Eleições 2022 | Reportagem

Em busca de equilíbrio: “sobe e desce” da economia gaúcha será desafio para o próximo governo

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Em busca de equilíbrio: “sobe e desce” da economia gaúcha será desafio para o próximo governo Abertura da 45ª Expointer, em 26 de agosto. Foto: Fernando Dias/Seapdr

Oscilações no PIB provocadas por estiagens, baixa receita tributária, teto de gastos e precarização do trabalho devem entrar no radar dos candidatos a governador

A economia do Rio Grande do Sul vive em estado de turbulência. As lavouras – motor do setor produtivo – frequentemente enfrentam duras estiagens que bagunçam o restante da cadeia. A seca do último verão foi uma das piores em décadas, já com nítida influência das mudanças climáticas. A precarização e a informalidade ditam as regras no mercado de trabalho, que ainda sofre com o baque deixado pela pandemia. O serviço público segue refém de uma dívida antiga – agora, com um regime de recuperação fiscal que prolonga o encolhimento da máquina pública. Para o próximo ocupante do Palácio Piratini, o desempenho econômico trará desafios que podem definir o sucesso ou o fracasso do governo.

No que diz respeito ao Produto Interno Bruto (PIB) estadual, os dados mais recentes publicados pelo Departamento de Economia e Estatística (DEE) mostram um cenário pouco animador: o 1º trimestre de 2022 trouxe redução de 3,8% em relação ao último trimestre de 2021. Se comparado ao 1º trimestre do ano passado, a redução foi de 4,7%. 

A queda brusca foi puxada principalmente pela agropecuária, que caiu 28% em comparação com o 4º trimestre de 2021 e mais de 41% em relação ao mesmo trimestre do ano passado. “Nosso PIB é como um eletrocardiograma: desce, sobe e cai de novo. A gente precisa de algum tipo de reajuste para conseguir deslanchar. Estamos estagnados”, avalia a economista Vanessa Sulzbach, chefe da divisão de análise econômica do DEE.

Embora as variações acompanhem tendências vistas no resto do Brasil, o cenário gaúcho é nitidamente mais instável. O país teve, nesse mesmo recorte, um módico aumento de 1% do PIB em relação ao último trimestre de 2021 e crescimento de 1,7% se comparado ao mesmo período no ano passado. Já a agropecuária nacional caiu apenas 0,9% em relação ao 4º trimestre de 2021 e 8% no comparativo com o 1º trimestre anterior. 

O mau desempenho do agro gaúcho é resultado direto de uma das piores secas das últimas décadas. Mais de 400 municípios decretaram situação de emergência por falta de água. Muitos rios secaram e nove de cada dez lavouras foram afetadas. O problema não é novo, mas tende a se intensificar cada vez mais por conta das mudanças climáticas – como o Matinal contou nesta reportagem

Segundo a Defesa Civil, as estiagens no RS são recorrentes – uma a cada dois anos, em média. O evento é resultado do La Niña, que altera a força dos ventos, a temperatura do Oceano Pacífico e o regime de chuvas em várias partes do mundo. No sul do Brasil, o fenômeno resulta em longos períodos de tempo seco, com baixa precipitação.

A agropecuária representa somente entre 8% e 9% do PIB gaúcho, mas movimenta uma enorme cadeia em volta dela. “A gente tem setores que fornecem insumos, os que fazem o beneficiamento dos grãos. Há toda uma indústria e serviços, como o de transporte, ligados à agropecuária. O agronegócio está presente em 30% a 40% do PIB do Estado. É por isso que a quebra de safra afeta a renda do produtor e de muitos outros setores”, explica Sulzbach.

Enquanto os agricultores amargam perdas, porém, o setor de serviços, puxado pelos serviços de informação, pelos transportes e pelo comércio de vestuário e artigos domésticos, foi um ponto fora da curva: manteve crescimento parelho com a média nacional – de 3,7% no comparativo com o mesmo trimestre do ano passado. Um sinal de recuperação após dois anos de pandemia.

