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Família denuncia Santa Casa por negar atendimento a paciente pelo IPE

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Família denuncia Santa Casa por negar atendimento a paciente pelo IPE A Santa Casa é uma das instituições conveniadas ao IPE, inclusive para a Emergência Covid (crédito: Raul Krebs/Divulgação)

Parentes tiveram de pagar para que Breno Marzulo, de 86 anos, fosse atendido. O aposentado foi vitimado pela Covid-19 enquanto a família brigava para garantir que hospital fizesse seu atendimento pelo convênio

O drama começou nas primeiras horas da tarde de 20 de fevereiro, um sábado. Após quase um ano de cuidados e respeito às recomendações sanitárias, a família Marzulo se viu diretamente afetada pelo coronavírus: Breno Aprato Marzulo, de 86 anos, deu entrada na emergência do Hospital Dom Vicente Scherer da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre. Tinha um quadro de febre. Não tardou para a suspeita de Covid-19 se confirmar – o que levou Breno a ser transferido para a emergência específica dos casos suspeitos de coronavírus. 

A partir daí, pelas restrições à entrada de familiares e por ser mais jovem, quem acompanhou Breno de perto até sua morte foi a neta, a psicanalista Amora Marzulo. Foi ela também quem ouviu as sucessivas negativas para que o avô fosse atendido por meio do IPE Saúde, o convênio que atende 1 milhão de usuários, entre servidores públicos do Estado, seus pensionistas e dependentes. Em vez disso, diziam-lhe, seria necessário recorrer a um atendimento particular ou tentar a sorte na fila do Sistema Único de Saúde (SUS). “A moça da triagem, que mediu os sinais do meu avô e disse que ele precisava ir para o oxigênio, perguntou se eu tinha dinheiro para pagar particular. Ela disse: ‘caso tu não tenhas, vou ter que te pedir para ir embora’”, relata Amora. A Santa Casa é uma das instituições conveniadas ao IPE, inclusive para a Emergência Covid.

Na véspera da entrada de Breno na emergência, o governador Eduardo Leite havia anunciado que Porto Alegre entraria, pela primeira vez na pandemia, na fase de bandeira preta – o estágio mais restritivo (apesar de uma série de exceções que foram sendo feitas), que representa risco altíssimo de contágio e que mais tarde seria estendido a todo o Rio Grande do Sul. As UTIs começavam a lotar. Depois de meses com números relativamente controlados, o Rio Grande do Sul enfim conhecia o colapso sanitário vivido em outras cidades do Brasil e do mundo.

Sem convênio e com desencontros

A luta por atendimento e as incertezas dos Marzulo nos quatro dias entre a internação e a morte de Breno, exatamente no momento em que a pandemia entrava em sua fase mais crítica no Estado, refletem um cenário em que tanto as pessoas próximas aos pacientes quanto os próprios funcionários dos hospitais ficaram imersos em informações desencontradas sobre como proceder. No seu caso, não ajudou nem mesmo a segurança de cinco décadas como conveniado do IPE Saúde, na condição de dependente da esposa, Gladis Pires Marzulo, que teve acesso ao serviço como professora do Estado. O convênio de assistência à saúde dos servidores públicos gaúchos surgiu em 1966 como um benefício do Instituto de Previdência do Estado do Rio Grande do Sul (Ipergs). 

A própria ida de Breno à Santa Casa, aliás, foi uma situação causada pelas contingências do momento. “Optamos por ir à Santa Casa justamente porque o hospital que meu avô normalmente iria, o Ernesto Dornelles, estava com a emergência fechada”, diz Amora. Mas, desde o primeiro momento, ficou claro que ter acesso ao atendimento via IPE não seria um caminho fácil. Além da cobrança de R$ 500 pela primeira consulta na emergência, que a família acabou pagando sem pensar duas vezes, o convênio foi outra vez barrado quando se confirmou a necessidade de internação. “Agora que ele foi baixado no particular fica impossível mudar”, Amora diz ter ouvido de médicos e funcionários administrativos, colocada diante de um beco sem saída: como o atendimento inicial não pôde ser feito pelo convênio, embora a Santa Casa devesse estar recebendo pacientes do IPE, naquele momento se tornava impossível sair do particular. Ao todo, a família desembolsou mais de R$ 5 mil entre o primeiro atendimento e o início da internação, valor que agora busca reaver.

