O que está em jogo no projeto de concessão da Redenção

Especialistas ouvidos pelo Matinal alertam sobre o que pode ocorrer com o maior parque de Porto Alegre se a proposta da Prefeitura avançar
O projeto que propõe a concessão do Parque Farroupilha, a Redenção, avança mais um passo nesta sexta-feira, dia 18 de novembro. A partir das 19h, a Prefeitura realiza na Câmara de Vereadores uma audiência pública para tratar sobre o tema – ontem já ocorreu a que aborda a concessão do Marinha do Brasil. A ideia do Município é lançar os editais em 2023. O período de concessão, caso tudo ocorra como previsto pelo Executivo, é de 30 anos.
A proposta, no entanto, enfrenta forte resistência de entidades e representantes da sociedade civil. Na quarta-feira, dia 16, o coletivo Preserva Redenção – que já conseguiu mais de 23 mil assinaturas contrárias ao projeto – acionou o Ministério Público de Contas (MPC) para solicitar a sustação da audiência pública, alegando falhas no processo, como a falta de estudos de impacto ambiental e patrimonial, entre outros. O grupo entende que a população não está informada o suficiente para opinar com embasamento acerca da concessão.
Com o intuito de fomentar o debate, ao longo desta reportagem, o Matinal abordou questões relacionadas ao processo de delegar a administração da Redenção a uma empresa:
Questão econômica
A justificativa da gestão da Prefeitura em conceder o parque mais antigo da Capital à iniciativa privada pelas próximas três décadas se dá em nome de possíveis investimentos na manutenção e em melhorias do local. “É um esforço que estamos fazendo para qualificar as áreas públicas mais importantes da Capital, e temos conseguido isso por meio de parcerias, como a concessão do Harmonia e da nossa orla”, afirmou o prefeito Sebastião Melo (MDB) na apresentação da proposta, em outubro.
Semanas antes, no Instituto Semeia, em São Paulo, o diretor de Estruturação de Desestatização da Secretaria Municipal de Parcerias (SMP), Fernando Pimentel, havia afirmado que a Redenção é um “parque altamente deficitário em relação à quantidade de serviços que ele precisa fornecer”.
No edital, como um atrativo à concessão, a Prefeitura projeta a construção de um estacionamento subterrâneo sob o Parque Ramiro Souto, com 577 vagas, que será explorado pelo futuro concessionário. A possível intervenção causou grande polêmica nas redes sociais, além de críticas, que vieram tanto embasadas em critérios sobre mobilidade, como também a respeito de aspectos ambientais e arqueológicos. Ao Matinal, a secretária de Parcerias, Ana Pellini, reconheceu que a demanda poderia ser revista. Ainda assim, a previsão de construção de um estacionamento permanece nos documentos relacionados à concessão, no caderno de encargos.

O estacionamento é listado como uma das fontes de receita à concessionária da Redenção, assim como a locação de espaços comerciais, de restaurantes, um espaço de eventos e a instalação de painéis publicitários. Outra possibilidade de renda citada é a instalação de antenas 5G na área do parque – desde que esta tenha “projeto de viabilidade jurídica, técnica e econômico-financeira”.
Essa busca pelo lucro, valorizada em diversos pontos do projeto, é alvo de críticas. “Não é sobre lucro ou prejuízo que se trata um parque”, afirma Jéssica Neves, diretora adjunta de comunicação do Instituto dos Arquitetos do Brasil-RS (IAB-RS). Questionamento semelhante tem um dos coordenadores do coletivo Preserva Redenção, Jarbas Araujo: “Um parque público precisa dar lucro? Por que isso?”.
Questão social
Tanto o IAB-RS quanto o Coletivo Preserva Redenção são contrários à proposta. O temor é que se desencadeie um processo de gentrificação do parque, a partir do fomento que apenas pessoas mais ricas possam a frequentá-lo, em detrimento de pessoas mais pobres, tanto pelo acesso quanto pelo poder de consumo no parque. Jéssica não vê necessidade de cedê-lo em nome de mais investimentos: “Ele não está abandonado e é democrático”.
Ela ainda embasa seu argumento ao apontar que estão pouco claros os limites impostos ao futuro concessionário: “Há brechas para se criar uma série de caminhos privados entre o espaço público”, denunciou ela, citando também que a Redenção é palco de diversas manifestações, que, para ocorrer em um futuro sob concessão, ficariam a cargo da decisão de um gestor que não é o ente público.
Inaugurado em maio deste ano, o Refúgio do Lago é um exemplo de como público que hoje é frequentador do parque acaba por ser excluído das novidades, opina a professora do Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano e Regional da UFRGS (Propur), Heleniza Campos.
“Ele já não deixa o espaço tão permeável quanto era antes. Ele fica no meio do caminho e fica onde era o orquidário, onde havia toda uma história por trás”, comparou a professora, como forma de exemplificar como a concessão pode ser danosa ao público em geral. “É extremamente salutar ter um espaço aberto e público onde todos possam circular. A Redenção atende a todos os gostos. A qualquer hora do dia, você vê todo o tipo de gente.”
Araujo faz coro ao risco de gentrificação: “(A Prefeitura) não esconde que quer ‘qualificar’ a população que frequenta o parque. Ela quer excluir a população mais humilde, para quem a Redenção talvez seja um de seus poucos locais de lazer”.
Professor lotado no Parque Ramiro Souto, Araujo elencou uma série de críticas à forma que a Prefeitura vem conduzindo o andamento do projeto, desde a data da audiência pública, que ocorre em paralelo à programação da 6ª Conferência Municipal do Meio Ambiente, à consulta pública – na qual, no formulário, é impossível dizer que é contra à concessão, e sim apenas fazer sugestões à proposta.
O fato de a consulta encerrar depois da audiência pública também causou estranheza no IAB-RS. Para a arquiteta Jéssica, seria necessário ter o relatório completo das contribuições no momento da consulta à população.

