Carta da Editora

De onde vem seu privilégio?

Change Size Text
De onde vem seu privilégio? Avenida Giusepe Garibaldi, em San Martino dall'Argine, na Itália | Fotos: Arquivo pessoal

Em janeiro de 2011, eu e meu pai saímos à caça dos Donini na Itália. Batemos de porta em porta, literalmente. Mas não foi aleatório, tínhamos um recorte bem específico: a avenida principal de San Martino dall’Argine, cidadezinha de menos de 1,8 mil habitantes no norte do país.

Fomos parar lá no início da tarde de uma quarta-feira fria e ensolarada, uma hora depois que deixamos Mantova. Não tínhamos o endereço de nenhum parente, apenas sabíamos que Cesare Donini, o bisavô do meu pai, havia nascido lá em 1869.

Chegamos no início da tarde e encontramos todas as portas fechadas, de residências e comércio. Nem a igreja estava aberta. Claro, era hora da sesta. Começamos então as tentativas de encontrar um Donini batendo aleatoriamente às portas da Avenida Giuseppe Garibaldi, até que reparamos que alguns imóveis tinham os nomes das famílias na campainha. Bingo! Achamos um pequeno interruptor com uma etiqueta e o nome “DONINI” em caixa alta.

Uma senhora apareceu na janela e indicou que procurássemos Gianni, mais à frente. Caminhamos uns metros e encontramos, em uma porta de madeira escura, alta e larga, uma placa dourada onde se lia “Gianni Parrucchiere per signore”. Batemos, tocamos a campainha, e nada. Insistimos.

Até que uma senhora, enfim, abriu uma nesga da porta, muito desconfiada. Era a nossa chance de nos apresentar, o que fizemos em um idioma próprio, algo entre o italiano para iniciantes que aprendi em cinco aulas online e um português falado pausadamente e em voz alta acompanhado de muitos gestos com as mãos. 

De tudo o que ela disse, entendemos que seu esposo, o cabeleireiro Gianni, não estava em casa. Eu já estava vislumbrando o resto do dia em volta de uma farta mesa, bebendo vinho, até que titio Gianni chegaria de seu salão e nos convidaria para passar a noite ouvindo histórias da famiglia das quais entenderíamos uns 10%, mas ainda assim daríamos altas risadas.

Não passamos da porta, porém. Mesmo assim, saímos de lá emocionadíssimos.

De volta a Bologna, onde estávamos hospedados, contamos nossa peripécia à advogada brasileira que nos acompanhava. Ela riu e disse que certamente a senhora achou que estávamos atrás de algum dinheiro. 

O que sobrou de herança

Conto essa história pessoal para compartilhar a incursão que fiz às origens da minha família durante o processo para obter a cidadania italiana, documento que já me deu algumas vantagens em um par de viagens internacionais. Assim como tantos gaúchos e gaúchas, sou descendente de imigrantes que deixaram a Itália no final do século 19, início do 20. Diferentemente da maior parte dos seus compatriotas que chegaram ao estado e foram para a serra, meu trisavô se instalou no sul, em Pelotas. 

Como era comum na época, Cesare Donini ganhou seu pedaço de terra para recomeçar a vida em território brasileiro – prática que ilustra como funcionavam as cotas na política de colonização do país, como bem observa Tau Golin neste texto. Eis um capítulo importante das origens do meu privilégio de mulher branca de classe média.

Conta-se na família que aquele gringo alto e de olhos claros tinha “muitas terras”, mas, na certidão de óbito de Cesare Donini, de 5 de julho de 1958, consta que não deixou bens. Sabe-se, contudo, que uma única porção de terra ficou para os quatro filhos. Nessa área rural, nasceu meu avô paterno, que mais tarde se mudaria para a periferia de Pelotas, onde ergueria, ele próprio, a casa em que cresceriam meu pai e seus irmãos. 

Resolvi dividir essa história pessoal depois de ouvir os episódios da Rádio Novelo que apresentam a pesquisa encomendada pela família de Branca Vianna sobre as origens da sua fortuna. Sua riqueza foi erguida em cima da mesma exploração que está na base da nossa história como país: o sangue dos escravizados.

Branca é tataraneta do Visconde do Rio Preto que ao morrer, em 1868, deixou como herança 1.280 trabalhadores escravizados. Em uma de suas fazendas, no Rio de Janeiro, onde Branca, sua irmã Anna e a prima Tina chegaram a passar suas infâncias, havia um livro que continha nomes de pessoas escravizadas. Esse documento de imenso valor não foi encontrado pelos historiadores Marília Ariza e o Adriano Novaes, que lideraram a pesquisa.

Tiago Rogero, jornalista que apresenta o episódio sobre o Visconde, reforça a importância do movimento. Segundo ele, é muito difícil para as pessoas negras traçar as próprias origens no Brasil. Uma possibilidade está justamente em resgatar a história dos senhores de escravos como o Visconde do Rio Preto, que, diferentemente dele, segundo Rogero, eram, em sua maioria, donos “de um, dois, no máximo três” escravizados “porque era caro”.

De acordo com Branca, Anna e Tina, a pesquisa e o podcast foram adiante não para posarem de “white saviors” (“salvadoras brancas”), mas porque acreditam no interesse público contido na história da sua família e na de outros senhores de escravos. “Se você tiver documentos desses em suas gavetas, deveria abrir para o mundo estudar”, diz Tina.

Ainda que exista um abismo – especialmente financeiro – entre a história da família de Branca e a minha, voltei a perguntar sobre o meu trisavô ao meu pai, cujas memórias de infância são marcadas pela pobreza. Acabei descobrindo que Cesare Donini chegou a ter terras, “muitas terras” talvez. Imediatamente saiu da minha boca a seguinte pergunta: se tinha terras, tinha escravos? Ainda que ele tenha chegado ao Brasil depois de 1888, sabemos que a escravidão não acabou com um canetaço.

Se tinha terra, tinha escravos?

Meu pai diz que não, mas eu fiquei com uma pulga atrás do orelha. E agora tenho um tema de casa a fazer.


Marcela Donini é editora-chefe da Matinal e gostaria de incentivar mais pessoas a buscarem as origens de suas famílias.
Contato: [email protected]

RELACIONADAS

Esqueceu sua senha?

ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.
ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.