Carta da Editora

A eleição do shortinho

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A eleição do shortinho Foto: Sinitta Leunen/Unsplash

“Fiquem atentos às roupas de suas filhas, pois a partir de segunda-feira (12/9), não será permitido a entrada de roupas inapropriadas como: shorts, miniblusas, tops, croppeds… Att, Direção”.

Esse bilhete não veio de um passado longínquo. Foi entregue a alunas de uma escola municipal de Capão da Canoa na semana passada. Em 2022. Mais ou menos seis décadas desde quando a minissaia ganhou as ruas de Londres – e noventa anos desde a liberação do voto feminino no Brasil.

E o que tem a ver o c* com as calças (ou com os shorts)? Desculpa o palavreado (e o trocadilho barato), é que isso me deixa p da vida.

Mas voltemos ao tema. A roupa das estudantes de Capão e as eleições. 

Na introdução de O Segundo Sexo (1949) – livro que nasce para responder o que é uma mulher e explicar a origem das desigualdades de gênero –, Simone de Beauvoir escreve que a um homem jamais lhe ocorreria a ideia de escrever um livro sobre o seu lugar no mundo. Isso porque o homem é o “tipo humano absoluto”. Para qualquer lado que se olhe fica evidente que o mundo é pensado por e para eles – e assim será enquanto homens forem maioria nos espaços de poder e locais de destaque. 

Um tipo absoluto pressupõe um tipo secundário. Ou, nas palavras de Simone, “O Outro”, a mulher, que não é definida em si, mas em relação ao homem. Aquela que “não é considerada um ser autônomo”, conclui a filósofa. Apesar de todos os avanços que já conquistamos, essa imagem de inferioridade segue bem viva na cabeça de homens e mulheres.

Por isso não passou pela cabeça da direção da escola de Capão da Canoa regular o que os meninos deveriam vestir. Muito menos iniciar uma conversa na qual o foco seria apontar o equívoco no comportamento deles – que estariam passando a mão na bunda das gurias – em vez de pedir para as meninas esconderem seus corpos.

Foi Simone quem colocou o corpo feminino no centro do debate sobre feminismo. Além de ter inaugurado a ideia de que a biologia não define a identidade feminina – é dela a máxima “não se nasce mulher, torna-se mulher” –, foi também ela quem mostrou como nossa natureza é vista como uma prisão. Estaria no sexo biológico a justificativa para a falácia de que nascemos para o lar e tudo o que se dá no espaço doméstico, alijadas completamente da vida pública e, portanto, da política.

Aí está a raiz da desigualdade entre homens e mulheres. 

Essa visão que enxerga a mulher não como sujeito mas como objeto explica todo o machismo. Porque objeto não tem direito a voz, não tem autonomia, não tem vontade, não merece respeito. Essas velhas lentes explicam desde o tal bilhete da escola de Capão até a perseguição à Vera Magalhães, à Patrícia Campos Mello e tantas outras jornalistas mulheres que viraram alvo do governo Bolsonaro e seus apoiadores. Explicam também por que, depois de 90 anos de voto feminino, ainda somos apenas 15% na Câmara de Deputados.

Mas aqui vai um recado: o Brasil não só bateu recorde de jovens de 16 e 17 anos aptos a votar neste ano – serão mais de 2 milhões contra 1,4 milhão em 2018 – como 55% dessa faixa etária são do sexo feminino, o maior índice na história das eleições brasileiras. Dia 2 de outubro está aí, e essas serão as eleições das meninas – quer você goste do seu shortinho ou não.


Marcela Donini é editora-chefe do Grupo Matinal Jornalismo.
Contato: [email protected]

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