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Produtores de cinema criticam edital gaúcho da lei Paulo Gustavo: “obscuro e confuso”

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Produtores de cinema criticam edital gaúcho da lei Paulo Gustavo: “obscuro e confuso” Entidade que congrega cerca de 300 técnicos do cinema no estado diz que o documento lançado pelo governo gaúcho “foge claramente da intenção” das diretrizes da Lei Paulo Gustavo. Foto: Ascom Sedac

Para a Associação Profissional de Técnicos Cinematográficos do estado, edital da Secretaria de Estado da Cultura (Sedac) está em desacordo com os pressupostos da lei. Pasta diz que não reformulará documento. Prazo para envio dos projetos acaba dia 25 deste mês

Os editais estaduais de distribuição dos recursos da Lei Paulo Gustavo foram aguardados com ansiedade pelo setor cultural. Pudera: trata-se do maior aporte financeiro direto para o mundo das artes da história no Brasil, com 3,86 bilhões de reais destinados a projetos em todo o território nacional. O Rio Grande do Sul ficou com 90 milhões, que serão distribuídos pela Secretaria Estadual de Cultura (Sedac). 

Mas a expectativa pelo edital se transformou em frustração para os  produtores cinematográficos. Eles apontam falhas especialmente em um dos editais, chamado de “Ecossistemas Regionais de Audiovisual”, que vai distribuir 7,56 milhões de reais. Segundo a Associação Profissional de Técnicos Cinematográficos do estado (APTC-RS), o edital em questão concentra recursos nas mãos de poucas empresas, é pouco explicativo, faz exigências avaliadas como descabidas e é vago quanto à aplicação de ações afirmativas na distribuição dos recursos. 

Em carta encaminhada ao Ministério da Cultura (Minc), a entidade que congrega cerca de 300 técnicos do cinema no estado diz que o documento lançado pelo governo gaúcho “foge claramente da intenção” das diretrizes da Lei Paulo Gustavo. No ofício, pediram que o Minc intercedesse para que o edital fosse interrompido, e que um novo, reformulado, fosse lançado com a correção dos problemas. O ministério ainda não respondeu à solicitação da associação profissional.

O caráter “obscuro e confuso” do edital provoca insegurança em potenciais proponentes, diz o documento. Segundo a APTC, se mantida sua proposta central, seguiria em desacordo com os pressupostos da lei. 

“É importante estabelecer que estamos buscando esclarecimentos a respeito do edital para a sociedade civil, porque se trata de uma verba pública que vai impactar profissionais que estão há dois meses tentando entender a confusão desse documento. Já enviamos ofício, buscamos abrir espaços de diálogo, mas não conseguimos compreender o que está acontecendo. A partir de certo momento, as respostas da secretaria simplesmente começaram a não vir mais”, desabafa uma produtora à Matinal. Ela pediu para não ser identificada para não sofrer prejuízos profissionais.

Segundo a produtora, o edital é tão vago que as empresas não sabem o que inscrever, nem o que esperar do financiamento. “Mesmo as pessoas que construíram projetos para esse edital relatam dores de cabeça por não saber se o que inscreveram será desenvolvido, como terão acesso ao recurso, algo básico num processo de edital. O texto não tem objetividade, quer que nos joguemos num voo cego”, relata. “O pior é que se trata de um edital com muito dinheiro, num contexto de necessidade de apoio às pequenas empresas do setor, pós-pandemia e pós-governo Bolsonaro”, afirmou a profissional.

Em uma das reuniões promovidas pela Sedac para tirar dúvidas dos editais, este edital em particular suscitou inúmeros questionamentos. “Em São Paulo, o Ministério Público precisou intervir para derrubar editais que agora estão sendo relançados”, exemplificou. “O Rio Grande do Sul é o terceiro estado de produção audiovisual do Brasil e depois de Rio de Janeiro e São Paulo. É importante ficar atento a isso. A gente não está falando de um local que produz muito e com qualidade”, argumenta a produtora gaúcha.

