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Como Porto Alegre pode se inspirar na Cidade do México para revisar seu plano cicloviário

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Como Porto Alegre pode se inspirar na Cidade do México para revisar seu plano cicloviário Lançada como alternativa temporária na pandemia, a Ciclovia Insurgentes tornou-se permanente no início deste ano (Foto: ITDP México)

Com investimentos em mais quilômetros de ciclovias e integração entre diferentes modais, a capital mexicana vive uma revolução do pedal

“Bicicletas na Cidade do México? Vocês pensam que são Amsterdã?” Manuel Suárez Lastra não esquece o ceticismo que rondava as primeiras discussões que resultariam no atual plano cicloviário da Cidade do México, um documento que começou a ser gestado em 2007. Encarregado de coordenar o diagnóstico de mobilidade, com o objetivo de propor alternativas para conectar pontos em diversas regiões de uma das maiores cidades do mundo, ele tinha noção do tamanho do desafio. “É uma cidade caótica.”

A capital mexicana impressiona pela dimensão de qualquer estatística relacionada à mobilidade. Seu sistema de transporte público é complexo: tem ônibus, BRT, trólebus (ônibus elétrico), o novíssimo teleférico e o metrô, com mais de 50 anos e por onde passam 5 milhões de pessoas por dia. As viagens de carro, em média, levam 1 hora, mas podem durar até o dobro disso, observa Lastra, diretor do Instituto de Geografia da Universidade Nacional Autônoma do México e mestre em planejamento urbano pela Universidade da Califórnia (Berkeley)​​. Ao longo de 2021, os motoristas perderam, em média, 119 horas no trânsito.

Para dar conta da empreitada, a equipe de Lastra desenvolveu uma metodologia específica. “Em geral, cidades onde havia infraestrutura cicloviária seguiam uma lógica de ‘por aqui porque se pode’ ou ‘porque é a via principal’. Não havia um diagnóstico prévio. Me preocupava o contexto da Cidade do México, com seus cerca de 9 milhões de habitantes, de um total de 20 milhões considerando a região metropolitana”, diz.

Seu objetivo era definir por onde deveriam ser construídas as faixas exclusivas para ciclistas e implementados os bicicletários e pontos de bicis compartilhadas de modo a beneficiar mais gente para depois expandir essa infraestrutura. A primeira enquete foi feita em 2007, quando estimaram-se 98 mil viagens em bicicleta por ano. Naquela época, a cidade contava com apenas 72 quilômetros de ciclovia, a primeira delas, construída sobre uma antiga ferrovia e com fim originalmente recreativo.

Atual administração municipal implementou 202 quilômetros de ciclovias em três anos (Foto: Secretaria de Mobilidade da Cidade do México)

Uma década depois, quando a cidade já dispunha de 242 quilômetros, um novo estudo foi realizado, e chegou-se à estimativa de 298 mil viagens. A contagem foi feita com uma equipe espalhada por 200 pontos pela cidade. A cada 10 ciclistas que passavam pelo contador, um era entrevistado, para saber a origem e o propósito do deslocamento, o tempo médio de viagem entre outras informações. Para evitar contar uma bicicleta duas vezes, entregavam placas de identificação para que fossem penduradas na magrela. 

Novos estudos foram feitos depois de 2017, e confirmou-se a hipótese de que a infraestrutura cicloviária estimulava de fato a população a pedalar mais. Mas ainda há quem se pergunte quem vem primeiro, as ciclovias ou os ciclistas. Bernardo Baranda, diretor regional para a América Latina do Instituto de Políticas para Transporte e Desenvolvimento no México, responde: “Uma infraestrutura segura atrai novos usuários. Por outro lado, é mais fácil iniciar o processo em lugares onde já há demanda de ciclistas”. 

Baranda cita três diferentes perfis de pessoas quando o assunto é pedalar. Um deles, o mais raro, são os ciclistas que vão pedalar independentemente da infraestrutura das vias. No outro extremo, estão as pessoas que jamais vão subir numa bicicleta “mesmo que Porto Alegre se torne Amsterdã”, brinca. Já a maioria da população está no grupo que, sim, tomaria as ruas da cidade sobre duas rodas se as condições fossem adequadas.

