Reportagem

Abrigos têm voluntários sobrecarregados e pessoas sem previsão de voltar para casa

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Abrigos têm voluntários sobrecarregados e pessoas sem previsão de voltar para casa Abrigo da Escola Aurélio Reis, no bairro Jardim Floresta, acolhe 61 vítimas das enchentes. Foto: Geovana Benites/Matinal

Desde os primeiros dias de maio, mais de 2 milhões de pessoas foram atingidas de alguma forma com as enchentes no estado. Dentre essas, mais de 70 mil tiveram que se mudar para abrigos em várias cidades. Só na capital, o número chega a 12,5 mil pessoas acolhidas em 149 abrigos, e muitos ainda seguem sem conseguir retornar às suas casas. 

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Nos últimos dias, esses locais começaram a dar indícios de desmobilização. O que poderia ser um movimento normal à medida que as águas vão baixando, voltou a preocupar por conta das chuvas e alagamentos da última quinta, dia 23, em Porto Alegre, adiando os planos de quem iria tentar retornar para casa.

Foi o que aconteceu com uma família abrigada na Associação dos Profissionais em Telecomunicações e Tecnologia da Informação (ASTTI), que estava pronta para deixar o ponto de acolhimento, mas foi impedida pelo o avanço da água na quinta-feira (23). 

“Eles tiveram que ficar e acabaram cancelando o frete dos mantimentos que estamos preparando para eles, que é basicamente um enxoval com material de limpeza, cesta básica, roupas, o suficiente para que eles não precisem se preocupar com esse tipo de coisa tão cedo”, conta Pauline Mariani, coordenadora do abrigo. A ASTTI é um dos espaços que segue abrigando pessoas, mas que já vem reduzindo as atividades para que o clube possa retornar ao funcionamento normal. 

Abrigo na ASTTI foi criado por iniciativa da direção do clube. Foto: Brayan Martins/Divulgação

De acordo com Pauline, a associação, que chegou a receber 133 desabrigados, continuará abrigando as 87 pessoas que permanecem no local até que elas tenham condições de sair do local. “Até agora, quem saiu não voltou para casa, foram para outros abrigos junto com o resto da família, algumas as empresas locaram casas para que elas fossem para outro lugar com dignidade. Outras famílias tiveram pessoas conhecidas que se juntaram para pagar um ano de aluguel, enfim, dessa forma as pessoas vão saindo”, conta. 

Em paralelo, no abrigo da Sogipa houve uma redução significativa dos abrigados, mas o clube não tem perspectiva de fechar, já que a mobilização não atrapalha as atividades do local. “Chegamos a receber umas 480 pessoas, hoje estamos com 170. De forma geral, o clube está adaptado ao abrigo porque ele não está atrapalhando a nossa rotina, então deve seguir”, diz o assessor Fabrício Falkowski.

“As pessoas não tem para onde voltar”

Conforme mostrou reportagem da Matinal, a prefeitura demorou para prestar apoio aos abrigos, que seguem tendo 80% dos pontos coordenados por voluntários, sem influência direta do município. Uma das ações iniciais foi o envio de equipes para cadastro e registro das pessoas que estavam sendo acolhidas. 

Segundo informações de uma servidora que integrou os grupos de trabalho, a prefeitura convocou 200 pessoas para visitar os abrigos da capital e coletar informações sobre os refugiados climáticos. A funcionária, que preferiu não ser identificada, visitou cinco pontos de acolhimento localizados em diferentes bairros da capital.

Durante o cadastramento, a servidora conversou com centenas de famílias, a maioria oriundas dos bairros Humaitá, Vila Farrapos, Sarandi, Floresta e Ilhas. Ela conta que grande parte das pessoas pensa em voltar para casa, mas não têm ideia se será possível, já que no geral a água chegou ao teto das residências. “Elas dizem que perderam tudo que tinham dentro de casa. Um senhor, que mora na Vila Farrapos, em um barraco de madeira disse que realmente não tem pra onde voltar”, relata.

Além daqueles que tiveram suas casas alagadas e destruídas pela água, em meio às enchentes, a população em situação de rua também teve que procurar abrigo. O Colégio Estadual Júlio de Castilhos, no bairro Santana, é um dos locais que mais tem recebido pessoas nessas condições. De acordo com a servidora, alguns abrigados ali estavam anteriormente em pensões e pousadas, inclusive espaços do grupo Garoa, que teve uma de suas unidades incendiada, deixando 10 mortos, em 26 de abril.  

A servidora ressalta ainda o despreparo dos servidores convocados, que não tiveram treinamento para tal tarefa. “Entendo que foi na emergência, mas presenciei muitas situações de racismo velado – ou nem tão velado – e preconceito nos atendimentos, por parte dos servidores com os abrigados. Para mim, isso foi o pior”, diz. 

Queda no número de abrigos 

Nas duas últimas semanas, o número de pontos de acolhimento em Porto Alegre começou a cair. A capital chegou a ter mais de 14 mil desabrigados e 154 espaços de acolhimento. Em coletiva no dia 21, o prefeito Sebastião Melo apelou que os abrigos já constituídos prorroguem seus serviços, ainda que algumas entidades já demonstrem interesse em retomar suas atividades anteriores.

