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Prefeitura alega vagas ociosas e reduz programa de aluguel para população vulnerável

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Prefeitura alega vagas ociosas e reduz programa de aluguel para população vulnerável Ônibus da Carris adesivado para campanha "Aluguel Solidário", em 2019, no Terminal Borges de Medeiros. Foto: Cristine Rochol/PMPA

Ação que aluga quartos em pousadas e hotéis para que famílias não durmam na rua ainda não chegou às zonas norte e sul de Porto Alegre

Criado ainda no governo de Nelson Marchezan Jr. (PSDB), o programa que aluga quartos em pousadas de Porto Alegre para pessoas em situação de vulnerabilidade foi ampliado na gestão de Sebastião Melo (MDB). No entanto, logo depois, foi reduzido sob a alegação de ociosidade de vagas. 

De acordo com o secretário de Desenvolvimento Social, Léo Voigt, o Moradia Primeiro começou com 60 vagas disponíveis, cresceu até alcançar cerca de 450, mas hoje oferece 350. Especialistas em assistência social afirmam que a demanda existe e pode ser maior, mas o programa sofre com a centralização de vagas. A maioria das pousadas se concentra no Centro e arredores. 

“É preciso de mais vagas em comunidades da zona norte e sul de Porto Alegre”, diz a educadora Jacqueline Junker Fuques, orientadora educacional na Escola Porto Alegre, que atende a população de rua em busca de formação no ensino fundamental.  “Política pública boa é aquela que ajuda a respeitar a realidade daquele cidadão. Desterritorializá-lo é fragilizá-lo mais uma vez. Se ele é do Centro, tem que procurar hospedá-lo naquela região”, diz Fuques.

A prefeitura alega que está tentando oferecer vagas em hospedagens pelo menos em mais dois pontos: no eixo Assis Brasil e Baltazar de Oliveira Garcia, na zona norte, e na zona sul, extremo sul e Restinga. Mas não há previsão de quando a ideia irá se concretizar. Segundo Voigt, não há estabelecimentos interessados em oferecer o aluguel social nestas regiões. 

“Temos a convicção de que, se tiver uma pousada (nestes locais), haverá uma ocupação importante. Como ainda não temos a oferta, estão dormindo na rua”, reconhece.

O Moradia Primeiro é baseado na experiência internacional do Housing First. A ideia é dar habitação a uma pessoa em situação de rua que precisa se reorganizar economicamente. A avaliação é feita por profissionais da Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc), que encaminham o morador que pode usar o aluguel social de R$ 18,53 por dia por, no máximo, dois anos. Nas pousadas, os quartos são privativos, e cômodos como cozinha e banheiros são  compartilhados.

“É uma hospedagem, e a pessoa pode ficar de um a dois anos, enquanto é acompanhada pela política da assistência social. Isso deu muito certo”, diz o secretário. 

Fuques concorda que a política é exitosa no mundo, mas no Brasil ela não vem acompanhada de políticas de assistência social de longo prazo, o que a torna uma solução temporária. “Temos que pensar em uma política que não tenha validade de dois anos. Se uma pessoa com toda estrutura não consegue organizar sua vida, imagina uma pessoa com uma desestrutura geracional. Se a gente limita o programa ao tempo e gera descontinuidade, não dá certo. Ele é importante, mas não sem políticas de assistência continuada”, sustenta Fuques.

Fiscalização não impede acidentes

Outro problema é a falta de fiscalização dessas pousadas por parte da prefeitura. Voigt admite que o imóvel tem de atender a requisitos, mas que nem sempre a Fasc consegue verificar se todos os itens são cumpridos. Em novembro do ano passado, um incêndio causou a morte de uma pessoa em uma pousada, no Centro Histórico, onde a prefeitura alugava 16 vagas. 

A vítima, segundo o delegado Paulo César Jardim, titular da 1ª DP da Capital, estava em seu quarto, mas não era vinculado ao programa municipal. Os laudos da perícia apontaram como inconclusiva a origem do fogo que deixou, além de um morto, mais de uma dezena de feridos. 

O jornal Boca de Rua, feito há 18 anos por pessoas em situação de vulnerabilidade social, chamou a atenção na capa da edição do último trimestre de 2022 para as condições do estabelecimento. De acordo com os relatos, residentes precisaram abandonar suas moradias, classificadas como “péssimas”, em meio às chamas. Para eles, era uma “tragédia anunciada”.

“Era mais ou menos meia noite, eu estava deitado, quase dormindo, escutando meu radinho. Uma pessoa começou a bater na porta dizendo para eu sair porque estava pegando fogo. Eu senti o cheiro, vi a fumaça entrando, mas não saí. Fiquei parado, rezando. Até que pensei: ‘Não, eu não vou morrer deste jeito, não hoje’. Então, abri a porta. O fogo veio para cima de mim, me queimou. Fui para trás, botei a roupa na cara e saí gritando socorro”, descreve na publicação um hóspede, que preferiu não ser identificado.

Queda da população em situação de rua é motivo de discordância

A Fasc calcula que a população em situação de rua está diminuindo. De 2011 a 2020, o primeiro ano de pandemia, o número quase dobrou: de 1.347 para 2.679, um aumento de 99%. No ano seguinte, recuou 6% e, no ano passado, 5,8%, encerrando 2022 com 2.371 pessoas em situação de rua. Para chegar a este total, a prefeitura desconsidera aqueles que pedem ajuda nas ruas e sinaleiras, mas possuem residência fixa. 

Mas há uma diferença entre os números da Fasc e da saúde, que não são cruzados. O Desenvolvimento Social, segundo Voigt, usa o conceito “rua-domicílio”, que considera pessoas em situação de rua somente aquelas que não possuem residência fixa, ao contrário da estimativa dos serviços de saúde e assistência social, que reúnem cerca de 5,8 mil pessoas monitoradas por diversas situações de vulnerabilidade. “Sempre há, salvo alguma exceção, uma distância importante entre a narrativa de vitimização que ele (morador de rua) faz e o diagnóstico que a assistência em saúde e social obtêm. É muito difícil achar alguém nas ruas que não tenha problema psiquiátrico relevante”, explica.

A ONG Centro Social da Rua, que realiza ações solidárias como aquecimento, banho e lavanderia, usa como parâmetro os mais de 5 mil prontuários de atendimento. Uma das possíveis explicações para a divergência é que, para a ONG, as famílias que dependem de abrigos temporários ainda estão em vulnerabilidade. “Dorme durante a semana na rua e vai para casa no domingo”, exemplifica Fuques, que há 21 anos trabalha com esta população.

Além do aluguel nessas hospedagens, há  outras quatro formas de acolhimento de pessoas em situação de vulnerabildiade social: o albergue Dias da Cruz, na Azenha, que é passageiro; o abrigo Marlene, no Menino Deus, em que o hóspede é internalizado; comunidades terapêuticas, em caso de adição; e instituições hospitalares psiquiátricas nos casos de condições psiquiátriacas mais severas. 

Porto Alegre possui uma rede socioassistencial que recebe os encaminhamentos por meio de avaliação das equipes técnicas da Fasc. Os critérios e vagas disponíveis em cada serviço podem ser consultados neste link.

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