Reportagem

Prefeitura de Porto Alegre compra R$ 14,4 milhões em kits didáticos sem licitação

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Prefeitura de Porto Alegre compra R$ 14,4 milhões em kits didáticos sem licitação Foto: Giulian Serafim / PMPA

Gestão Melo ignorou alertas da Procuradoria-Geral do Município, que apontou uma série de fragilidades no processo de compra, realizada sem licitação nem pesquisa de preços e com apenas único fornecedor

A Secretaria Municipal de Educação de Porto Alegre (Smed) comprou, entre outubro e dezembro deste ano, R$ 14,4 milhões em material didático sem licitação nem considerar alternativas concorrentes, alegando que a empresa contratada, a MindLab Brasil, detinha a exclusividade dos produtos adquiridos. 

Para dispensar licitação, a lei exige que o órgão público apresente um atestado de entidades comerciais, sindicais ou patronais, demonstrando que o material orçado tem fornecedor único no país. Procurada, a MindLab apresentou declarações de exclusividade da Câmara Brasileira do Livro (CBL) e da Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo de São Paulo (Fecomércio-SP), documentos que embasam a compra feita pela Smed. 

A exemplo das caixas de livros recentemente compradas em um processo sem concorrência, os kits chegaram de surpresa em 54 escolas, que não foram consultadas sobre a aquisição. Os materiais fazem parte de um programa chamado “MenteInovadora”, que, de acordo com a Smed, “corresponde à proposta curricular da rede de ensino e complementa as atividades educativas oferecidas nas unidades escolares”. 

A metodologia consiste em uma aula semanal de 45 minutos, ministrada pelos professores sob supervisão da MindLab, mas a grade curricular de 2023 não prevê um horário para o programa. Segundo a Smed, a capacitação ainda não começou. A MindLab informou que apresentou a metodologia aos gestores de escolas e fez três encontros virtuais com professores do 1º ao 7º ano.

O termo de referência do contrato, porém, não explica como o MenteInovadora se distingue de outras metodologias, e a Smed se contenta em copiar o texto de apresentação da MindLab, que identifica a empresa como “representante exclusiva no Brasil desta Metodologia e seus materiais, sendo líder mundial no desenvolvimento de habilidades e competências, estando presente em mais de 22 países”. 

O diferencial do programa, segundo nota emitida pela empresa, é o “caráter integrador de várias contribuições, de diferentes autores (geralmente isoladas e parciais em outros materiais existentes) com sustentação teórica socio-interacionista, e a base teórica dos BNCC (Base Nacional Comum Curricular)”. A MindLab sustenta que “não há outra (metodologia) igual disponível no mercado, seja brasileiro ou de qualquer outra parte do mundo”.

A pesquisa de preços da Secretaria de Educação não esconde ter considerado apenas a MindLab como fornecedora de material didático. Apesar da magnitude da compra, a prefeitura descreve ter feito uma pesquisa simples na internet: “Pesquisando pela empresa na plataforma Google, pode-se encontrar resultados sobre a empresa e seus serviços”. Em outro momento, pontua: “Ao procurar por ‘metodologia menteinovadora comprar’ na ferramenta de pesquisa Google, logo pode-se notar que a empresa Mind Lab é quem possui exclusividade sobre o produto”. A empresa, fundada em Israel e com sede em um bairro nobre de São Paulo, é gerida por Valmir J. Pereira, formado pela Universidade Mackenzie.

Na comparação por preços, apenas dois livros são citados como alternativas, mas são descartados por possuírem “objetivo pedagógico diferente aos interesses da Smed”.

O administrador Carlos Martins, especializado em orçamentos de obras para licitações públicas, analisou os documentos e concluiu que a compra foi irresponsável. “Tem todo um processo interno para determinar a dispensa de licitação. Demanda urgência, caixa disponível, serventia. Neste caso, encontraram um fornecedor e compraram logo, sem sequer testar primeiro, a partir de uma rotina de busca ineficaz. Isso é irresponsabilidade”, afirma, alertando também para o fato de o contrato da compra não estar disponível no Portal da Transparência.