Em um momento em que Porto Alegre começa a debater a revisão do seu plano cicloviário, publicado em 2009, olhar para a Cidade do México – guardadas as devidas proporções –, pode ser inspirador. A gestão de Sebastião Melo (MDB) tem promovido encontros com diferentes atores envolvidos no tema, de comerciantes a cicloativistas, e já apresentou sua proposta para ampliar a rede cicloviária, que hoje soma 70 quilômetros. O objetivo é passar de 100 quilômetros até 2024, meta ainda longe dos 495 previstos no plano cicloviário sancionado em 2009.

Infraestrutura e integração

Para que a capital mexicana mudasse sua imagem para a de uma “cidade em que se pode pedalar”, Baranda diz que foram necessários avanços em três direções. Um deles são os investimentos recentes em infraestrutura, em especial aqueles que consideraram recomendações técnicas como evitar faixas sobre as calçadas e utilizar barreiras físicas nas vias, e não apenas pintura, por exemplo, além de implementar ciclovias em lugares emblemáticos. Fechar vias aos domingos para estimular o uso do veículo de duas rodas é outra estratégia elogiada pelo especialista – e velha conhecida dos porto-alegrenses que já pedalam nos finais de semana na Edvaldo Pereira Paiva e nos corredores de ônibus da Terceira Perimetral e da Aureliano de Figueiredo Pinto aos domingos.

Sistema de bicis compartilhadas foi inaugurado em 2010 (Foto: Reprodução/Semovi)

Por fim, ele cita a implementação do sistema de bicicletas compartilhadas, inaugurado em 2010. “Um dos melhores da América Latina”, afirma. “Foi um investimento importante. Era o mesmo sistema usado em Barcelona. Isso ajudou a posicionar a bicicleta como algo levado a sério.” Hoje a operação da Ecobici chega a 32 colônias (que são como bairros), com 687 estações e 9.308 bicicletas.

O sistema compartilhado é considerado por Baranda um ponto chave para garantir a conexão entre os modais disponíveis nas cidades – mais um ponto para Porto Alegre, onde está sendo ampliado o serviço operado pela TemBici, que vai passar a oferecer mil bicicletas e 100 estações, mais do que o dobro de hoje. Outro destaque, segundo o pesquisador, são os bicicletários, que focam nas pessoas que têm bicicleta própria. 

Na revisão do plano de Porto Alegre, já estão previstos de seis a 10 bicicletários, que devem ser viabilizados a partir dos 6 milhões de financiamento via Banco Regional de Desenvolvimento do Extremo Sul (BRDE), que está em tramitação, informa a diretora de Mobilidade Urbana da Capital, Carla Meinecke. Alguns locais de alta demanda já foram mapeados, como a estação Farrapos do Trensurb e o Triângulo da Baltazar, cita Meinecke. Segundo ela, serão bicicletários fechados e pagos, provavelmente operados pela iniciativa privada.

Na capital mexicana, existem 10 bicicletários públicos localizados em estações de metrô, com capacidade total para 2.276 bikes. Como parte da estratégia de integração, o usuário pode usar o mesmo cartão para acessar o metrô e o sistema de aluguel de bike, entre outros modais. Baranda elogia o serviço de guarda para as bicicletas, “ainda que não haja em todas as estações”, observa. Ele considera a alternativa mais eficiente do que a possibilidade de subir com a bicicleta em outros meios de transporte. 

É possível subir com a bici no teleférico (Foto: Marcela Donini)

No metrô, por exemplo, só é possível levar a magrela consigo a partir das 22h nos dias de semana, à exceção das dobráveis, liberadas a qualquer hora. Para Lastra, seria impossível permitir bicicletas no transporte público em horários de pico. “No lugar de duas bicicletas, cabem 10 pessoas. Não é um espaço fácil de sacrificar. A intermodalidade não pode ser feita a custo de quem não usa bicicleta”, pondera. 

