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Setor industrial vence ambientalistas e “autolicenciamento” é liberado para 49 atividades no RS

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Setor industrial vence ambientalistas e “autolicenciamento” é liberado para 49 atividades no RS Aprovação de Licenciamento ocorreu após participação do governo na COP26 | Foto: Maurício Tonetto / Palácio Piratini

Previsto em código estadual aprovado pelo governo Leite em 2020, “autolicenciamento ambiental” teve regras aprovadas no Conselho Estadual do Meio-Ambiente, mas pode ser revogado pelo STF

As regras para uma nova modalidade de licenciamento ambiental, a Licença Ambiental por Compromisso (LAC), foram aprovadas em sessão do Conselho Estadual do Meio Ambiente (Consema) nesta quinta-feira. O placar foi de 17 votos a favor da resolução proposta pelo governo estadual, sete contra e duas abstenções. Com isso, 49 atividades econômicas dos setores pecuário, industrial e de construção se tornam licenciáveis no RS por meio da LAC – 31 destas têm de médio a alto potencial poluidor. Proposta pelo governo Leite, esse tipo de licença segue os moldes de um projeto defendido por aliados do presidente Bolsonaro e que aguarda para ser votado no Senado Federal.

Apelidada por ambientalistas de “autolicenciamento”, a medida dispensa uma sequência de licenças – prévia, de instalação e de operação – e permite que empresários sejam licenciados por meio da submissão via internet de uma lista pré-definida de laudos técnicos e de um termo de compromisso no qual o empreendedor garante estar dentro da lei e que os documentos prestados estão corretos. A modalidade libera a operação de empreendimentos sem que passem por uma análise inicial da Fepam, a Fundação Estadual de Proteção Ambiental, órgão público responsável por fiscalizar e licenciar atividades com impacto ambiental e que participou da construção da resolução aprovada.

A engenheira florestal Marjorie Kauffmann, presidente da Fepam, rebate que a LAC seja um “autolicenciamento” e afirma que a ideia é dar uma carta de confiança à autodeclaração de empresários. “O licenciamento será solicitado pelo empreendedor, deferido e fiscalizado posteriormente. A LAC foi criada para dar um encaminhamento ágil para atividades cujos impactos já conhecemos. Se já conhecemos, por que não dar a regra para as pessoas executarem com o compromisso de segui-las?”, questiona. A presidente da Fepam compara a nova licença ao imposto de renda, que também é declaratório, mas não dispensa fiscalização: “A LAC só alterou a ordem das intervenções porque haverá análise, mas não previamente à emissão”.

A modalidade havia sido criada pelo Código do Meio Ambiente, sancionado pelo governador Eduardo Leite em janeiro de 2020, mas aguardava a resolução do Consema para a definição de suas regras e das atividades licenciáveis. Na opinião do biólogo Paulo Brack, diretor do Instituto Gaúcho de Estudos Ambientais (InGá) e professor da UFRGS, a medida é um “balão de ensaio” para liberar um “autolicenciamento” amplo: “Começam com essas [49 atividades] e depois abrem para outros setores. Hoje, acho que o mais preocupante é abrir o precedente para incluir depois, ao longo do tempo, outras atividades”, alerta.

Kauffmann não descarta essa possibilidade, já que o código ambiental atribuiu ao conselho estadual essa regulamentação. “Depende do Consema tanto a expansão quanto a redução do número de atividades. Propusemos essas para que fossem licenciadas nesse formato, mas nada impede que venha a se renovar e incluir outras”, diz. Ela estima que cada etapa dos principais licenciamentos concedidos – prévio, instauração e operação – demora cerca de três meses. Com a LAC, este prazo seria reduzido ao ato de cadastro do empreendimento na Fepam, conforme a resolução aprovada nesta quinta.

A Fepam indeferiu uma razão média de 10% das licenças prévias durante o governo Sartori, na comparação entre análises aprovadas e indeferidas, mas poucas licenças de operação e instauração foram negadas. Isso porque, após a licença prévia, a taxa de indeferimento tende a cair já que muitos projetos já passaram pelo filtro regulatório, diz Gonçalo Ferraz, biólogo e professor da UFRGS. “Para mim, isto é evidência de que o sistema estava cumprindo seu papel. Indeferimento de 1/10 [de licença prévia] significa que tem muita gente tentando fazer passar projeto errado”, analisa. Pelos dados, a partir da pandemia, no entanto, a média de indeferimentos cai e o número de licenças únicas (reguladas pelo governo em janeiro de 2020) salta. 

Sem ambientalistas, câmara que analisou LAC é presidida pela Farsul

Após a sanção do código ambiental estadual, o governo começou a discutir uma resolução para a LAC em março de 2020, por meio da Câmara Técnica de Gestão Compartilhada Estado/Municípios do Consema, que não tem assentos para ambientalistas e é presidida pela Farsul, a Federação da Agricultura do Rio Grande do Sul. Antes de ir a plenário nesta quinta, a minuta da resolução havia sido aprovada por unanimidade pelo grupo de 12 representantes – seis deles ligados ao governo e quatro à indústria e ao agronegócio.

Com oito câmaras técnicas que servem para “estudar, subsidiar, dar parecer, elaborar minutas de resoluções e fazer proposições sobre os assuntos que lhe forem encaminhadas”, a câmara liderada pelo agronegócio foi escolhida pelo plenário do Consema, onde o governo Leite tem maioria. Essa decisão foi questionada pela conselheira Lisiane Becker, bióloga e coordenadora do Instituto Mira Serra. Becker pensa que a discussão deveria ter ocorrido na câmara de Planejamento Ambiental, que inclui assentos para ambientalistas. “O LAC é uma política pública macro que tende a toda hora ser alterada e ir agregando mais e mais códigos. No meu entendimento, deveria ter sido analisado pela CT de Planejamento Ambiental”, lamenta.

