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Inundações severas e secas prolongadas: o colapso climático chegou a Porto Alegre

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Inundações severas e secas prolongadas: o colapso climático chegou a Porto Alegre Foto: Alex Rocha/PMPA

Há 400 mil anos, o planeta esquentou. O gelo derretido das regiões polares e montanhosas fez aumentar o volume dos oceanos. O nível da água subiu cerca de 13 metros e, assim como em outras regiões costeiras do mundo, o mar invadiu vastas áreas do litoral do Rio Grande do Sul. O território do que hoje é Porto Alegre deixou ser uma zona costeira e virou uma ilha do Oceano Atlântico, cujo avanço só não engoliu os morros e as restingas arenosas. Essa foi a grande enchente que formou o Guaíba e começou a moldar a geografia característica da cidade; depois, a água cedeu nas zonas de baixo relevo. Ainda vão demorar séculos para que a cidade volte a ficar submersa, mas as previsões para um futuro próximo já lembram esse cenário. Caso a temperatura média da Terra siga em disparada sem que haja um esforço global para reverter o cenário – e a prefeitura falhe em proteger as áreas de risco –, grandes pedaços da metrópole serão constantemente inundados.

Para compreender os perigos que cercam a cidade, é preciso conhecer as particularidades do lago Guaíba. São 496 km² de área, um tamanho modesto, equivalente ao da própria capital. Ainda assim, nele desembocam alguns dos cursos de água mais importantes do Estado: o Rio Caí, o Rio Gravataí, o Rio Jacuí e o Rio dos Sinos. Sua vazão média alcança os 1,2 milhões de litros por segundo, segundo o Departamento Municipal de Água e Esgotos (DMAE). Ou seja, a cada minuto, a água que passa pelo Guaíba encheria praticamente 30 piscinas olímpicas. Normalmente, essa água flui para a Lagoa dos Patos e, depois, para o mar. A não ser que  a ventania do sul vá contra a correnteza. “Nesses casos, muitas vezes o vento e outras condições fazem a água ficar represada no sistema Patos-Guaíba”, explica Francisco Aquino, geógrafo e pesquisador de mudanças climáticas na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). “A gente prevê que, nas próximas décadas, o aumento de eventos extremos vai favorecer enxurradas, alagamentos e subida do nível do mar em várias cidades, não só na Capital”, alerta.

Mais enchentes

De fato, a frequência das inundações nas áreas próximas ao Lago Guaíba e ao Delta do Jacuí vem aumentando, como aponta uma pesquisa de doutorado da UFRGS apresentada em 2018. A geógrafa Elisabete Reckziegel, autora do estudo, recorreu aos acervos de jornais antigos e dados históricos de estações fluviométricas. Reckziegel identificou 46 casos de inundações registrados entre 1940 e 2015. E, desses, mais de dois terços são de 1982 em diante. Além disso, nas primeiras quatro décadas analisadas, os eventos ficaram até dez anos consecutivos sem se repetir; nas últimas três décadas, o intervalo máximo foi de dois anos, revelando como o impacto das mudanças climáticas já é palpável. 

O problema da capital gaúcha com enchentes é histórico. A pior da qual se tem notícia, a de 1941, deixou cerca de 70 mil pessoas desabrigadas, o que representava quase um quarto da população. A água alcançou os 4,75 metros de altura. Durante 22 dias, as chuvas assolaram o município e a região metropolitana; e as cheias dos rios Jacuí, Taquari, Caí e dos Sinos chegaram com velocidade de 60 km/h. A Usina do Gasômetro e a Hidráulica Porto-Alegrense (então responsável pelos serviços de água encanada) deixaram de funcionar, interrompendo o abastecimento de energia elétrica e água potável. Segundo o Departamento de Esgotos Pluviais (DEP), as outras grandes enchentes do Lago Guaíba e do Delta do Jacuí ocorreram em 1873 (3,5 metros), 1914 (2,6 metros), 1928 (3,2 metros), 1936 (3,22 metros) e 1967 (3,13 metros). A última cheia expressiva, de 2015, bateu os 2,94 metros, alagou partes da zona sul e da zona norte, e veio acompanhada de um temporal que deixou uma pessoa morta e 11 feridas, além de 2 mil diretamente afetadas nas ilhas vizinhas.

Mais chuva

Enchentes e tempestades andam juntas, embora não ocorram necessariamente nos mesmos lugares (uma chuva intensa no interior do Estado pode aumentar o volume de rios que provocam cheias em outros locais, por exemplo). E um relatório de 2016 do Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas (PBMC) indica que, até 2040, o pampa gaúcho – do qual Porto Alegre faz parte – terá um clima 5 a 10% mais chuvoso e até 1ºC mais quente. A previsão é que a situação se agrave ao longo do século, com intensificação de até 40% nas chuvas e com elevação de 2,5 a 3ºC na temperatura.

O aumento da pluviosidade não é exatamente uma novidade. De acordo com um estudo de 2006 do Núcleo de Pesquisas Antárticas e Climáticas (Nupac), a precipitação acumulada no Estado entre 1975 e 2004 subiu 8% em relação às três décadas anteriores. Em Porto Alegre, esse crescimento foi de 14%, pulando de 1.265 milímetros de chuva acumulados no primeiro período para 1.443 miĺímetros no segundo. Já em cidades como Caxias do Sul e Alegrete, o aumento não passou de 3%.