O único modal no qual se pode subir com o veículo em qualquer horário do dia é o cablebús, o teleférico inaugurado no ano passado e cuja linha 2 está no Guiness como a maior do mundo, com 10,5quilômetros de comprimento. Conectada com estações de metrô, a linha carregou 22 milhões de usuários em um ano de operação, completado neste mês de agosto. Como observa Lastra, todo investimento em mobilidade na Cidade do México impacta muita gente – neste caso, somadas as duas linhas do cablebús, são cerca de 100 mil pessoas por dia que passaram a reduzir pela metade o tempo de deslocamento. Aliás, os investimentos no sistema teleférico e na compra de novos ônibus e trólebus renderam ao governo da cidade um reconhecimento das Nações Unidas como “exemplo global de promoção da eletromobilidade”, uma iniciativa importante para o cumprimento dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável.

Divisor de águas

A primeira ciclovia da Cidade do México é de 2004, quando foram construídos 72 quilômetros sobre uma antiga ferrovia. Outro momento emblemático foi a inauguração, em 2010, de 6,8quilômetros de ciclovia na Reforma, uma das suas avenidas mais importantes. Quando foi publicado o atual plano cicloviário da Cidade do México, em 2018, a cidade contava com 242 quilômetros de ciclovias e ciclofaixas. Desse total, 176 quilômetros haviam sido originados de investimentos do governo central. 

No final daquele ano, começou a atual administração municipal, de Claudia Sheinbaum, que informa ter implementado, desde então, mais 202 quilômetros com investimentos próprios e contrapartidas da iniciativa privada. Hoje, somando as vias construídas pelo governo central e pelas alcaldías (espécie de subprefeituras nas quais a capital é dividida), a cidade conta com 487 quilômetros para os ciclistas, segundo a Secretaria de Mobilidade (Semovi). É um pouco mais do que a meta sugerida pelo plano de 2018, que recomendava dobrar os 242 quilômetros de então. 

No início do mandato de Sheinbaum (filiada ao Movimento Regeneração Nacional, o Morena, mesmo partido do presidente Andrés Manuel López Obrador), havia uma crença de que as faixas para ciclistas deviam estar em vias secundárias, e não principais, o que para Baranda era equivocado. Mas, segundo Lastra, logo essa visão mudou. “Hoje entende-se que a percepção de segurança é muito maior quando se vê ciclovias em vias principais”, diz.

Hoje a capital mexicana conta com 487 quilômetros de vias excluvisas para bicicletas (Foto: Secretaria de Mobilidade da Cidade do México)

Foi justamente no meio da pandemia, que aconteceria uma mudança emblemática nesse sentido.

Como em toda metrópole, o trânsito da capital mexicana também sentiu um baque no início do isolamento social provocado pela pandemia. As ruas esvaziadas se tornaram mais um estímulo para as pessoas se animarem a pedalar pela cidade durante a quarentena. Assim, essa alternativa de transporte segura do ponto de vista sanitário foi ganhando mais adeptos.

O momento da pandemia foi como um “alinhamento dos astros”, brinca o professor Lastra. Foi o timing certo para fazer algo inimaginável para os mexicanos: uma ciclovia ao longo da Avenida Insurgentes, a maior da capital, com 28 quilômetros de extensão, única que corta a cidade de Norte a Sul. De maio a novembro de 2020, o Município viu aumentar em 275% o número de viagens em bicicleta na avenida. De tão exitosa a experiência, a ciclovia da Insurgentes, que seria temporária, tornou-se permanente no início deste ano. Foram investidos 52 milhões de pesos mexicanos (cerca de 2,6 milhões de dólares) para implementar os 28,5 quilômetros (14,25 para cada sentido) de faixas exclusivas para bikes.

Uma nova perspectiva

Deparar-se com uma multidão de ciclistas na Insurgentes no meio da pandemia foi uma surpresa para a designer Fabiola Solís, 33 anos. Moradora de Coyoacán, na periferia da capital, a designer já circulava bastante de bicicleta pela cidade, mas evitava a Insurgentes por medo do alto tráfego de carros.