A família chegou a considerar  uma transferência para outro hospital que pudesse atender pelo convênio – um movimento que os médicos não recomendavam devido ao estado de saúde delicado de Breno e à escassez generalizada de vagas. Enquanto os parentes buscavam alternativas, o aposentado de 86 anos enfrentava a falta de leitos. Ele passou cerca de 32 horas esperando sentado entre a entrada na emergência do Hospital Dom Vicente Scherer, no início da tarde de sábado, e a abertura de um lugar na UTI de Covid do Hospital Santa Clara, por volta das nove da noite de domingo, 21 de fevereiro.

Do lado de fora, os Marzulo consultavam advogados para se informar sobre como impedir que a custosa internação na UTI fosse considerada particular – e ouviam que, embora um processo provavelmente acabasse sendo vencido, seria necessário primeiro pagar o que era pedido e depois buscar ressarcimento na Justiça. “Assumimos o custo com a perspectiva de lutarmos jurídica-administrativamente pelo direito de meu pai como dependente ao acesso aos serviços de saúde de um hospital credenciado”, escreveu Eber Pires Marzulo, professor do Departamento de Urbanismo da UFRGS e filho de Breno, em um texto enviado a familiares e amigos ao qual o Matinal teve acesso.

Do lado de dentro, Amora fazia a mesma pergunta tanto aos médicos que vinham lhe informar dos resultados dos exames do avô quanto aos funcionários da administração que encontrava. Não era possível, afinal, que um beneficiário do IPE que deu entrada como paciente particular fosse, depois, considerado internado pelo convênio? E a resposta se repetia: “todos diziam que a situação estava estranha, mas que não sabiam direito o que fazer”, relata Amora. “E também diziam: tem algum jeito de fazer isso, mas não sei como te ajudar”.

À incerteza sobre se a família teria condições de bancar a UTI do avô somaram-se as dúvidas sobre o próprio tratamento. Naqueles dias de correria, Amora foi chamada duas vezes ao hospital com leituras diferentes do melhor rumo a tomar com Breno: na madrugada de segunda-feira, poucas horas após a internação, a intensivista responsável indicou que o deixaria apenas no ventilador. Considerava o caso irrecuperável e entendia que, assim, o paciente sofreria menos em seus momentos finais. Mas, durante a tarde, quando o médico de plantão mudou, também se alterou o entendimento: agora, haveria salvação, e intubar Breno seria a alternativa para reduzir seu sofrimento.

Ao mesmo tempo em que os médicos decidiam o que fazer com Breno, sua esposa, Gladis, também precisou procurar atendimento para a Covid-19, com um quadro mais leve. Frustrada após ser impedida de se beneficiar do IPE na Santa Casa, onde o convênio deveria valer para o atendimento emergencial mas já havia sido negado para Breno, a família decidiu procurar outro local e chegou ao Hospital Divina Providência – este, sim, um hospital que não está conveniado para atender usuários do IPE na emergência, embora os Marzulo desconhecessem essa informação. Como o Divina Providência só atende convênios e particulares e a família não quis buscar outra instituição e ainda ter de entrar na fila do SUS, acabaram tendo de pagar por mais um atendimento. Gladis não precisou ser internada, e recuperou-se bem.