Procuradoria recomendou pesquisa por alternativas

A ausência de concorrência já havia sido apontada pela Procuradoria-Geral do Município (PGM). “A equipe técnica deve atestar expressamente que não existem outros kits pedagógicos de outras marcas que possam ser utilizados em substituição dos itens pretendidos”, escreveu o procurador Roberto Mota, exigindo pesquisa de mercado e aconselhando comparar preços cobrados pela MindLab a outras instituições. 

Em 18 de agosto, a procuradora Rafaela Peixoto Azevedo apontou mais uma série de fragilidades documentais, como a ausência de indicação sobre reajuste de preços, a forma de recebimento do material, a indicação das penalidades por descumprimento e os casos para rescisão do contrato.

Ainda assim, a Prefeitura seguiu com a compra, realizando três depósitos em duas datas: R$ 166 mil e R$ 280 mil, em 20 de outubro; e R$ 13,8 milhões, em 9 de dezembro.

No total, são três os kits comprados. O kit do aluno contém dois livros e um guia para “integração da família” na metodologia de aprendizagem; professores recebem diários, livros para registrar atividades dos alunos e o guia para a família; já a escola recebe livros com instruções para a metodologia e seus respectivos “jogos de raciocínio”.

Smed defende programa para recompor aprendizagens

Procurada pelo Matinal, a Smed respondeu que o MenteInovadora vem promover uma urgente “recomposição de aprendizagens” em Porto Alegre. A compra teria sido motivada pela constatação de baixos índices no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep).

“Ressaltamos que todo o processo transcorreu dentro da legalidade e com aprovação jurídica. O MenteInovadora é uma proposta pedagógica totalmente em consonância com a política educacional para a Rede Municipal de Porto Alegre, pois atende às necessidades urgentes da recomposição das aprendizagens, bem como favorece a intervenção pedagógica do educador, no sentido de mitigar o baixo desempenho observado nos últimos anos”, informou por e-mail, ressaltando que o programa explora competências “a partir de diferentes níveis de aprofundamento e complexidade, tomando como base o exemplo do currículo em espiral”. A pasta não esclareceu se chegou a comparar a metodologia da MindLab com a de outros fornecedores.

A MindLab afirma que o MenteInovadora complementa o sistema de ensino, em vez de rivalizar com o currículo. Segundo a empresa, o programa “já impactou a vida de 5,6 milhões de pessoas com uma metodologia própria que atua na jornada educacional, cognitiva e socioemocional de 500 mil alunos e mais de 40 mil professores, sobretudo da rede pública de ensino, visando ainda reduzir as desigualdades na educação”. 

TCU suspende compra de kits do Mente Inovadora em Alagoas

Em setembro de 2016, o Tribunal de Contas da União (TCU) suspendeu um contrato de R$ 6,6 milhões entre o Estado do Alagoas e a MindLab. Segundo o relator do processo, ministro José Múcio Monteiro, futuro ministro da Defesa do governo Lula, “a forma de apresentação dos preços do contrato não permite aferir, e mais, garantir, que tais preços são os mais vantajosos para a Administração Pública”.

O processo envolveu parecer do Instituto Brasileiro de Sociologia Aplicada (IBSA), que questionou a qualidade do Programa MenteInovadora como atividade complementar, além de apontar que os jogos de raciocínio oferecidos pelos kits não abordavam características regionais e locais da sociedade, da cultura, da economia e dos alunos. A MindLab informa que sua defesa foi acolhida pelo TCU, e hoje Maceió utiliza o programa MenteInovadora.


Correção, 22 de dezembro, 18h11
Uma primeira versão informava que as escolas não haviam sido instruídas sobre como usar o material da MindLab. Mas a empresa informou que houve quatro encontros de apresentação da metodologia. A matéria foi atualizada.

Atualização, 22 de dezembro, 18h30min
A MindLab informou que sua defesa foi acolhida pelo TCU no contrato de R$ 6,6 milhões e hoje Maceió utiliza o Programa MenteInovadora. A matéria foi atualizada.

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