Reportagem

Menos mortes e engarrafamentos: movimento quer reduzir a velocidade nas cidades brasileiras

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Menos mortes e engarrafamentos: movimento quer reduzir a velocidade nas cidades brasileiras Em 2022, Porto Alegre lançou seu Plano de Segurança Viária (Foto: Pedro Piegas/ PMPA)

Entidades da sociedade civil, como a Fundação Thiago Gonzaga, articulam com parlamentares para protocolar projeto de lei que altera Código Brasileiro de Trânsito. Porto Alegre já estuda readequar limites em vias de grande circulação

Mais que uma mudança de cidade e país, a vida da fonoaudióloga Paula Dallegrave Priori mudou de estilo a partir de 2021. Acompanhada do marido e da filha, então com menos de 3 anos, ela trocou Porto Alegre por Barcelona. O carro da família, tão necessário para deslocamentos na capital gaúcha, ficou do lado de cá do oceano. Se antes era um elemento presente no cotidiano, tornou-se anacrônico na nova cidade.

“A percepção do trânsito em relação à Porto Alegre é bem clara: aqui é muito melhor. Não percebemos o ambiente tóxico que é o trânsito aí”, compara ela, usuária frequente do metrô, além de pedestre habitual. Aliás, caminhar na rua com a filha é, agora, mais tranquilo. “Os carros não andam em alta velocidade, respeitam o pedestre, faixa de trânsito, usam a seta, enfim tu consegues prever o que vai acontecer.”

Tendência em cidades que são exemplo em mobilidade ativa, a redução de velocidade foi decretada pelo governo espanhol em maio de 2021. Desde então, os limites na maioria das vias urbanas de todas as cidades espanholas são de até 30 km/h – em vias com pavimento de mesmo nível para pedestres e veículos, o máximo permitido é de 20 km/h, e naquelas com duas ou mais faixas em cada sentido de tráfego, 50 km/h. 

Um movimento no Brasil quer entrar nessa onda e readequar os limites nas vias das cidades de todo o país. A União de Ciclistas do Brasil (UCB), em parceria com outras entidades como a Fundação Thiago Gonzaga, propõe uma alteração no Código de Trânsito Brasileiro que fixaria em 60km/h o máximo permitido nas vias de trânsito rápido e 50km/h nas vias arteriais. Hoje a lei permite 80 km/h e 60 km/h, respectivamente. O máximo para vias coletoras e locais permaneceria em 40km/h e 30 km/h. 

Recebidos pela Frente Parlamentar em Defesa do Trânsito Seguro da Câmara dos Deputados em abril do ano passado, os ativistas apresentaram suas demandas, entre as quais também está a revogação do parágrafo 2º do artigo 61 do CTB, que permite às autoridades locais de trânsito a determinar velocidades maiores ou menores que as previstas no código. A expectativa é que, neste ano, um projeto de lei seja protocolado na Casa.

Ana Luiza Carboni, coordenadora do projeto Vias Seguras, falou ao Matinal nesta terça-feira pouco antes de embarcar do Rio de Janeiro para Brasília, onde daria sequência ao diálogo iniciado em 2022. “Como teríamos eleições, não focamos tanto no legislativo no ano passado. Lançamos um manifesto para angariar assinaturas e começar a dar publicidade a essas questões. Agora já estamos dialogando com o possível novo presidente da frente”, contou. O projeto é resultado da articulação da UCB que, em 2021, foi contemplada com o apoio da International Federation of Red Cross and Red Crescent Societies junto ao programa Global Road Safety Partnership.

O foco do projeto é reduzir as velocidades para salvar vidas. “Quanto menor a velocidade, menos lesões, menos lesões graves e menos mortes”, resume a diretora financeira da UCB. Um dos argumentos usados pela UCB para defender a pauta são dados relacionados a atropelamentos. Uma pessoa atropelada por um carro a 30 km/h tem 90% de chance de sobreviver. Já se o automóvel trafega a 50km/h, o índice cai para menos de 20%. 

O documento publicado pela entidade apoia-se ainda em experiências brasileiras e estrangeiras nas quais a redução das velocidades levou à maior segurança no trânsito. São Paulo, por exemplo, fez alterações significativas nesse sentido desde 2011. Em 2015, foram reduzidos os limites em duas das principais vias expressas, as marginais Tietê e Pinheiros, onde a velocidade máxima permitida passou de 90 km/h para 70 km/h nas vias principais, além de reduções de 70 km/h para 60 km/h nas pistas centrais e de 60 km/h para 50 km/h nas pistas locais. O sucesso da operação, destaca o relatório da UCB, foi verificado no ano seguinte, quando a cidade registrou uma queda de 52% no número de mortes nas duas marginais.