Efeito dominó

A oscilação constante de setores produtivos afeta a economia de forma generalizada, mas há um fator em especial que costuma tirar o sono de governadores: arrecadação de impostos, mais especificamente o ICMS. Cobrado pelos Estados, esse tributo incide sobre a circulação de mercadorias e corresponde atualmente a mais de 67% de todas as receitas do erário gaúcho. Em tempos de baixa atividade econômica, as contas estaduais apresentam prejuízos significativos. “Quando o PIB cresce, a receita fiscal tende a aumentar. Em tempos de crise, ela tende a cair”, resume Róber Iturriet Avila, professor da Pós-Graduação Profissional em Economia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Os gaúchos lidam com essa crise fiscal há mais de 50 anos, acumulando déficits sucessivos que são tapados com medidas paliativas, como privatizações, empréstimos, atraso e parcelamento de salários, entre outras. 

O descompasso entre receitas e despesas resultou, ao longo das últimas décadas, em uma enorme dívida pública. A maior parte dela foi assumida em 1997 pela União, a quem o RS devia, na época, R$ 38 bilhões – hoje o saldo está em R$ 74 bilhões. O enorme salto no valor se deve, em parte, à disparada na taxa de juros após o Plano Real e à incidência do IGP-DI, indexador de inflação usado até então, que logo ficou defasado. Além disso, também há dívidas com instituições bancárias nacionais e estrangeiras, elevando o total da dívida a mais de R$ 86 bilhões. Para mais da metade do eleitorado gaúcho, que sequer tinha nascido quando essa história começou, o tema pode soar complexo ou burocrático, mas a questão merece toda a atenção nesta corrida eleitoral.

A fim de sanar o rombo nas contas públicas, o Rio Grande do Sul aderiu, em junho deste ano, ao Regime de Recuperação Fiscal (RRF) proposto pelo governo federal. Ainda na gestão de José Ivo Sartori (2015-2018) começaram a ser implementadas duras contrapartidas exigidas para a homologação do acordo. A medida mais notória talvez tenha sido a “desestatização”, traduzida por Sartori como a necessidade de extinção de uma dúzia de fundações e outros órgãos públicos, além da exoneração de centenas de servidores. 

Entre as entidades fechadas em 2016 estava justamente a Fundação de Economia e Estatística (FEE), responsável por produzir análises e estudos fundamentais para o planejamento econômico e social do Estado. Parte dos funcionários da fundação foi remanejada ao Departamento de Economia e Estatística (DEE), que agora faz o acompanhamento do PIB estadual no âmbito da Secretaria de Planejamento, Governança e Gestão (SPGG).

No governo de Eduardo Leite (2019-2022), o processo de adesão ao RRF continuou, com a privatização da Companhia de Gás do Estado do Rio Grande do Sul (Sulgás) e dos três braços da Companhia Estadual de Energia Elétrica (CEEE) – a CEEE-T (transmissora), CEEE-D (distribuidora) e CEEE-G (geradora). Rebatizada como CEEE Equatorial em 2021, a nova empresa de distribuição atende cerca de 1,8 milhão de clientes em 72 municípios e já registra uma enxurrada de reclamações: além dos cidadãos que se queixam das quedas de luz e da demora no atendimento, até mesmo o Departamento Municipal de Água e Esgotos (Dmae) vive cobrando publicamente a empresa pelas interferências que afetam o abastecimento de água em Porto Alegre.

A gestão Leite aprovou ainda uma reforma da previdência para aumentar a idade mínima e o tempo de contribuição no estado com maior índice de envelhecimento da população, além de alterar os estatutos do Magistério e da Brigada Militar, categorias que somam cerca de 85% da folha salarial. Também foi implementado um teto de gastos de 10 anos que congela os investimentos públicos e restringe as despesas unicamente ao reajuste da inflação. Com a medida, o Estado não pode criar cargos que impliquem em novos gastos e só pode realizar concursos públicos para repor as vagas já existentes.

“Desde 2015, o Rio Grande do Sul tem contratado poucos servidores públicos. Principalmente na educação, houve uma redução muito expressiva de pessoal nos últimos 10 anos, além da redução salarial. Muita gente saiu, se aposentou ou pediu exoneração. E entraram pouquíssimos no lugar. Eram 100 mil pessoas e hoje são 75 mil”, aponta Avila. O economista esboça preocupação sobre o contínuo achatamento da máquina pública. “Mesmo que haja uma tendência de melhoria nas contas públicas, a gente já está em um patamar de Estado muito pequeno. Já vão 30 anos de redução no serviço público. Temo que a educação fique cada vez mais problemática”.