Concentração de recursos nas mãos de poucos empresas

O primeiro ponto problemático no edital de “Ecossistemas” apontado pelo coletivo se refere à condição de que apenas produtoras com anuência de instituições de ensino ou de outras empresas do setor audiovisual possam pleitear os recursos. A APTC afirma que isso promove a concentração de recursos, e o poder de decisão quanto aos projetos aprovados fica na mão de um grupo muito pequeno de instituições, o que contraria as diretrizes de diversidade e inclusão da Lei Paulo Gustavo. “As pequenas empresas e microempresas, que são por direito as justas merecedoras dos recursos, ficarão à mercê da boa-fé dos gestores de um punhado de empresas e instituições em vez de pleitearem livremente por esses recursos que deveriam receber em aporte direto”, diz na carta enviada ao Minc. 

Em resposta à Matinal, a Sedac justificou que a condição serve para  integrar o mercado e as instituições de ensino no setor audiovisual gaúcho. O objetivo, de acordo com o governo, seria o de criar uma rede colaborativa, “naturalmente organizada ou intencionalmente projetada”, composta por empresas, universidades, governo e sociedade civil, “que compartilham e recombinam recursos tangíveis e intangíveis com o propósito de geração de valor”.

Outro ponto criticado se refere a falta de explicações quanto à aplicação de ações afirmativas na distribuição dos recursos do edital. Segundo a APTC, o texto provoca a interpretação de que não será aplicada uma política de reserva de vagas, o que também estaria em desacordo com a Lei Paulo Gustavo. “Quando questionada sobre essa pauta, a Sedac nos respondeu que tal processo não precisaria dessa política, posto que não era um concurso público e que, ao se inscrever no edital, o proponente já estaria contemplado”, diz a associação. O grupo afirma ser “injusta” a afirmação do governo de que não seria necessário aplicar uma ação afirmativa para garantir que os projetos tenham a diversidade proposta pela lei. 

A Sedac justificou este ponto dizendo que o edital opera por meio de  uma “lógica de cooperatividade”, na qual os recursos são distribuídos por divisão proporcional. Desta maneira, informou o governo, todos os proponentes que atingem os requisitos são selecionados, sem concorrência, o que não ameaçaria a diversidade. “Compreendendo a conjuntura atual do setor audiovisual gaúcho e suas necessidades, temos confiança de que a fórmula cooperativa potencializará as ações resultantes”, disse a pasta à Matinal

A pasta ainda informou que o edital estabelece textualmente a valorização de projetos que promovam ações afirmativas, que contemplem inclusão de pessoas trans, negros, ciganos, quilombolas, indígenas e mulheres, bem como outros grupos minoritários do mercado audiovisual.

 A secretaria considera que o edital causou estranheza por ser muito inovador: “Talvez, por este motivo, o formato tenha causado certa estranheza nos potenciais partícipes, mas entendemos essa limitação de entendimento, tendo em vista o ineditismo da proposta. No entanto, a formação de ecossistemas é experiência exitosa em setores da economia gaúcha, projetados com o acompanhamento da Secretaria de Inovação, Ciência e Tecnologia no Programa Inova RS”. 

A falta de compreensão sobre os requisitos do edital levou à prorrogação do prazo. O governo precisou prorrogar o primeiro prazo proposto para apresentação de propostas por solicitação de entidades artísticas. No caso do edital dos ecossistemas, o prazo se estendeu até o dia 25 de outubro. Antes, os projetos deveriam ser entregues até 25 de setembro. Apesar das críticas, o governo estadual disse que não fará mudanças no edital por causa do prazo

Não é a primeira vez que os editais da Sedac geram críticas da classe artística. Em nota à imprensa divulgada em setembro, a Operativa do Comitê Estadual da Lei Paulo Gustavo, organização da sociedade civil para debater a execução da política, elencou uma série de problemas, referentes a todos os nove editais divulgados no dia 25 de agosto. Entre eles, estão o impedimento de participação de pessoas físicas e de quem não tem cadastro estadual de produtor cultural; inscrição “altamente burocrática”; falta de consultoria para proponentes com dificuldades para se inscrever; pouca pulverização dos valores distribuídos entre a totalidade de projetos.

A Lei Paulo Gustavo foi aprovada em 2022 e prevê o repasse de 3,862 bilhões de reais a estados e municípios, para aplicação em ações emergenciais que tenham o objetivo de combater os efeitos da pandemia da covid-19 no setor cultural. No Rio Grande do Sul, além dos 90 milhões distribuídos pelos editais disponibilizados pela Sedac, há mais 104 milhões já disponibilizados pelo governo federal a 486 municípios que submeteram planos de ação solicitando recursos. Serão selecionados até 420 projetos, com valores entre 50 mil e 4 milhões de reais.


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