Outras experiências dentro e fora do Brasil comprovam a relação entre velocidades menores e menos mortes, mas ainda falta comunicar efetivamente esses dados à população. Uma pesquisa de opinião encomendada pela UCB a uma empresa terceirizada revelou que 82% dos entrevistados conhecem alguém que morreu no trânsito, e 9 em cada 10 consideram alto o número de mortes nas vias brasileiras. Quando a questão são limites de velocidade mais baixos, metade concorda que isso evitaria mais óbitos, mas 8 em cada 9 deixaram de citar a redução dos limites como fator importante para essa queda.

Em São Paulo, houve forte resistência em diferentes setores da sociedade logo após a decisão de reduzir a velocidade nas marginais. “As pessoas sempre pensam que vão ter perda se forem mais devagar. Ao contrário, o trânsito flui melhor”, diz, citando o exemplo da ponte Rio-Niterói, onde o limite passou de 110km/h para 80km/h e houve melhoria na fluidez. “Por isso, estamos deixando de falar em redução, e usando o termo readequação de velocidades”, explica. 

Carboni destaca uma ilustração didática aprendida com a engenheira de transportes e professora da Universidade Federal de Alagoas Jessica Lima. “Pense em uma torneira aberta, com ralo pequeno. Se você abrir toda a torneira, a água vai acumular. Se abrir menos, ela vai escoar, vai passar mais lentamente, mas constantemente”, exemplifica. “É preciso mudar a visão de que ‘a velocidade vai fazer eu chegar primeiro’. Já está provado que a redução da velocidade máxima não tem impacto na velocidade média. As cidades são feitas de gargalos. Acelerar significa apenas que você vai chegar mais rápido num gargalo”, completa.

Porto Alegre estuda reduzir limites de velocidade

O empenho da UCB vai ao encontro da meta da Organização das Nações Unidas (ONU) de chegar em 2030 reduzindo em 50% o número de vidas perdidas e de lesões causadas no trânsito em todo o mundo. Trata-se de um esforço global, construído por cada cidade ao redor do planeta. É a chamada Década de Ação pela Segurança no Trânsito. 

Conforme os dados de 2021 da ONU, cerca de 3,5 mil pessoas morrem diariamente em vias públicas no mundo. Essa soma equivale a cerca de 1,3 milhão de pessoas ao ano – quase uma Porto Alegre inteira. Gente que morreu por morte evitável, por uma causa que já era a principal responsável por ceifar vidas de quem tem entre 5 e 29 anos. 

Signatária do objetivo da ONU, a capital gaúcha registrou mais de uma pessoa morta no trânsito por semana ao longo do ano passado. Ao fim de um ano marcado pela retomada da rotina sem as restrições impostas pela pandemia, viu o número de óbitos e feridos no trânsito voltar a crescer. Foram, conforme dados da Empresa Pública de Transporte e Circulação, 74 mortes e 6.030 feridos em 2022 ante 72 vítimas fatais e 5.027 lesionados em 2021.

Motos são alvo de ação educativa (Foto: Alex Rocha/PMPA)

Em dezembro do ano passado, Porto Alegre lançou seu Plano de Segurança Viária Sustentável, baseado na agenda 2030 da ONU. De acordo com a Secretaria de Mobilidade Urbana, o Executivo estuda reduzir limites de velocidade em vias “com grande movimentação de pedestres e maior quantidade de conflitos entre usuários (pedestres, motoristas, ciclistas)”.

Em nota enviada à redação, a pasta destacou ainda os esforços em áreas escolares também com o objetivo de redução de velocidade e na promoção de um trânsito mais seguro. Também no ano passado, a Escola Pública de Mobilidade da EPTC lançou o Manual do Educador para que os professores possam trabalhar o tema da mobilidade nas escolas. 

Em 2018, a capital gaúcha foi uma das primeiras a bater a meta de redução de mortes no trânsito que dizia respeito ao período de 2011 a 2020. Junto a Rio Branco, Salvador, Belo Horizonte, Aracaju e Curitiba, Porto Alegre reduziu em pelo menos 50% – dois anos antes do fim do prazo. 

Contudo, a maior parte do mundo não atingiu a meta para aquela década – por isso os objetivos foram revistos para 2030, explica Eduardo Bohn, da Fundação Thiago Gonzaga. Há 26 anos, um trânsito mais seguro é a bandeira da entidade, cuja história teve início com a morte de Thiago Gonzaga em um acidente. A perda do filho, que havia completado 18 anos uma semana antes da madrugada de 20 de maio de 1995, motivou Régis e Diza Gonzaga a lançar a iniciativa.