Questão ambiental
Ex-servidor da Prefeitura e um dos criadores da antiga Secretaria Municipal de Meio Ambiente (hoje a Secretaria Municipal de Meio Ambiente, Urbanismo e Sustentabilidade) em 1976, o engenheiro Paulo Pizá escreveu com outras duas integrantes da equipe inaugural da secretaria, Susana Gastal e Carmen Hoonholtz, um parecer a respeito da proposta concessão. Dentre seus questionamentos, eles chamaram a atenção para a pouca atenção ao impacto com a natureza: “Nosso primeiro sobressalto foi constatar a inexistência de um enfoque ambiental na proposta: sequer são mencionadas as palavras ‘árvores’, ‘flora’, ‘fauna’”, aponta o documento.
Eles listaram nove questões que gostariam de ver respondidas, que passam do parecer jurídico que embasou a proposta ao tratamento arbóreo, ajardinamento e manutenção do parque, a especificações sobre como se darão o uso do lago e a segurança. O trio sugere a criação de projeto de infraestrutura e urbanização do parque, que considere, dentre outros, a drenagem pluvial (chuvas, esgoto sanitário dos equipamentos) e redes de água potável, e inventário dos espécimes da flora e fauna da Redenção, dentre outros pontos.
Conforme a secretaria, a Redenção tem hoje 37,51 hectares, sendo uma área verde em meio à região central de Porto Alegre. Pizá, Gastal e Hoonholtz, em seu texto, reforçam a necessidade de defender o espaço: “Prezar integralmente pelos nossos patrimônios ambientais significa preservar nossos valores culturais, espirituais e éticos”.
Questão histórica e patrimonial
O terreno onde hoje é a Redenção foi doado ao Município quando o Brasil ainda era colônia de Portugal, em 1807. Desde então teve diversos fins, como estacionamento de charretes e campo de treinamento militar, além de ter sido palco para inúmeros eventos, de touradas a bailes e apresentações musicais – o último grande deles o show dos 250 anos da Capital.
Desde 1997 é Patrimônio Histórico e Cultural de Porto Alegre, o que, na prática, é um reconhecimento à relevância da área para a cidade. “Estas importâncias e suas materialidades são os objetos que devem ser preservados”, explicou o arquiteto e urbanista José Daniel Simões, doutorando na UFRGS com atuação na área de avaliação de bens.
“A Redenção tem um papel na cidade estruturador”, acrescenta a professora Heleniza, que enfatiza a centralidade do parque na área da cidade e a grande movimentação que tem a partir do entorno, com os bares e residências de Bom Fim e Cidade Baixa, a UFRGS, a UFCSPA e a Santa Casa. “Tem toda uma relação com a cidade”, diz, ao alertar que não se pode pensar o parque como elemento segregador, tanto economicamente, como por sua história. “A perspectiva de ver a cidade como um bem coletivo é urgente”, afirma. “O estatuto da cidade tem mil problemas, mas traz a reflexão da cidade como um bem, que é da coletividade que precisa ter uma função social”, cita a professora. “A função social do Parque da Redenção é enorme.”

Quem defende o aprofundamento do debate afirma ser necessário colocar em um papel compromissos e direitos, que possam vir a ser cobrados do ente privado em um momento posterior.
Representantes da Prefeitura, em suas manifestações, reiteram que o parque seguirá público e que não será cercado no entorno de seu perímetro. Ficam em aberto, entretanto, questões sobre como ficarão os trabalhos na área do comércio informal e da educação no parque. “A gente não sabe o que vai acontecer com os ambulantes, nem eles sabem”, afirma Jarbas Araujo. “O projeto não tem estrutura, não existe desenho ou maquete. Está muito difuso. Está muito nebuloso o processo todo.”