O Rio Grande do Sul passou os últimos cinco anos sem pagar a dívida com a União graças a uma liminar do Supremo Tribunal Federal (STF) concedida em 2017. Os pagamentos foram retomados neste ano a partir do regime de recuperação. As parcelas terão aumento progressivo, com valores iniciais relativamente baixos, o que deve aliviar a pressão sobre as contas públicas por alguns anos. Porém, na próxima década, quando acaba o teto de gastos, o Estado começará a pagar as parcelas integrais da dívida até 2052. Serão mais 30 anos falando no assunto – e quiçá outros mais, caso não seja encontrada uma saída definitiva para a crise.

Precarização do trabalho e informalidade

O funcionalismo público equivale a 11% dos gaúchos empregados atualmente – não à toa, o sucateamento dessa força de trabalho traz repercussões em outras pontas da cadeia, como perda da capacidade de consumo das famílias que dependem dessa renda. 

Mas há uma categoria que sofre ainda mais com a precarização no mercado laboral: a que atua no trabalho informal. De acordo com dados do 2º trimestre divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 1,9 milhão de pessoas estão ocupadas informalmente no RS – mais de 32% do total. São trabalhadores sem carteira assinada ou vínculo empregatício que, muitas vezes, atuam de forma autônoma, fazendo bicos, sem salários fixos. São motoristas e entregadores por aplicativo, vendedores ambulantes sem alvará, profissionais que trabalham com reparos, construção civil e serviços gerais, por exemplo. 

A informalidade e a própria precarização do trabalho formal viraram condições corriqueiras para escapar do grupo dos 6,3% desempregados (387 mil no total), porcentagem intermediária no contexto nacional, mas a maior entre os estados da Região Sul. E a crise de covid-19 ajudou a acentuar ainda mais esse fenômeno, com impacto na renda de dois terços das famílias gaúchas. “A pandemia aprofundou o processo de desvalorização salarial e os arranjos de trabalho fora do assalariamento. É uma mudança geral. Cada vez mais etapas produtivas são coordenadas por meio de algoritmos e, em alguns casos, com remuneração por resultados e não pelo tempo trabalhado”, observa a economista Lucia Garcia, técnica do Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos (Dieese). Segundo Garcia, o trabalho por conta própria cresce de duas maneiras diferentes: pela “pejotização” de profissionais que se tornam empresas individuais e por aqueles sem qualquer tipo de regularização.

As características instáveis da economia do Rio Grande do Sul, fortemente arraigada no setor primário (e sobretudo na soja), também afetam o mercado de trabalho. “Ao contrário de Paraná e Santa Catarina, temos um estado que segue apostando no agronegócio. Isso reduz o escopo da diversidade econômica do RS. É um problema, principalmente pela importância do setor industrial, que é um grande gerador de empregos”, critica a economista. O último informe do DEE com dados de abril mostra que a maior parte das 138 mil vagas de emprego abertas nos últimos 12 meses estiveram concentradas no setor de serviços (67.025), na indústria de transformação (35.625) e no comércio (27.006). Já o 2º trimestre deste ano registrou saldo negativo de 7.207 postos de trabalho com carteira assinada no agronegócio, uma queda esperada em função da sazonalidade da produção agrícola, com a desmobilização da mão de obra a partir de abril.

O Rio Grande do Sul tem muito trabalho pela frente. Por um lado, deve fomentar a descentralização e a diversificação econômica, apostando em atividades que sejam menos suscetíveis às catástrofes climáticas. Por outro, precisa ampliar as políticas de irrigação e recuperação do solo – além de garantir que os programas existentes realmente cumpram seu papel. 

Também é necessário encontrar soluções para o teto de gastos no serviço público. “Uma das possibilidades é que a educação [de Ensino Médio] seja encampada pelos municípios, por meio de transferência de servidores e escolas”, sugere o economista Róber Iturriet Avila.

Todo esse panorama apenas resume brevemente o que o governador eleito deve enfrentar, pelo menos em matéria econômica. São desafios complexos, pensados a longo prazo, mas com implicações diretas e imediatas na vida da população. Os debates em torno do tema, sempre muito acalorados, também devem ocupar um espaço considerável na agenda dos candidatos.

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