Na ocasião, Melo defendeu que os custos sejam divididos pelos governos municipal, estadual e federal. Em contato com a assessoria de imprensa do gabinete do prefeito, a reportagem questionou se houve andamento na solicitação desses recursos, mas não obteve retorno até o fechamento desta matéria. 

Em relação ao apoio prestado aos pontos de acolhimentos, de acordo com o secretário de Inovação de Porto Alegre e coordenador da central de abrigos, Luiz Carlos Pinto, a pasta tem contato com os locais diariamente, principalmente para saber as necessidades dos espaços. “A prefeitura tenta fazer com que os abrigos não fechem, e tenta fornecer estrutura e identificar o porquê do fechamento. Caso necessário, aceita o fechamento e tenta abrir outro local”, afirma o secretário.

Sobre a realocação de pessoas, Luiz Carlos explica que o município busca “fazer uma realocação com dignidade, já que é sempre estressante porque as pessoas já saíram de casa e se acostumaram com os abrigos.” A central é responsável por assistir os pontos de acolhimento e realocar as pessoas, inclusive de outras localidades. 

Apesar disso, a ajuda parece não chegar a quem precisa – tanto para os abrigos quanto aos voluntários que os mantêm funcionando. 

Voluntários sobrecarregados 

A Escola Estadual Aurélio Reis, localizada no bairro Jardim Floresta, funciona como ponto de acolhimento desde o início das inundações, mas agora luta para manter-se funcionando. Gerenciado por um grupo de jovens com idades entre 20 e 25 anos, o abrigo recebe 61 pessoas e conta com a organização de voluntários que precisam deixar a coordenação para que possam retornar às suas vidas particulares.

Localizado na zona norte, o abrigo da Escola Aurélio Reis conta com a mão de obra de voluntários para administrar as demandas. Foto: Geovana Benites

Coordenadora do abrigo, Cristiane Leão Caetano conta que o desejo dos voluntários é que a prefeitura assuma o local para que os abrigados não fiquem desassistidos. “Servidores da prefeitura vem quase todos os dias e perguntam se a gente precisa de alguma coisa e, no geral, estamos bem abastecidos, mas o nosso problema é a falta de voluntários”, relata a estudante de Biomedicina, que divide o voluntariado com estágio e aulas online. 

Os pedidos à central de abrigos são constantes, mas a resposta que chega tem sido a mesma: “não tem quem mandar, não tem o que fazer, não tem previsão”, relata Cristiane. 

A escola acolhe 61 moradores – a maioria vizinhos, residentes da Vila Farrapos e do Sarandi. A maior parte dos abrigados esperam a água dos bairros baixar para que possam começar a limpeza das casas. “Todos estão cansados, tudo o que mais querem é voltar para casa. Depois de visitar as residências, eles voltam todos frustrados e decepcionados”, completa a coordenadora.

Voluntários dividiram as salas de aula em quartos exclusivos para mulheres e quartos somente para homens. Fotos: Geovana Benites

Administrado integralmente por voluntários, o abrigo conta com a promessa da prefeitura de que seriam enviadas algumas pessoas para ajudar na organização, assim como pessoas contratadas emergencialmente. Porém, até agora, além das assistentes sociais que conversam com as vítimas, o abrigo recebeu somente dois voluntários cadastrados no formulário aberto pelo município. 

“É sempre uma luta. É um trabalho muito cansativo, porque imagina assim: tu já trabalhou o dia inteiro e tu ainda vem aqui trabalhar, é cansativo”, conta Cristiane, que faz parte dos voluntários que tentam se revezar, mas acabam ficando sobrecarregados.

Espaços ainda contam com pouco apoio

Próximo à Escola Aurélio Reis, o CTG Maragatos, no bairro Jardim Floresta, já recebeu 100 pessoas, mas hoje abriga apenas 45, entre moradores do Sarandi, Humaitá, Navegantes e Canoas. “A prefeitura vem aqui, pegam dados e informações, e saem. Efetivamente não ajudam”, conta Ana Paula Machado, responsável pelo abrigo. 

Assim como a escola vizinha, o CTG recebe com frequência assistentes sociais da prefeitura, bem como servidores do Ministério Público, que trazem informações sobre benefícios aos atingidos pelas enchentes. Além dos problemas de abastecimento, com baixo recebimento de doações, o abrigo enfrenta ainda a falta de policiamento e seguranças no local. O pedido foi feito, mas a ajuda não chegou. 

CTG segue precisando de doações para manter-se funcionando. Foto: Geovana Benites

A escassez de voluntários também tem afetado o funcionamento do ponto de acolhimento, que já chegou a ter somente uma pessoa durante toda a madrugada para fazer a vigília do abrigo inteiro. “Temos uma voluntária advogada que inclusive reuniu papeladas para que os outros possam apresentar em seus trabalhos para seguirem se voluntariando aqui, mas muitas empresas não aceitam e eles acabam não tendo tempo para vir ajudar.”

Ana Paula garante que o abrigo não será fechado, mas ressalta que não poderá receber mais pessoas devido à falta de apoio. “Eu entendo que a população assumiu para fazer a organização na hora que precisava, só que agora a gente precisa do poder público”, completa.

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