Reportagem

No RS e em Brasília, Projetos de Lei propõem protocolos para atendimento de vítimas de violência sexual

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No RS e em Brasília, Projetos de Lei propõem protocolos para atendimento de vítimas de violência sexual PL municipal foi apresentado à sociedade civil no dia 6 (Foto: Ju Marques / Gabinete da Vereadora Biga Pereira)

Vereadora de Porto Alegre tem expectativa de aprovar lei semelhante à de Barcelona até 8 de março, Dia da Mulher

Daniel Alves está preso desde o dia 20 de janeiro, acusado de ter cometido um estupro contra uma jovem de 23 anos em uma boate em Barcelona. Nesta quinta, foi realizada uma audiência para analisar o pedido de liberdade provisória solicitado pela defesa do brasileiro.

As provas que justificaram sua prisão temporária foram preservadas graças ao protocolo catalão “No callem” (“Não calem”, em português), criado em 2018 pelo governo de Barcelona e acionado imediatamente naquela noite. O documento também garantiu o acolhimento adequado à vítima. 

Na esteira deste episódio, pelo menos cinco Projetos de Lei que propõem protocolos semelhantes foram apresentados na Câmara Federal neste ano. Dois são de autoria de deputadas gaúchas: Maria do Rosário (PT) e Fernanda Melchionna (PSOL), em coautoria com a correligionária Sâmia Bomfim (SP).

No Rio Grande do Sul, há outros dois: um apresentado pela vereadora da Capital Biga Pereira (PCdoB) e outro pela deputada estadual Stela Farias (PT). As propostas são semelhantes na medida em que foram inspiradas no documento catalão. Priorizam o respeito e a proteção à vítima e recomendam o treinamento de equipes para o acolhimento às mulheres e a preservação de provas do crime. Em São Paulo, foi sancionada pelo governador Tarcísio de Freitas (Republicanos), em 3 de fevereiro, uma lei que obriga estabelecimentos a adotarem medidas de auxílio para mulheres que se sintam em situação de risco.

A iniciativa de Biga avança ao propor o Selo Mulheres Seguras para casas noturnas e outros estabelecimentos que promovem eventos de grande porte, como estádios de futebol. Receberiam o selo os locais que adotarem o protocolo “Não é Não”, previsto no mesmo PL e que, a exemplo das iniciativas de outras parlamentares, também prevê ações para o atendimento adequado à vítima. A primeira versão do texto foi apresentada em uma reunião no dia 6 de fevereiro à sociedade civil, um encontro que contou com a participação de produtores de eventos, representantes do comércio e dos clubes e torcidas de Grêmio e Inter.

O gabinete da vereadora trabalha agora para elaborar uma segunda versão a partir das contribuições recebidas na reunião. “Foi um encontro muito rico. Discutimos como deve ser esse acolhimento e concluímos que é fundamental capacitar a equipe que vai acolher as vítimas, como seguranças, garçons, caixa, porque muitas vezes a mulher vítima dessa situação (assédio ou violência sexual), ao pedir ajuda, acaba passando por constrangimentos”, afirma Biga.

A parlamentar busca parcerias para facilitar a promoção do treinamento. Uma alternativa estudada é a Escola do Legislativo da própria Câmara apoiar a iniciativa e oferecer espaço físico para as aulas, além de um certificado ao final, o que, na visão de Biga, estimularia os funcionários a participarem do treinamento. 

Contatada pela vereadora, a Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher (Deam) de Porto Alegre já se colocou à disposição para prestar “apoio para a criação do documento e até mesmo para capacitação dos envolvidos”, conforme confirmou à reportagem do Matinal a delegada titular Cristiane Ramos. “A criação de protocolos para prevenção e pronta resposta a situações envolvendo crimes sexuais em casas noturnas se mostra como uma iniciativa importante do Poder Legislativo”, afirmou Ramos, que destacou que a Deam será parceira “de todos os projetos do Município que se relacionem ao enfrentamento à violência contra a mulher”.

Segundo Biga, que já conversou com o presidente da Câmara de Vereadores, Hamilton Sossmeier (PTB), a ideia é colocar o PL para votação até o Dia da Mulher, 8 de março. “Sendo bem otimista, penso que será aprovado por unanimidade. Não tem como se contrapor a essa realidade”, afirma. Segundo o Anuário de Segurança Pública do Brasil 2022, em 2021, foram notificados no RS 1.016 estupros de mulheres acima de 14 anos; no Brasil, houve 14.423 registros. Quando somados aos casos de vulneráveis, o número sobe para chocantes 52.797 em todo o País. E o pior: o dado real, considerando a estimativa de subnotificação, seria 10 vezes maior. Especialistas calculam que apenas 1% dos agressores são condenados. “O projeto é um convite para que a sociedade assuma a luta contra a violência sexual como bandeira sua”, defende Biga.