É difícil mensurar o impacto de todos esses anos de trabalho, diz Bohn, que há quatro anos é o responsável por políticas públicas, projetos e relações internacionais da ONG. Mas ele arrisca dizer que a conquista da meta da ONU em 2018 tem um dedo da Fundação. “Acredito que seja resultado também do trabalho constante e ininterrupto do Vida Urgente. Já fazemos parte da vida de gerações de pais que viram nossas ações na sua escola e agora vivenciam isso com seus filhos”, comenta.

E complementa: “paradoxalmente somos a capital onde mais adolescentes já experimentaram bebida alcoólica e também uma das que menos misturam bebida e direção”, destaca Bohn. Segundo o relatório Vigitel Brasil 2020, do Ministério da Saúde, a capital gaúcha está entre as três com menor índice de pessoas que admitem beber e dirigir.

A Thiago Gonzaga, que está junto da UCB na elaboração do PL que quer alterar os limites máximos de velocidade no Brasil, já tem um histórico de interlocução com o Congresso. No ano passado, eles estimularam a criação da Frente Parlamentar pela Segurança de Crianças e Adolescentes no Trânsito no Senado. “Um trânsito seguro para as crianças é seguro para todo mundo”, defende Bohn.

A primeira ação do Vida Urgente, lembra ele, foi um abaixo-assinado para tirar da gaveta o Código de Trânsito Brasileiro, lançado em 1997, ano seguinte à criação da ONG. 

Nas discussões promovidas pela prefeitura para elaborar seu Plano de Segurança Viária, a fundação destacou a importância de cuidar das zonas escolares. Segundo ele, o texto foi baseado em visões consistentes e estudos sólidos sobre o tema. “Nosso papel agora é acompanhar para que não seja apenas uma carta de intenções e de fato salve vidas”.

Um dos documentos que embasaram as discussões em Porto Alegre foi o Plano Nacional de Redução de Mortes e Lesões no Trânsito (Pnatrans). Criado em 2018 e revisado em 2021, o texto prevê a adequação de limites de velocidade, além de traçar metas que extrapolam as regras de trânsito e contemplam também órgãos de saúde e justiça. 

O Pnatrans, aliás, também apoia os estudos da UCB. Para Ana Luiza Carboni, o documento é de suma importância, mas ainda “é pouco falado”. A ativista destaca os diferentes aspectos sociais envolvidos nas questões de trânsito, como consequências na saúde pública, considerando os leitos de emergências ocupados por feridos, e o impacto na previdência. 

Status do carro

Em cidades planejadas para o carro, não à toa a população mais vulnerável no trânsito são pedestres, ciclistas e motociclistas – e dentro desse grupo, as vítimas mais comuns são pessoas negras, destaca Carboni. 

Para a engenheira civil e gerente de mobilidade ativa do WRI, Paula Manoela dos Santos, a questão geracional é chave na mudança de visão que ainda precisa ser feita para o carro deixar de ser visto como o elemento central na mobilidade. “Ainda habita em nós uma questão de status do carro. A bicicleta é vista como veículo só no Código de Trânsito Brasileiro. Para as pessoas, nem sempre. Diria que até é um pouco marginalizada, como considerar que quem anda de bicicleta não teve sucesso”, diz.

Carboni sabe bem do que Santos está falando. A ativista, que não tem carro há oito anos, costuma contar a história de suas idas ao mercado: “Na hora de pagar, sempre perguntam se tenho o ticket do estacionamento, e eu respondo que não tenho carro. Até que um dia uma caixa falou ‘Deus há de prover um pra você'”.

Ela tem consciência do seu privilégio de não precisar de um automóvel, situação diferente de quem vive distante do trabalho, por exemplo. “A pauta da mobilidade acaba sendo secundária, mas precisa ser olhada sob vários aspectos, como habitação e acesso a serviços e oportunidades”, afirma.

Apesar de o caminho até um trânsito mais seguro ser longo, os especialistas ouvidos pelo Matinal são otimistas. Bohn lembra que já se avançou muito: “Hoje não é mais aceitável beber e dirigir como era 20 anos atrás”. A engenheira da WRI faz questão de ressaltar que as novas gerações têm outro entendimento, especialmente em relação ao carro. 

Paula que o diga. A porto-alegrense cuja história abre a reportagem tem convicção de que o novo estilo de vida irá mudar a perspectiva da filha, de 4 anos, sobre mobilidade. “Hoje, ela está muito mais acostumada a ver as pessoas fazendo as coisas de bicicleta. Os ciclistas enfrentam dia de chuva, de frio. Isso é normal”, diz. Além do automóvel, também ficou para trás o hábito de entregar o celular na mão da pequena para driblar a impaciência dos momentos de trânsito parado.

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