Coordenado por um representante da Fiergs, a Federação das Indústrias do Estado do Rio Grande do Sul, o grupo de trabalho que definiu as atividades a serem liberadas para a LAC incluiu 49 atividades dos setores industrial, calçadista, de construção, pecuária e agroindústria. Na sessão desta quinta, a resolução foi defendida pelo representante da Sociedade de Engenheiros do RS (Sergs), que tem assento no GT que discutiu essas regras. A Sergs, por exemplo, inclui entre seus mantenedores e patrocinadores construtoras, imobiliárias e siderúrgicas que serão contempladas por essa resolução.

O biólogo Paulo Brack afirma que Farsul e Fiergs, que capitanearam a discussão da resolução junto à Fepam, são duas federações com assentos no Consema que “tentam silenciar avanços em defesa do meio ambiente” e apoiam a política ambiental do governo Bolsonaro. Não à toa nas visitas do presidente ao Estado, tanto Farsul como Fiergs o receberam com entusiasmo e chegaram a promover a “motociata” que ocorreu em Porto Alegre em seu apoio, mesmo durante manifestações de cunho golpista.

A pauta do “autolicenciamento” é promovida pelo Planalto. Em projeto aprovado na Câmara com relatoria do deputado federal Nedel Geller (PP-MS), apoiador de Bolsonaro, a Licença Ambiental por Compromisso é um dos pontos polêmicos que atraíram amplo repúdio de ambientalistas. Hoje, essas novas regras aguardam votação no Senado. Regras mais brandas de licenciamento ambiental para empresários têm norteado diversas medidas de Bolsonaro. 

Mas na avaliação da presidente da Fepam, que não gosta da comparação com o projeto apoiado pelo Planalto, a LAC aprovada pelo governo estadual “não abre porteiras” nem facilita ou favorece a ninguém, o que diferenciaria a política Leite da de Bolsonaro – apesar do PSDB ter votado em peso a favor do projeto, inclusive os dois tucanos gaúchos, Daniel Trzeciak e Lucas Redecker. Kauffmann diz que o governo estadual regular o tema por meio do Consema “prova como somos diferentes do governo federal” e afirma que o Piratini liberou o novo licenciamento para atividades com impacto brando e já conhecido. O projeto apoiado pelo Planalto de fato é mais agressivo no impacto das atividades licenciadas via LAC, mas os termos regulados pelo Consema não se contrapõem aos aprovados pela Câmara Federal para o “autolicenciamento”. 

Disputa no STF

O fato de não existir uma legislação federal aprovada para o LAC, como a que tramita no Senado Federal, trouxe acusações de que o governo estadual está criando uma nova licença, não prevista nacionalmente, o que seria inconstitucional e invadiria atribuições do governo federal. Isso motivou uma ação do Ministério Público estadual à Procuradoria-Geral da República, que entrou com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade contra a LAC e mais dois dispositivos do Código Estadual do Meio Ambiente.

Desde agosto, a ADI 6618 está parada nas mãos do ministro Ricardo Lewandowski. Ao Matinal, o STF respondeu que até o momento não há previsão de julgamento para a ação. Por esse motivo, a conselheira Lisiane Becker questionava a própria votação da LAC. “Seria totalmente inseguro juridicamente aprovar um licenciamento estadual enquanto o federal não foi aprovado e estamos sob júdice”, critica. Na sessão desta quinta, Becker chegou a propor a suspensão da votação, mas o plenário rejeitou a proposta por 16 votos a 6.

Kauffmann diz que outros estados já implantaram Licenças por Compromisso e obtiveram vitórias no STF quando questionados, mas que se houver decisão contrária ao Piratini, o RS irá retroagir na resolução. A presidente da Fepam explica que esse modelo de licença já está em vigor em estados como Bahia, São Paulo, Santa Catarina e Minas Gerais. “Eles iniciaram testando algumas atividades, que é o que vamos fazer aqui, mas no momento que se observar dificuldade no cumprimento das regras ou facilitação aos empreendedores, seremos os primeiros a solicitar revisão. É por isso que o RS atribuiu a inclusão e exclusão de atividades ao Consema, porque na lei não estaria em um plenário tecnicamente qualificado para tal”, afirma. 

Becker, por outro lado, alerta que a experiência do “autolicenciamento” na Bahia para atividades como postos de gasolina, estações de telefonia celular e transportadoras de resíduos perigosos criou um ambiente propício para irregularidades. A bióloga e conselheira apresenta análise da Anamma, a Associação Nacional de Municípios e Meio Ambiente, de junho deste ano. Conforme os gráficos, entre 2016 e 2018, de 1.404 LACs emitidas na Bahia, apenas 6% (80 estabelecimentos) foram fiscalizados. Destes, 89% (71) tinham pendências ou irregularidades. Para evitar isso, diz a presidente da Fepam, empreendimentos autorizados via LAC terão prioridade na fila de fiscalização do órgão.

Clique e leia o parecer do Instituto Mira Serra com argumentos contrários à LAC, apresentado ao Consema

• Leia abaixo a minuta com as correções propostas pela Fepam ao texto proposto pelo governo Leite que estabelece os critérios para a emissão de Licença Ambiental por Compromisso no Rio Grande do Sul.

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