Informar para proteger

Comunicar aos frequentadores sobre o protocolo adotado faz parte das orientações em vigor em Barcelona desde quando o documento foi criado, em 2018. “Se a gente chega e vê que aquele lugar tem o selo, isso nos dá segurança”, comentou Malu Barbará, integrante da diretoria da Força Feminina Colorada e presente na reunião promovida pela vereadora Biga Pereira.

Malu foi presidente da torcida organizada por 11 dos quase 14 anos de sua existência. Hoje, a FFC conta com cerca de 200 torcedoras. Segundo ela, o Inter já tem políticas eficazes de combate à violência contra a mulher no estádio. “Existe canal de denúncia e vários cartazes espalhados pelo estádio. Sempre que há algum risco, chamamos um segurança e somos atendidas imediatamente, e a pessoa que está representando perigo pode ser retirada se for preciso. Nós nos sentimos seguras lá. Seria importante encontrar essa segurança em outros locais também”, sublinhou.

A torcedora colorada também destacou a importância do treinamento como forma de prevenir casos de violência, capacitando os profissionais a identificarem situações de risco antes de um crime acontecer. E chama a atenção para outra lei vigente na Espanha, conhecida como “Solo sí es sí” (“Só sim é sim”). “Não é só o ‘não é não’ que é importante. Porque às vezes a gente não diz ‘não’. Um cara te toca na balada e tu não gosta, mas não fala nada, te retrai, fica constrangida. Além de tudo, tens que dizer ‘não’ pra uma pessoa que acha que tem direito sobre o teu corpo? É muita carga para cima de nós”, comenta.

De acordo com Janice Cardoso, diretora feminina e de inclusão do Inter e também presente no encontro, o canal de denúncias do clube acaba de completar um ano – e nunca recebeu um caso. “São 300 cartazes informando o número de WhatsApp entre o Beira-Rio e o Gigantinho”, afirma. Ela informa ainda que o clube já trabalha para, em breve, treinar seus funcionários e terceirizados que atuam nos jogos a partir de orientações que já constam no primeiro texto do PL municipal. A capacitação também deve contemplar uma demanda de pessoas trans: permitir que escolham entre um homem ou uma mulher na hora da revista ao entrar no estádio.

O clube participou da elaboração da lei estadual que instituiu, no fim do ano passado, o selo EmFrente, Mulher, e aguarda para breve receber o reconhecimento dado a empresas que promovam ações regulares que valorizem a mulher e enfrentem a violência contra elas.

A culpa não é da vítima

Os protocolos propostos no Brasil focam em ações para o suporte a vítimas de assédio ou violência sexual. Mas as entrevistadas que conversaram com o Matinal acreditam que o fato de um estabelecimento se posicionar como um local seguro para as mulheres e pessoas trans ajuda também no caráter educativo e pode coibir novos casos. 

Para a deputada federal Fernanda Melchionna, um documento que dê celeridade à investigação de casos de violência de gênero, como ocorreu em Barcelona, contribui para a responsabilização dos agressores e, por consequência, combate a cultura do estupro, segundo a qual a mulher é culpada pelas agressões que sofre. “A existência de vários locais que adotem um conjunto de ações e têm pessoas formadas para atuar nesses casos ajuda a diminuir a sensação de que ‘ninguém vai ver’ ou de que um caso ficará impune”, observa.

O PL assinado por Melchionna nasceu de uma demanda de coletivos feministas que buscaram a colega Sâmia Bomfim. Da mesma forma que as duas uniram suas propostas num mesmo PL, a deputada gaúcha vê a possibilidade de juntar as ideias de outras parlamentares em um único texto. “Para nós nunca vai ser um problema de ‘maternidade’ do projeto. É possível unificá-los para que se tenha um protocolo único com as melhores ideias de cada um. A gente teve uma ampliação das mulheres no parlamento, o que é ótimo para fazer essa luta interna. Mas a pressão de fora é importante para que a gente consiga avançar dentro”, afirma. 

A deputada considera remota a chance de alguém se opor ao projeto, mas destaca que a lógica machista da sociedade, reproduzida na Câmara, pode representar um problema. “Eu acho difícil alguém dizer ‘não, esse projeto é ruim’. Mas basta não botar para votação”, alerta.

Sobre haver iniciativas nas três esferas de poder, vale lembrar que uma lei federal se sobrepõe às estaduais e municipais, mas, conforme a advogada feminista Gabriela Souza,  todas são válidas na medida em que contribuem para a luta contra a violência sexual: “É sempre bom reforçar o óbvio, não é?”

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