Na Santa Casa, após o calvário da emergência e as várias negativas à tentativa de transformar a internação particular de Breno em um atendimento conveniado, a família finalmente conseguiria passá-la para o IPE através de um contato interno, que “se mostrou indignado pelo corte do atendimento ao IPE em plena crise pandêmica”, como escreveu Eber Marzulo em seu desabafo. Sem saber de todo o esforço da família para garantir seu direito, Breno, por fim, teve acesso ao serviço que passara a vida pagando e do qual tanto se orgulhava, mas não resistiu. O IPE abriu procedimento administrativo para apurar a denúncia de desassistência feita pela família, e iniciou contato com os Marzulo. A família, por sua vez, ainda estuda o que fazer em relação ao caso.

O avô de Amora faleceu nos primeiros minutos de 24 de fevereiro, o mesmo dia em que os leitos particulares de UTI no Estado ultrapassaram 100% de ocupação, algo ainda não visto desde que os primeiros casos de contágio pelo coronavírus foram registrados em solo gaúcho. Era uma das primeiras experiências de um momento em que até usuários de convênios tradicionais passaram a temer ficar sem o atendimento que sempre consideraram garantido. Na virada para o mês de março, seriam também os leitos disponibilizados através do Sistema Único de Saúde (SUS) a se aproximar da lotação completa – mesmo após o governo tê-los aumentado de 951 para 1.884 ao longo de 2020.

O Matinal procurou a Santa Casa para questionar sobre possíveis casos de atendimento negado a pacientes usuários do IPE Saúde. Em nota, a instituição afirmou que “há mais de dois anos a Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre vem tentando – sem sucesso – compor com o IPE Saúde uma forma de quitar ou, pelo menos, reduzir significativamente – ainda que de forma programada no tempo – o volume da inadimplência desse convênio com a instituição que, nesse momento, está em R$ 33 milhões”. Em função disso, desde novembro de 2019 a Santa Casa “estabeleceu um limite mensal de sua capacidade para atendimento desse plano, que, em vias gerais, chega a 80% dos volumes que eram feitos historicamente”, dimensão que teria sido definida “com base no histórico da capacidade de pagamentos do IPE Saúde”.

Diante das restrições de atendimento, vêm sendo priorizados pacientes que já fazem tratamentos e acompanhamentos na Santa Casa – algo informado em um banner já na entrada do prédio. A instituição afirma, no entanto, que casos como o relatado pela família Marzulo não deveriam ocorrer. “Essa modalidade de atendimento prioritário aos pacientes já vinculados não se sobrepõe às condições clínicas de nenhum paciente que chega às nossas emergências. Nenhum paciente é liberado ou orientado a buscar outra instituição se sua condição clínica exigir cuidado imediato ou ainda inspirar observação”, inclusive na Emergência Covid. A Santa Casa também disse que o caso “não condiz com a nossa prática habitual” e só poderia ser devidamente apurado e esclarecido após obter mais detalhes sobre o paciente.

O IPE Saúde, por sua vez, informou ao Matinal que ainda não havia recebido denúncias similares até tomar conhecimento do caso. Em nota, diz que o caso “se trata de um primeiro relato de possível desassistência em relação a tratamento para Coronavírus aos segurados do IPE Saúde”. Também afirma que entrou em contato com a família de Breno Marzulo para “prestar suporte se necessário e obter esclarecimentos sobre o ocorrido”. Sobre os atrasos nos repasses à Santa Casa, que reduziram a capacidade de atendimento da instituição, “a atual gestão está buscando promover o ajuste fiscal das contas públicas e regularizar repasses de toda a ordem”.

Em casos em que o usuário do IPE Saúde encontre negativa de atendimento em prestadores credenciados, um dos meios oficiais de denúncia é a Ouvidoria Geral do Estado

Leia as notas completas:

Resposta da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre

Há mais de dois anos a Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre vem tentando – sem sucesso – compor com o IPE Saúde uma forma de quitar ou, pelo menos, reduzir significativamente – ainda que de forma programada no tempo – o volume da inadimplência desse convênio com a instituição que, nesse momento, está em R$ 33 milhões. Essa dívida foi composta pela sucessiva produção mensal da Santa Casa em volumes e valores superiores ao pagamento recebido pelo convênio.  

