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POA Em Cena sai em outubro, mas edital repete modelo criticado pelo Ministério Público

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POA Em Cena sai em outubro, mas edital repete modelo criticado pelo Ministério Público 26º Porto Alegre Em Cena Espetáculo: A Ira de Narciso Foto: Luciano Lanes / PMPA

A 28ª edição do tradicional festival de artes cênicas está confirmada, mas processo manteve métodos questionados em inquérito sobre direcionamento de seleção no ano passado. Grupo à frente da realização em 2021 é o mesmo há anos

Chegou ao fim o período de incertezas sobre a realização do Porto Alegre em Cena em 2021, causado pelo cancelamento da seleção do realizador do festival no ano passado, após suspeita de favorecimento revelada em reportagem do Matinal e Nonada. Na segunda-feira (5 de abril), o Diário Oficial de Porto Alegre publicou o contrato entre a prefeitura e a Primeira Fila Produções Artísticas, que vai substituir a Associação Porto Alegre em Cena na tarefa de captar recursos e gerenciar o projeto da 28ª edição do festival. O evento deve acontecer no final de outubro, em formato virtual.

“O Em Cena saiu todos os anos, não teria porque não sair agora. Eu já tenho o recurso disponível para investir, a equipe está constituída. O que precisa é eles concluírem a captação de recursos, mas como é um grupo que vem organizado há anos nessa produção, eles já têm uma carteira de patrocinadores. Não vejo nenhuma nuvem no horizonte”, antecipou, ainda em março, o secretário municipal de Cultura, Gunter Axt, em entrevista exclusiva aos veículos do grupo Matinal Jornalismo.

A nova seleção, entretanto, foi feita por edital que manteve características que, na avaliação do Ministério Público do Rio Grande do Sul (MP-RS), prejudicam a publicidade e a ampla concorrência de interessados.

As dúvidas sobre a realização do festival surgiram depois que uma reportagem feita em parceria pelo Matinal e Nonada revelou que a associação escolhida pela prefeitura para realizar o evento havia sido fundada dentro da Secretaria de Cultura, por um detentor de cargo em comissão (CC), Fernando Zugno, que era também a pessoa responsável pela escolha da proposta vencedora. A entidade havia sido registrada no endereço do prédio público onde funciona a sede administrativa do festival – o Solar Paraíso – sem que houvesse instrumento legal que autorizasse a cessão. Artistas entrevistados pela reportagem disseram que não sabiam do chamamento público para apresentação de projetos.

Tanto o Ministério Público Estadual como o Ministério Público de Contas abriram expedientes para investigar o caso, mas ambos foram arquivados após o cancelamento da habilitação da Associação Porto Alegre Em Cena no edital. A entidade acabou extinta.

Entretanto, em seu parecer, o promotor de Justiça Felipe Hochscheit Kreutz, no MP-RS aponta problemas no formato do edital: tempo de duração muito extenso, válido por dois anos, e objeto demasiado amplo, com uma seleção aberta para inúmeros projetos diferentes, sem que fossem especificadas as qualificações que a administração pública espera dos candidatos.

“Na medida em que o edital contemplava eventos com características muito diversas, de modo a atrair interessados com perfis bastante distintos, a aglutinação e o longo prazo nele previsto dificultam o conhecimento a seu respeito”, avaliou. “Quem tivesse interesse em organizar o Porto Alegre em Cena de 2021 teria que acompanhar um edital publicado no início de 2019, o qual, aliás, sequer é específico para o evento. Como poderiam saber sobre outros interessados em promover o evento em questão, já que a habilitação era para todos os eventos?”, complementou.

PGM alertou sobre problemas antes da publicação do novo edital

O edital lançado em 1º de março de 2021 segue modelo parecido: permite selecionar empresas para inúmeros projetos e vale até 31 de dezembro de 2022.

Em parecer prévio ao lançamento da nova chamada pública, a Procuradoria Geral do Município (PGM) também reforçou a importância de que o texto da seleção deixasse mais claro o objeto a que se refere, incluindo, por exemplo, “a relação dos projetos da Secretaria que poderão ser objeto de contratação com os proponentes, com as especificações mínimas a serem atendidas pelos contratados, para que todos os inscritos tenham acesso a essas informações”. Mas a publicação do Diário Oficial não faz qualquer menção ao Porto Alegre em Cena – nem a outros eventos públicos que estejam recebendo projetos. Diz apenas que vai contratar “empresas para prestação de serviços de elaboração, formatação e acompanhamento dos projetos culturais” da SMC, “de acordo com o calendário de eventos” municipais.