Mais seca 

Não é porque o volume de chuva sobe que os gaúchos vão se livrar das secas. Pelo contrário: a tendência é que elas piorem, a exemplo da situação atual. Com a estiagem que perdura desde dezembro no Estado, mais de 200 municípios já decretaram situação de emergência. Segundo a Defesa Civil, os eventos são recorrentes a cada dois anos, em média, desde 1979. A pior estiagem foi a de 2004 – na época, 80% do Rio Grande do Sul (398 municípios) decretou situação de emergência. 

“O que se pode esperar são maiores períodos de estiagem com eventos severos fornecendo toda a precipitação de uma vez só”, aponta a geógrafa Venisse Schossler, pesquisadora do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia da Criosfera (INCT). Essa previsão, reforçada por um estudo publicado na Nature em novembro do ano passado, considera que haverá uma continuidade do modelo atual: isto é, aumento da temperatura média dos oceanos, como tem sido observado nos últimos 60 anos, impulsionado pela emissão de gases de efeito estufa. Por um lado, isso poderia resultar no enfraquecimento do fenômeno El Niño, que no sul brasileiro é responsável por aumentar a precipitação no inverno e na primavera. Por outro, o fenômeno oposto, chamado de La Niña, seguiria provocando estiagem nessas regiões por longos períodos, afetando as lavouras e todo o ciclo hídrico. “Quando você faz a média, está ok. Mas choveu tudo que se esperava para o mês em um dia. Isso não é normal”, alerta Schossler.

Um escudo nunca testado

Desde a grande enchente de 1941, Porto Alegre foi dotada de um plano contra enchentes, do qual fazem parte o sistema de drenagem pluvial, os diques de proteção, as casas de bombas e os condutos forçados (grandes galerias subterrâneas de escoamento da água da chuva). Esse sistema deveria estar sempre em pleno funcionamento, mas o governo municipal não realiza a manutenção com a devida regularidade. “Para nossa sorte, esse sistema de diques, que inclui o muro da Mauá, não foi severamente testado, pois desde 1941 ainda não houve uma enchente que atingisse altas elevações de nível d’água a ponto de alcançar o muro e o sistema de diques”, avalia o geólogo Rualdo Menegat, coordenador-geral do Atlas Ambiental de Porto Alegre.

Apenas em fevereiro deste ano, os portões de ferro do muro começaram a ser reformados. “Essas comportas ficaram muito tempo sem receber manutenção e, na verdade, elas não fecham”, nos disse na época o secretário municipal de Serviços Urbano, Ramiro Rosário. “Há quem sustente que o muro não precisaria existir. Ele não é uma solução definitiva.” O professor Francisco Aquino discorda: “O muro é absolutamente necessário. Devagarinho, Porto Alegre foi se tornando menos suscetível a essas cheias. Mas agora está mais suscetível”.

Só entre 2011 e 2018, o Rio Grande do Sul teve prejuízo de R$ 11,4 bilhões com desastres ambientais, em valores corrigidos pela inflação. Os dados são de outra pesquisa recente feita na UFRGS. Os tipos de desastres mais caros foram as chuvas intensas (R$ 2,6 bi), as enxurradas (R$ 2,5 bi) e as inundações (R$ 2,3 bi). Nesse mesmo período, o orçamento total destinado à gestão ambiental do Estado foi de R$ 1,2 bilhão. Ao todo, ocorreram 178 casos de desastres provocados por inundações. A região de Porto Alegre liderou o ranking, com 60 casos. Em seguida, estão Uruguaiana, com 34, e Santa Cruz do Sul e Lajeado, cada uma com 27. O estudo completo ainda deve ser publicado nos próximos meses. 

Embora o sistema contra enchentes evite inundações em partes importantes da cidade, com a avenida Sertório, não impede que esses locais alaguem durante os temporais. Entre as áreas mais afetadas pelas chuvas, estão as ilhas do Guaíba, o Lami, a Ponta Grossa, os bairros da zona norte e o Humaitá. “Pode dar o azar de o Guaíba estar excepcionalmente cheio, chover no Arroio Dilúvio, e sistema de bombas não conseguir escoar. Você tem a chuva extrema, e o motor queima. Nós temos engenharia e infraestrutura, mas dependemos muito delas”. 

Caso o nível do mar suba 1 metro até o final do século, o nível do Guaíba também se elevará. “Todo o sistema costeiro da Lagoa dos Patos e do Guaíba estão interligados como vasos comunicantes com o Oceano Atlântico”, explica Menegat. Nesse caso, não haverá muro ou sistema de bombas que dê conta do recado. Uma das opções para lidar com esse problema é fazer grandes reservatórios de água para os períodos de enchentes. São os chamados “piscinões”, grandes obras de engenharia pensadas para longo prazo. Outra opção, diz Aquino, é deixar tudo como está “e avisar a população local ‘ó, quando a chuva atacar, isso aqui vai alagar’”. Para sair das opções paliativas, só detendo o aumento da temperatura da Terra – um esforço global que ganhou novas lideranças como Greta Thunberg, embora venha sofrendo baques com a recusa de nações como Estados Unidos e China a cumprir os seus compromissos de diminuição da emissão de gases de efeito estufa. Mas os estados também podem fazer a sua parte. A Política Gaúcha sobre Mudanças Climáticas, instituída em 2010, previa que o Rio Grande do Sul assumiria “o compromisso voluntário de reduzir as emissões totais no âmbito estadual” nas projeções feitas até 2020. Na contramão desse objetivo, a mineradora Copelmi segue tentando instalar, na região metropolitana de Porto Alegre, a maior mina de extração de carvão mineral a céu aberto do Brasil – apesar da reclamação de ativistas, pesquisadores e comunidades do entorno.

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