Eleições 2022 | Reportagem

Pampa em extinção e retrocesso na legislação: o panorama ambiental do RS às vésperas das eleições

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Pampa em extinção e retrocesso na legislação: o panorama ambiental do RS às vésperas das eleições Foto: Paola Stumpf/Sema

Desmatamento acelerado e falta de proteção do principal bioma do Estado, fragilização do Código Ambiental e mudança do licenciamento de projetos de alto impacto sob judice, em meio a emergência climática, tornam área crítica para próxima gestão

Antes de tomar posse, em 11 de dezembro de 2018, o então governador eleito do Rio Grande do Sul Eduardo Leite anunciou sem alarde a nomeação do advogado Artur Lemos como secretário do Meio Ambiente e Infraestrutura. A novidade não estava necessariamente no nome de Lemos, um político jovem que já havia sido secretário de Minas e Energia e presidente da hoje extinta Fundação Zoobotânica na gestão do emedebista José Ivo Sartori (2015-2019), mas na união das pastas de meio ambiente e infraestrutura. 

O ato simbolizou o tom com que a pauta ambiental seria conduzida por Leite e Lemos, que posteriormente assumiria a Casa Civil. “A secretaria subjugou o meio ambiente à infraestrutura, deixando explícito um conflito de interesses permanente em que um dos lados sairia perdendo. Este lado foi o ambiental”, afirma o biólogo Paulo Brack, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e coordenador do Instituto Gaúcho de Estudos Ambientais (Ingá). 

Na ocasião do anúncio de Lemos, Leite deixou claro que o “meio ambiente era uma área sensível” e que “ninguém quer crescer à custa de degradação ambiental”, indicando uma confiança elevada na ética governamental e do empresariado. Logo em seguida, emendou: “Mas não podemos ter processos que duram mais que o normal para a emissão de licenças. Vamos garantir processos ágeis de licenciamento para desenvolvimento sustentável”. A união das secretarias tinha um objetivo de desembaraçar os processos de licenciamento, considerados por Leite um entrave ao desenvolvimento. Um ano após esse anúncio, em dezembro de 2019, Lemos encaminharia para a Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul (AL-RS) e ao Ministério Público o PL 431, que propôs uma reformulação profunda no Código Ambiental gaúcho, que versa desde a proteção aos biomas, passando pela questão dos mananciais, poluição sonora e licenciamento ambiental. O projeto, que modificava a lei 11.520, chegou a entrar em regime de urgência no legislativo, o que motivou um pedido do MP-RS para que a discussão fosse desacelerada tamanha era a magnitude das modificações. 

A boiada de Leite

O pedido foi atendido, mas as mais de 100 sugestões feitas pelo MP, incluindo modificações na redação dos artigos, não foram acatadas na versão aprovada em 10 de março de 2020, por 31 votos a 11. “Quando se faz uma resolução ou minuta para mudar uma lei, é preciso apresentar uma justificativa técnica e legal. O PL 431 fez profundas mudanças no Código Ambiental do RS sem apresentar nenhuma justificativa, nada”, diz a servidora Lisiane Becker, conselheira do Conselho Estadual do Meio Ambiente e diretora da ONG Mira Serra. Ao apresentar à AL-RS e ao MP, o Executivo gaúcho anunciou a reforma como uma “modernização” da legislação ambiental.

Um levantamento inédito feito pelo pesquisador Gonçalo Ferraz, professor de biologia das populações da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, comparou o PL 431 com a antiga lei 11.520 e mapeou mais de 400 mudanças introduzidas pela versão apresentada pelo governo Leite. Ferraz classificou a reforma como um “desmonte”, mesmo termo usado por Lisiane Becker e Paulo Brack. 

Na análise do projeto original (pouco modificado após a aprovação, que passou sem grandes debates e sobressaltos), o pesquisador da UFRGS notou a eliminação sumária de partes fundamentais do código até então em vigor. “Desaparecem todos os artigos sobre poluição visual, poluição sonora e áreas de uso especial, que não sendo unidades de conservação precisam ser definidas e protegidas”, descreve. “Desaparecem também as diretrizes técnicas para elaboração de estudos e relatórios de impacto ambiental, assim como as ferramentas e mecanismos de controle da qualidade do ar”. 

O artigo 216, ao final do texto proposto por Leite e Lemos, que Ferraz cunhou como “raivoso”, revoga três leis, um anexo e 40 artigos de outras duas leis ambientais. “Trinta e nove destes 40 artigos revogados pertencem ao Código Florestal do RS e sua revogação consiste em um desmonte agressivo, que libera a queima e o corte de espécies ameaçadas da flora gaúcha”, observa Ferraz. “O que não foi eliminado, foi enfraquecido”, resume. Entre as espécies que eram imunes ao corte e deixaram de ser estão a figueira e a corticeira, espécies nativas do Estado. “Esse é um dos crimes do novo código”, diz Becker. “Com a falta de fiscalização, especialmente em municípios pequenos, isso pode se tornar um problema sério de perda de biodiversidade”. 