Por outro lado, o novo edital incorporou a sugestão da PGM de vedar a participação de proponentes “que tenham entre seus membros servidores atuais e recentes desta Prefeitura, em especial da Secretaria Municipal da Cultura”. A preocupação visava garantir o cumprimento “dos princípios da legalidade, da publicidade, da isonomia e da probidade administrativa”, e “afastar a possibilidade de que a lisura do procedimento seja maculada por suspeição”, conforme sublinhou o procurador-chefe Alexandre Azambuja Guterres, que assina a nota técnica de análise do novo edital, um passo necessário para assegurar que o processo ocorra de forma correta

A Secretaria Municipal de Cultura acatou outra sugestão e nomeou uma comissão de seleção formada por três servidores municipais (Álvaro Franco, Luiz Alberto Gusmão e José Miguel Ramos Sisto Júnior) para avaliar as propostas recebidas neste ano. Segundo a PGM, no edital anterior não havia clareza em como se deu a escolha do dos projetos dos proponentes.

As observações vão na mesma linha daquelas que já haviam sido feitas pelo promotor Kreutz, do MP-RS, que assinalou ter sentido falta de documentação que demonstrasse os “motivos ou critérios utilizados” na escolha da Associação Porto Alegre em Cena para promover o evento. “Não estando explicitados referidos critérios, há indícios de grande margem de subjetividade na escolha da associação investigada para promover o Porto Alegre em Cena, o que, no caso em tela, gera fundada dúvida sobre a legalidade da decisão tomada”, observou.

Mesmo grupo está à frente do festival há anos

A seleção feita pelo edital 001/2021 é apenas de proponência e gestão do 28º Porto Alegre em Cena – ou seja, a Primeira Fila fica responsável pelo projeto de captação de recursos de empresas privadas através das leis de incentivo à cultura e deve fazer a devida gestão dos recursos. Segundo Letícia Vieira, sócia da empresa que venceu a seleção, a indicação dos profissionais que trabalham no festival é uma escolha do coordenador geral do evento. “Como proponente [em 2021], não tenho gerência sobre isso”, informou por WhastApp, sem atender aos pedidos da reportagem por mais detalhes.

Mas segundo o secretário Gunter Axt, a equipe do Em Cena já está formada. “Como a produção do festival é terceirizada, a equipe do Em Cena é essencialmente composta a partir dessa plataforma [o edital]”, explicou.

Vieira trabalhou na realização do festival de 2017 a 2020 ao lado de todos os integrantes da agora extinta Associação Porto Alegre em Cena, que seria a realizadora da edição caso sua seleção não tivesse sido anulada após a repercussão da reportagem que revelou sua contratação. Porém, seu nome não estava entre os associados.

Como o grupo que formava a extinta entidade trabalhou, pelo menos, nas últimas cinco edições do evento, não houve surpresa por parte do Sindicato dos Artistas e Técnicos de Espetáculos de Diversões do Rio Grande do Sul (Sated) ao saber com quem se reuniria em março deste ano para tratar do Porto Alegre em Cena. Apesar de ter sido exonerado de seu cargo na pasta em fevereiro deste ano, Fernando Zugno foi o nome indicado pela secretaria para ir ao encontro, de acordo com o presidente do Sated, Luciano Fernandes, que sublinhou que “a conversa foi informal”. 

Axt informou que Zugno “está em negociações” com a secretaria e “ainda não ocupa nenhuma posição oficialmente determinada”. Mas, em uma agenda prevista para o dia 15 de abril, Zugno participa de um debate público sobre o futuro dos festivais no qual é apresentado como “diretor e curador do Porto Alegre em Cena”, cargo que ele ocupou nas últimas quatro edições.

O Porto Alegre em Cena é organizado pelas mesmas pessoas há anos. A reportagem checou os catálogos do evento e concluiu que, pelo menos desde 2015, os nomes se repetem. Mas a relação é mais antiga, conforme os integrantes do grupo confirmaram no ano passado. A raiz do coletivo é o ex-secretário de Cultura Luciano Alabarse (2017-2020), que era coordenador de artes cênicas da prefeitura municipal em 1994, quando a primeira edição do festival foi realizada. Desde então, em apenas quatro edições ele não esteve à frente do evento realizado anualmente.

