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Ressaca do Dia da Mulher

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Ressaca do Dia da Mulher Ato pela vida das mulheres e legalização do aborto, em 8 de Março, na Avenida Paulista | Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil

Agora que já comemos todos os bombons e já murcharam as flores que ganhamos no 8 de março, vamos focar no que interessa, no que faz a diferença na vida das mulheres.

Um homem indiciado por importunação sexual, por exemplo. Grande vitória! Melhor do que isso: uma condenação justa. Melhor ainda só o dia em que nenhuma mulher for tocada sem consentimento.

Era “só pra tirar uma onda”, justificou Gustavo Acioli Astarita, que interpretava o Saci no Gre-Nal do dia 25 de fevereiro quando beijou à força a repórter Gisele Kümpel. Desde 2018, esse tipo de “brincadeira” – sem graça, para dizer o mínimo – é crime. A polícia civil concluiu o inquérito com base em imagens do estádio e nos depoimentos do próprio agressor e de duas vítimas – além de Gisele, uma torcedora colorada foi assediada pelo ator.

Um passo para frente, outro para trás

A notícia do indiciamento me lembrou uma conversa recente que tive com uma amiga e um amigo sobre direitos das mulheres. Ambos, desanimados, diziam que estávamos regredindo. A pauta naquele churrasco era a decisão da Suprema Corte do Alabama, nos Estados Unidos, de que embriões congelados são considerados crianças, o que pode acabar por responsabilizar uma pessoa por destruí-los.

E mais: a sentença respinga no debate sobre a legalização do aborto, extinta no estado do Alabama desde 2022, e foi celebrada por grupos conservadores que defendem a criminalização da interrupção voluntária da gravidez sob a justificativa de que a vida começa na fecundação. 

Eu, que estava num dia otimista naquele churrasco, lembrei meus amigos que há progressos. Mencionei o recente avanço da “maré verde” na América Latina, quando Argentina, México e Colômbia despenalizaram o aborto. Uma onda que chegou a bater na costa brasileira, quando a ministra Rosa Weber, às vésperas de se aposentar, em setembro de 2023, colocou em pauta a legalização da prática no Brasil, com um voto favorável. Agora o julgamento aguarda a manifestação do presidente da Corte, o ministro Luís Roberto Barroso.

Dois dias depois da nossa conversa naquele churrasco, em 4 de março, a França aprovou a inclusão do direito ao aborto em sua Constituição, tornando mais difícil futuros retrocessos (por uma bonita coincidência, no dia do aniversário dessa grande amiga e companheira de tantas lutas, a Daniela).

Mãe só tem uma?

Nesta semana, tivemos mais um avanço: o Supremo Tribunal Federal reconheceu o direito à licença-maternidade a mães não gestantes em união homoafetiva. No caso analisado, a mãe que gestou o bebê é autônoma e não tinha o direito à pausa remunerada; a outra, que cedeu o óvulo para a fertilização, é funcionária pública, mas teve a licença negada pela prefeitura de São Bernardo do Campo (SP).

A decisão é uma vitória. Mas – sempre tem um mas… –, os ministros também decidiram que, nos casos em que uma mãe já tem direito à pausa de 180 dias, a não gestante poderá contar apenas com os ridículos cinco dias da licença-paternidade.

O ministro Alexandre de Moraes criticou o fato dos colegas estarem escolhendo apenas uma mãe para ter o direito, “replicando o modelo tradicional em outra forma de família”. “Se as duas são mães, as duas têm direito”, disse. E foi além: propôs conceder duas licenças nas situações de união homoafetiva entre mulheres.

Eu sonho ainda mais longe: não só as duas mães devem ter direito a uma licença mais longa, mas os homens, em casais hetero ou homoafetivos, também deveriam usufruir de uma licença digna. Essa é uma pauta importante da luta feminista que, a meu ver, deveria receber mais atenção.

Uma licença que equipare as condições entre os responsáveis no cuidado com um bebê que acaba de chegar seria de um ganho incrível para as mulheres – e obviamente para a criança. Não vai transformar todos os homens em cuidadores exemplares da noite para o dia, mas é um ponto de partida fundamental para quem busca a equidade de gênero.

Não estou propondo nada de outro mundo. A licença-parentalidade é realidade em diversos países, como na Suécia e na Espanha, e contribui imensamente para reduzir a sobrecarga das mães. E já tem proposta tramitando no Congresso brasileiro: o Projeto de Lei 1974/2021, de autoria dos deputados Sâmia Bomfim (PSol-SP) e Glauber Braga (PSol-RJ), propõe licença de 180 dias para até duas pessoas de referência para uma mesma criança ou adolescente (no caso de adoção). O texto já foi aprovado pela Comissão de Trabalho, Administração e Serviço Público, em 2022, e aguarda análise de outras comissões até chegar ao Senado.

Aos aliados do feminismo, fica a dica: trocar as flores e os bombons por uma campanha em favor dessa ideia. Nem precisa esperar o próximo dia 8 de março. Dá para demonstrar interesse na pauta votando no site da Câmara, mandar um e-mail para o seu deputado ou deputada, postar nas redes sociais sobre o assunto e começar a ampliar esse debate.


Marcela Donini é editora-chefe da Matinal.
Contato: [email protected]

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