Como forma de tentar amenizar e até conter uma dívida que onera sobremaneira o caixa da instituição, em novembro de 2019, após comunicação ao IPE Saúde, a Santa Casa estabeleceu um limite mensal de sua capacidade para atendimento desse plano, que, em vias gerais, chega a 80% dos volumes que eram feitos historicamente. Lembrando: esse percentual foi definido com base no histórico da capacidade de pagamentos do IPE Saúde.  

Assim, a instituição vem priorizando os milhares de pacientes usuários do IPE Saúde que já tenham vínculo com a Santa Casa, ou seja, que já fazem tratamento/acompanhamento nos diversos serviços e que, portanto, teriam dificuldade assistencial ou mesmo mudança de conduta ao procurarem outros prestadores da cidade ou do Estado. 

Por óbvio, que essa modalidade de atendimento prioritário aos pacientes já vinculados não se sobrepõe às condições clínicas de nenhum paciente que chega às nossas emergências. Nenhum paciente é liberado ou orientado a buscar outra instituição se sua condição clínica exigir cuidado imediato ou ainda inspirar observação. Isso é um preceito assistencial, independente de plano de saúde, e a Santa Casa o exerce há mais de 200 anos. 

Continuamos atendendo diariamente um volume expressivo de pacientes usuários do IPE Saúde, inclusive na Emergência Covid e nas nossas unidades dedicadas ao tratamento da pandemia, sejam elas unidades intensivas ou não.  

Em relação específica aos questionamentos encaminhados, se é que já não estão respondidos na manifestação acima, temos a informar que não condiz com a nossa prática habitual e que só teremos condições de esclarecer, especificamente, o caso ilustrado (supondo que tenha ocorrido conforme relatado) se nos for identificado o nome do paciente e a data da ocorrência. 

Nota de esclarecimento IPE Saúde

O Governo do Rio Grande do Sul se solidariza com a dor dos familiares e amigos de Breno Aprato Marzulo. Lamentamos profundamente mais uma vítima da covid-19 em nosso Estado. O IPE Saúde, do qual Breno era segurado, já entrou em contato com a família, com o intuito de prestar suporte se necessário e obter esclarecimentos sobre o ocorrido. 

Ressaltamos que a comunidade médica tem sido exemplar no atendimento aos pacientes que, diariamente, superlotam os hospitais gaúchos. São profissionais que não medem esforços, colocando até mesmo suas vidas em risco, para salvar o maior número de pessoas possível.

Sobre o caso em questão, informamos que se trata de um primeiro relato de uma possível desassistência em relação a tratamento para Coronavírus aos segurados do IPE Saúde, que conta atualmente com uma rede credenciada de 9.493 prestadores em todo o Estado, entre médicos, laboratórios, clínicas, hospitais, pronto socorros e outros.

No que se refere a atrasos nos repasses ao Hospital Santa Casa, em Porto Alegre, esclarecemos que é de conhecimento público que o Estado passa, há anos, por dificuldades financeiras causadas por uma crise econômica de ordem estrutural. Isso gera impactos em todos os órgãos da Administração Pública, o IPE Saúde entre eles. 

A atual gestão está buscando promover o ajuste fiscal das contas públicas e regularizar repasses de toda a ordem. Um exemplo é o pagamento em dia do salário dos servidores estaduais (área da Saúde inclusa). Mesmo sendo uma obrigação legal, há mais de 4 anos isso não ocorria no RS.     

Para finalizar, alertamos que, no caso de usuários do IPE Saúde depararem com alguma situação em que uma instituição, médico, clínica ou qualquer prestador que seja credenciado e haja negativa de atendimento, recomenda-se que seja realizada denúncia junto aos canais oficiais, como a Ouvidoria Geral do Estado, neste link: https://ouvidoriageral.rs.gov.br/ouvidoria

Atenciosamente, 
IPE Saúde 

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