Chamou a atenção de Ferraz o que ele definiu como “subversão da lei” por meio de ajustes na linguagem e de pequenos detalhes que aparentam uma preocupação com a eficiência, mas, na verdade, invertem o sentido da legislação. “Por exemplo, o termo ‘Ministério Público’ (MP) aparece três vezes no código anterior, indicando situações em que alguém tem obrigação de dar ciência de algum procedimento ao MP ou dando ao MP o poder de convocar uma Audiência Pública. Quantas vezes aparece ‘Ministério Público’ no projeto de lei do governo Leite? Zero”, escreveu, na análise feita a partir do levantamento. “De forma semelhante, em todos os lugares onde o código anterior estipulava publicação de alguma decisão no ‘Diário Oficial do Estado’, o novo estipula publicação na ‘rede mundial de computadores’. Eficiência? Não, impunidade”, enfatiza Ferraz.

O promotor Daniel Martini apontou uma evolução na nova lei, a que transforma os animais em sujeitos de direitos, mas apontou o que considera duas grandes “involuções”: a revogação do artigo 16, que dava prioridade à pesquisa e à implementação de opções de energia alternativa descentralizada e renovável, e a criação da Licença Ambiental por Compromisso (LAC), considerada o ponto mais problemático do código de Leite. “Nós sugerimos que a LAC ficasse restrita a atividades de baixo impacto ambiental, mas nem os deputados, nem o Executivo acataram a nossa proposta”, salienta Martini. Tão logo aprovada, a LAC seguiu para aprovação no Conselho Estadual do Meio Ambiente (Consema) em que a indústria ganhou a queda de braço. Com o aval da última instância, as novas regras de licenciamento passaram a valer para 49 atividades, 31 delas com médio e alto potencial poluidor. Assim ficou dispensada uma sequência de licenças antes obrigatórias como a prévia, de instalação e de operação, que agora podem ser feitas pelo empreendedor pela internet.

Ocorre que o governo de Leite aprovou o novo código também para se adequar a um projeto defendido por aliados do presidente Jair Bolsonaro (PL) em debate na Câmara. Ou seja, para tornar a lei estadual similar à federal. Mas o PL 431 foi aprovado antes da lei federal, que não avançou no Legislativo. Pela Constituição, um Estado não pode ter regras mais brandas que as federais para evitar insegurança jurídica. 

Por causa disso, a reforma do Código Ambiental promovida por Leite parou no Supremo Tribunal Federal (STF) com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) movida pelo MP e pela Procuradoria Geral da República contra a LAC e dois dispositivos do novo código. Está nas mãos do ministro Ricardo Lewandowski decidir a constitucionalidade ou não da lei estadual, e o próximo governador terá de enfrentar uma inconsistência jurídica em uma das áreas mais sensíveis para o Estado. Enquanto o ministro não decide, a lei aprovada está em vigor.

Pampa sem proteção

Outro ponto a ser resolvido pelo próximo governador é a falta de uma legislação específica para o bioma Pampa, que ocupa dois terços da área do Estado – o restante é Mata Atlântica. A ausência de uma lei voltada à proteção do bioma campestre, o quarto em extensão no Brasil, é uma das razões de o bioma ser hoje o que mais perde vegetação nativa proporcionalmente à sua área de 176,5 mil km², segundo o MapBiomas. “A falta de uma lei para o Pampa é um grave problema no Estado”, diz o promotor Daniel Martini. “Temos técnicos e especialistas muito qualificados para criá-la, mas isso precisa ser uma prioridade”.

A conversão dos campos em lavouras de monocultura, especialmente da soja, tem sido o principal motor do desmate, conforme a análise da ONG. “Grande parte dessa conversão é irregular. Mas isso sequer é fiscalizado porque o Rio Grande do Sul é o estado mais atrasado na implementação do CAR”, alerta o biólogo Paulo Brack. 

O CAR, Cadastro Ambiental Rural, é uma ferramenta autodeclaratória e obrigatória para todos os imóveis rurais do País. É através dela que os estados conseguem atestar a regularidade da posse (se não está sobreposta a uma área protegida) e fiscalizar o cumprimento da lei prevendo uma reserva legal (área de vegetação nativa preservada) de no mínimo 20% da área total da propriedade. O Pampa também é um dos biomas menos resguardados do País, com apenas 2,8% do território protegido – aquém dos 17% recomendados internacionalmente pela Convenção da Biodiversidade Biológica (CDB). O plano de regularizar mais áreas protegidas, dentro da Política Nacional do Meio Ambiente, está parado desde 2016, diz Brack.

Diante da falta de protagonismo do governo estadual em criar uma legislação de proteção ao seu principal bioma, foi criada por 19 entidades e servidores da área ambiental a Coalizão Pampa. O grupo publicou uma carta aberta em que apresenta 10 diretrizes para deter a destruição do bioma. “A diminuição dos campos nativos do Pampa decorre das expansões da produção agrícola da silvicultura e das pastagens cultivadas, sendo a soja o principal cultivo a substituir os campos nos últimos anos, com crescimento de 188,5% de área entre 2000 e 2015”, explica trecho da carta aberta.

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