Sindicato de artistas quer mais transparência

A manutenção de um mesmo grupo à frente do maior evento de artes cênicas do Rio Grande do Sul – e certamente um dos mais importantes do país – é controversa. Por um lado, a diretoria do Sated cobra “mais transparência” e diz que quer fazer parte do festival de forma definitiva. A entidade ajudou a idealizar o Em Cena nos anos 1990 e cobra participação mais ativa na seleção de espetáculos que compõem a grade de apresentações – o que está previsto na lei municipal que instituiu o festival. Mas nos últimos anos o Sated tem participado apenas da curadoria dos espetáculos locais e fez parcerias para cursos de aperfeiçoamento técnico.

“O Porto Alegre em Cena é um festival público, uma lei do município de Porto Alegre. Aqui, temos um formato em que o modelo de gestão e o modelo artístico se confundem. A mesma pessoa está à frente das duas coisas. Acontece em outros casos no Brasil, mas há festivais públicos que promovem maior rotatividade na curadoria artística”, explica a jornalista Michele Rolim, que estuda festivais de teatro na pós-graduação da Ufrgs e já publicou um livro sobre curadoria.

Ela cita dois modelos que poderiam romper com esse paradigma. Em Recife, há dois postos diferentes no festival local: um gestor administrativo e um curador, que é convidado pela prefeitura mas não se repete. O exemplo ideal, na visão de Rolim, seria o festival de teatro de Belo Horizonte, que a cada edição lança um edital de curadoria no qual são avaliados conceitos de curadoria para serem desenvolvidos. 

Por outro lado, especialmente para a edição de 2021, a experiência dos realizadores vem sendo vista com bons olhos tanto pela administração pública como pelos artistas, já que restou menos tempo para captar recursos depois que as investigações do MP e do MPC atrasaram a assinatura do contrato. A Primeira Fila, por exemplo, foi a captadora e gestora dos recursos financeiros do Porto Alegre em Cena entre os anos de 2017 e 2020, conforme seu portfólio online – pré-requisito importante, segundo Axt, porque ajuda a colocar o evento de pé em tempo menor. “A empresa tem experiência de cerca de uma década na produção do festival, o que é bom para a cidade, afastando riscos de solução de continuidade”, complementa Axt.

“De uma forma ou de outra, é um grupo que tem know how em fazer o evento. Mas seria mais democrático se pudesse ser mais aberto, com a participação das entidades”, complementa o presidente do Sated.

A curadoria artística do grupo ligado a Alabarse também costuma ser elogiada pela classe artística. Sob sua batuta, o Em Cena se transformou em um dos mais importantes eventos culturais do Brasil, trazendo a Porto Alegre espetáculos e artistas de renome internacional, com ingressos a preços populares.

Axt defende lei para cessão de prédios públicos

Além da relação próxima entre Zugno e os integrantes da associação que ele próprio escolheu para realizar o festival no edital do ano passado, a reportagem publicada por Matinal e Nonada mostrou que a entidade privada havia sido registrada em um endereço público: o Solar Paraíso, sede administrativa do Em Cena e local onde Fernando Zugno dava expediente. 

Nas defesas que enviaram ao Ministério Público do Estado, tanto a prefeitura municipal (leia aqui) como a extinta Associação Porto Alegre em Cena (leia aqui) informaram que houve um pedido formal de cessão do Solar Paraíso para a entidade. A solicitação foi feita em agosto de 2020, mas não havia sido avaliada até o momento em que a contratação se tornou pública.

“É importante que se diga que inúmeras associações de amigos funcionam nos próprios prédios que elas se dedicam a proteger. Temos histórias de sucesso na Casa de Cultura Mario Quintana, no Margs, no Theatro São Pedro. Mas no Estado há um marco jurídico que regula o funcionamento das associações, e no município não há. Precisamos de uma legislação para as associações de amigos que apoiam nossas entidades culturais; eu gostaria muito de trabalhar em parceria com elas, porque esse é um modelo que funciona no Estado”, defende Gunter Axt.

O secretário também tece críticas sobre a reportagem feita em conjunto pelo Matinal e Nonada que revelou o problema. “Quando as coisas são um pouco tiradas de seu contexto elas parecem muito mais cabeludas do que realmente são. Eu não acho que tenha sido certo o debate sobre a sede da associação, mas como foi extinta, o problema também foi encerrado”, observa.

Em sua promoção de arquivamento, o promotor de Justiça Felipe Hochscheit Kreutz anota que “mesmo que o prédio público constasse no CNPJ como sede da empresa, não chegou a ser formalmente autorizado pelo Município o uso deste pela entidade privada”. Matinal reforça que solicitou tanto ao poder público como à entidade esclarecimentos a esse respeito e que ambos foram objetivos ao informar que não havia qualquer documento que regularizasse o uso do Solar Paraíso pela associação.

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