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Segredo e fofoca

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Segredo e fofoca Foto: Daniel James/Unsplash

Quanto de informação uma pessoa consegue esconder e por quanto tempo? Não estou falando de fofoca, embora nós jornalistas sejamos fofoqueiros profissionais, aquele tipo que checa uma informação e passa adiante mesmo quando os envolvidos prefeririam impor sigilo de 100 anos.

Falo de algo mais íntimo e que sempre me intrigou. Sou uma mulher branca cis heterossexual – não que eu seja muito convicta no último ponto (eis uma fofoca), mas é basicamente o que venho praticando nessa vida. Logo, nunca senti necessidade de esconder nada sobre minha identidade de gênero ou sexualidade. Óbvio, eu sou a cara da heterocisnormatividade. Tão privilegiada que eu posso até brincar de não ser hétero.

Privilégio para poucos. Me intrigava pensar como é possível guardar um grande segredo, viver assim pela metade. E sempre me entristeceu testemunhar amigos gays e amigas lésbicas escondendo algo que é parte da sua identidade, não é uma informação qualquer. Eu os via sofrer por não poder simplesmente ser quem eles são.

Imagine, você leitor hétero, ter de cuidar cada palavra que sai da sua boca, cada movimento que possa denotar que você não é quem a família tradicional brasileira gostaria que fosse. Em todos os lugares: no almoço com parentes, na rua, num show, numa reunião. Não consegue imaginar? Quando a gente percebe que o medo acompanha constantemente uma pessoa, se dá conta de que, bem, esconder às vezes é a única saída.

Uma pesquisa realizada com 20 mil profissionais no Brasil mostrou que apenas 55% dos que se autodeclararam como LGBTQIA+ revelam sua orientação sexual para colegas de trabalho. Digo apenas 55% porque entendo que o ideal seria que 100% não escondessem. Não que a pessoa tenha que sair com um megafone anunciando sua orientação sexual, mas num mundo justo e livre, ninguém precisaria omitir nada sobre sua sexualidade por medo, como acontece com os heterossexuais. Ou você conhece algum hétero que não saiu do armário?

Fui então conversar com quem é especialista para entender melhor os números da pesquisa realizada pela Santo Caos. Pesquisador de comportamento e mercado, Filipe Techera é, junto da pesquisadora Daniela Santos, consultor e criador do Plural, curso sobre diversidade nas empresas. Fofoca: é meu melhor amigo. Outro querido amigo, o jornalista Gabriel Galli, diretor operacional da ONG Somos, também me ajudou nessa tarefa.

Números

Antes de analisar os números, Techera fez questão de destacar a importância desses dados existirem. Ele lembra que o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) decidiu não incluir questões ligadas à comunidade LGBTQIA+ no Censo Demográfico 2022, que se inicia agora em agosto, “privando, assim, a comunidade de ter direcionamento e políticas públicas que nos deem acesso a direitos”.

Galli reforça a importância da atuação do estado. “Esses problemas não vão se resolver apenas com conscientização das pessoas. É preciso fiscalização direta do estado, com processos de correção evidentes, sanções para as empresas”, comenta.

Vamos aos números. Dos quase 20 mil profissionais entrevistados, 10,4% (2.034 pessoas) se autodeclaram LGBTQIA+. É bem mais do que os 1,8% de gays, lésbicas e bissexuais revelados pelo IBGE em maio, no primeiro levantamento do tipo feito pelo órgão. Ainda assim Techera faz uma observação: “dez por cento são aqueles que estão num estágio em que já conseguem dizer ‘sim’ ou ‘não’. Mas o dado é importante mesmo assim para se ter uma base comparativa e entender se, ao longo dos próximos anos, das próximas pesquisas, esse número cresce ou diminui. O que ajuda a entender o movimento é esse grau comparativo”.

Letras

No cenário nacional, a pesquisa sobre o mercado de trabalho mostra que 47% das pessoas LGBTQIA+ têm renda média abaixo de quatro salários mínimos, frente a 36% de quem não faz parte do grupo. Os dados não surpreendem Galli. “Temos visto com frequência que a situação de miserabilidade da população LGBT torna mais difícil resistir aos efeitos da discriminação”, comenta.

Na pirâmide de privilégios da comunidade, os homens gays são melhor remunerados. Eles são o maior grupo dentro daqueles com renda superior a 10 salários mínimos. “Isso denota uma questão séria: o quanto os homens gays, em especial os brancos, tiveram acesso mais rápido a direitos embora algumas lutas tenham sido iniciadas por mulheres travestis e mulheres trans e negras”, sublinha Techera.

Enquanto 20% dos homens gays entrevistados ganham mais de 10 salários, o índice é de apenas 6% entre as pessoas trans. Galli observa que a inserção no mercado de trabalho é ainda mais difícil para trans e travestis negras da periferia, que, com frequência, já têm negado o direito à educação formal.

Vai mal

Segundo a pesquisa, 25% dos trabalhadores LGBTQIA+ no Rio Grande do Sul já sofreram assédio no ambiente de trabalho. Techera observa que, embora a pesquisa descreva o assédio como “olhares, piadas, ofensas, entre outros”, ainda tem gente aprendendo o que é assédio moral entre outras agressões. “A gente é levado a crer que uma agressão verbal, por exemplo, não é uma ofensa, é uma brincadeira, é comum”. O levantamento também mostrou que 40% dos profissionais não veem nenhum tipo de preconceito contra essa população no local de trabalho – índice mais baixo entre os estados pesquisados.

Techera conhece bem as “microagressões cotidianas” pelas quais um homem gay pode passar no trabalho. “Homens menosprezando uns aos outros se chamando de ‘viado’. São comportamentos difíceis de comprovar juridicamente, mas a gente conhece. Aconteceu comigo e acho que acontece com a maioria das pessoas da comunidade, além de coisas muito piores, claro”.

Para Techera, esse tipo de violência se soma à “cultura de heteronormatividade que permeia as decisões em uma empresa” e que ajuda a explicar a baixa representatividade de pessoas LGBTQI+ em cargos de liderança, por exemplo.

Mas já foi pior

Techera e Galli reconhecem avanços na luta do movimento. Especificamente no mercado de trabalho, Techera pontua que há empresas globais levantando a pauta da diversidade nas organizações, seja por terem sede em países com “cultura mais respeitosa a direitos humanos” ou porque já entenderam que o mercado LGBTQIA+ é “muito relevante pra manter as expectativas de lucro”. “Ou seja, tem uma questão de cultura de fora e do capital empurrando pra que isso avance. Em geral, a contragosto das empresas (risos)“, diz, e complementa destacando o fato de novas gerações que vem chegando a cargos de liderança. “Não é só uma questão etária”, pontua, “mas de novos comportamentos conseguirem alcançar esse lugar de decisão, e isso é o que mais muda”.


Marcela Donini é editora-chefe do Matinal.
Contato: [email protected]

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