark, Adrienne Rich, Marília Kosby e Maria Isabel Iorio, os ensaios radicais de Monique Wittig e Jack Halberstam, os contos de Conceição Evaristo, as “canções de amor e dengo” de Cidinha da Silva, e tantas outras sapatonas e pessoas não-bináries escritoras. Mas vou guardar essas histórias para outros textos aqui da coluna e não gastar toda a atenção de vocês nesse aqui. E também porque ainda quero fazer um convite:

Nessa quinta, 5 de outubro, em Porto Alegre, Natalia Borges Polesso, autora de Amora e de Recortes para álbum de fotografia sem gente (e também de Controle, A extinção das abelhas, Coração à corda, entre outros), vai lançar um livro novo: Foi um péssimo dia sai pela editora Dublinense e reúne duas adoráveis novelinhas, uma para a minha mãe e outra para o meu pai, subtítulos que fazem as vezes de dedicatória, mas também se juntam com o título principal e resumem as duas histórias: Foi um péssimo dia para minha mãe e Foi um péssimo dia para o meu pai, sob o ponto de vista da personagem-narradora, uma pré-adolescente de 12 anos chamada… Natalia.

Era início de agosto, quando avisei pelo whatsapp que eu tinha lido o livro novo numa sentada, durante um voo do Rio para Porto Alegre. “Ri e chorei” foi meu sucinto comentário. Em outra oportunidade, pessoalmente, surgiu o assunto do livro e complementei: “Ri com a mãe, chorei com o pai”. Em seguida, ri de novo, só que de nervosa, como quem entrega, sem querer, o panorama geral de suas dores e humores em poucas palavras. Haja análise. E viva a boa literatura!

Quinta vai ser uma ótima noite na Livraria Paralelo 30, ali pertinho do Parque da Redenção, em que eu e a pesquisadora Andrezza Postay vamos conversar com Natalia, a partir das 19h, sobre o livro novo. Apareçam!

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