Solís pedala diariamente de casa ao trabalho, na zona central. Tem carro, mas usa-o muito pouco. “No caminho até o escritório, se acontece um acidente, posso ficar parada por horas dentro do carro, pois não há rotas alternativas”, explica. De bici, leva uma hora. Para quem acha muito, saiba que são 40 minutos menos do que se ela fosse de carro. Solís define-se como uma “nerd da bicicleta”. Ela sabe que para deslocar-se sobre duas rodas precisa planejar-se, muitas vezes até levar muda de roupa. Nada que prejudique sua experiência. “Chego feliz ao trabalho porque vou pelo bosque de Chapultepec, é um caminho muito bonito. Eu amo minha bicicleta, com ela vou a muitos lugares diferentes”, diz. 

Fabiola Solís pedala diariamente até o trabalho, viagem que leva uma hora (Acervo pessoal)

A designer costuma pedalar com grupos de amigos por áreas periféricas da cidade. Reconhece que houve melhorias na infraestrutura cicloviária nos últimos anos, mas ainda cobra do poder público investimentos fora da zona central, mais bicicletários públicos e segurança contra furtos. Ela mesma já teve uma bike furtada. O caso ocorreu logo após o terremoto de 2017, um outro momento emblemático em que as bicicletas mostraram seu potencial para facilitar a locomoção. Com a destruição de milhares de edifícios, muitas vias ficaram inacessíveis a veículos motorizados, fazendo das bikes uma alternativa para socorristas e voluntários, como Solís.

Se os recentes esforços para fomentar a cultura do pedal ainda não fazem a capital do México figurar entre as melhores cidades do mundo para andar de bicicleta, ao menos entre as latinas ela se destaca como a terceira mais amigável no Bicycle Cities Index. No ranking produzido anualmente pela empresa de seguros Luko a partir da análise de 90 cidades no mundo, a Cidade do México está na 80ª posição, atrás de Santiago do Chile (58ª) e São Paulo (76ª, a única brasileira da lista). Os mexicanos superam os colombianos, representados por Bogotá (81ª), Cali (82ª) e Medelim (89ª) – a capital da Colômbia, aliás, também apostou nas ciclovias emergenciais durante a pandemia. Buenos Aires completa o grupo de cidades latinas no ranking, em 83º lugar.

Na lista é possível identificar que ainda há bastante para avançar na qualidade das vias de forma geral e na questão da segurança. Um outro levantamento global, da Ipsos, realizado de forma online com mais 20 mil pessoas no primeiro semestre deste ano, mostrou que 68% dos mexicanos consideram “muito perigoso” deslocar-se de bicicleta onde vivem. É o segundo índice mais alto, perdendo apenas para Chile e Colômbia (70%). A taxa mais baixa é na Holanda (14%), como se poderia esperar.

Fabiola Solís não nega que seja perigoso pedalar no México, mas não perde o entusiasmo pelo pedal. Ela lembra que os ciclistas também têm de fazer sua parte, circulando com responsabilidade e respeito aos pedestres. “Temos que motivar as pessoas a pedalar. Se você tem uma bici, um cadeado e capacete, pode chegar aonde quiser”. Frente às dificuldades ainda enfrentadas pelos ciclistas mexicanos, a designer propõe inverter a perspectiva: “Em vez de pensar que a cidade não é boa para as bicicletas, pensemos que as bicicletas são boas para a cidade.”

* A jornalista Marcela Donini viajou à Cidade do México em junho a convite do governo dos Estados Unidos, por intermédio do Consulado em Porto Alegre, para um programa de cobertura jornalística sobre infraestrutura na América Latina, financiado pela Embaixada dos EUA no Panamá e organizado pelo Meridian International Center, uma entidade sem fins lucrativos. A viagem contemplou ainda visitas a Quito, no Equador, e à Cidade do Panamá.
Contato: [email protected]

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