Reportagem

Sem água e ventilador: estudantes e professores de escolas municipais sofrem em dias de calor

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Sem água e ventilador: estudantes e professores de escolas municipais sofrem em dias de calor EMEF Migrantes, na zona norte. Foto enviada pela equipe da escola.

Docentes de dez escolas da rede municipal relatam rotina insalubre em um dia no qual a temperatura alcançou os 37ºC em Porto Alegre. Problema se repetiu ao longo do verão. Em uma instituição em Ipanema, aparelhos de ar-condicionado novos sequer saíram das caixas por falha na rede elétrica

Enquanto o prefeito Sebastião Melo (MDB) celebrava a abertura do South Summit em um dos dias mais quentes do ano, escolas da rede municipal viviam um dia insalubre: a “capital da inovação” tem salas de aula sem ventiladores e apresenta outros problemas que expõem precárias condições para combater o mal-estar térmico. Os 37.4ºC de temperatura registrados em Porto Alegre se transformaram em um índice de calor de 47ºC às 15h30 na estação meteorológica da Vila Ipiranga – a medição considera também a umidade do ar.

Professores ouvidos pela Matinal descreveram situações “insustentáveis”. Em comum, relatos de salas com poucos ou nenhum ventilador e problemas elétricos que mantêm ainda mais distante a perspectiva de ter aparelhos de ar-condicionado. Além disso, a agitação dos estudantes, situações de mal estar e estratégias improvisadas para lidar com o calor tornam mais difíceis as tarefas de lecionar e aprender.

Na EMEF Professor Gilberto Jorge da Silva, localizada em uma área periférica do bairro Ipanema, zona sul da capital, os ventiladores até estão presentes na maioria das salas, mas poucos funcionam, por deficiências da rede elétrica do prédio. “Na secretaria e na biblioteca não há nenhum que funcione, é quase impossível ficar nesses espaços. No refeitório há apenas dois, e as crianças se aglomeram para sentar nas mesas que ficam em frente aos equipamentos”, relata a professora Laura Galli, que dá aula de história para as turmas dos anos finais do ensino fundamental. Aparelhos de ar-condicionado novos, ainda nas caixas, estão armazenados porque os fios não dão conta.

No início deste ano, chegaram à escola salas de aula novas, modulares, feitas de um material descrito por Laura como “pouco adequado ao calor”. Elas já estão em uso, mas não há previsão para instalação de ventiladores ou ar-condicionado nesses espaços. “As crianças inventam jeitos de se abanar com tampas de caixas plásticas organizadoras, papelão, qualquer material que possa servir de leque, além de molhar a cabeça na torneira dos banheiros”, conta a professora. Os problemas estruturais não se mostram somente na ausência de aparatos para lidar com o calor: em novembro, a Matinal publicou uma reportagem sobre uma obra parada há sete anos na quadra esportiva da escola.

Quadra da EMEF Profª Judith Macedo de Araújo não tem cobertura | Foto enviada pela equipe da escola

Cooler com gelo e ventilador a tiracolo

Perto dali, um pouco mais ao sul, na região da Aberta dos Morros, fica a EMEF Professor Anísio Teixeira. A professora Clarice Antunes enviou à reportagem uma foto de seu rosto coberto de suor, em uma das salas onde leciona. Ela precisou inventar métodos próprios para combater o calor. “Na minha turma tenho usado um cooler com gelo, que eu mesma compro, para guardar as garrafas dos alunos. O ventilador é trazido de casa, pois há salas nas quais eles existem, mas estão estragados, sem verba liberada. Nas salas em que há ventiladores, eles não dão conta”, afirma a docente.

Métodos pedagógicos também acabam sendo adaptados no calorão. “Impossível aprender com todo esse calor na cabeça”, queixa-se a professora. Os alunos ficam dispersos, precisam sair da sala mais vezes para buscar água, de modo que, nestes dias, Clarice foca nas revisões de conteúdo e oferece aulas mais leves. Outro recurso é buscar em espaços privados um alívio para a temperatura, com saídas pedagógicas para lugares com ar-condicionado. Cinemas ou shopping centers, por exemplo. Sobre um aluno que deixou de entregar um tema de casa, comentou: “Ele disse que não conseguia pensar. Dá uma pena. Mas não tem o que fazer”, lamenta.

No outro extremo da cidade, no bairro Sarandi, zona norte de Porto Alegre, fica a Escola Municipal de Educação Básica Doutor Liberato Salzano Vieira da Cunha. Enquanto a reportagem da Matinal conversava, por telefone, com uma professora que preferiu não ter seu nome revelado, um aluno pediu para dar seu relato. “Eu sinto muito calor porque gosto de correr, corro muito. Tem três ventiladores na sala, só que não dá conta”, contou o menino de sete anos.

A professora tem um contrato de 40 horas semanais, todas cumpridas na mesma instituição, mas sabe que o problema é generalizado – e, numa cidade de clima subtropical, não se restringe ao verão. “Esses dias muito quentes, assim como os muito frios, causam desconforto muito grande. Temos dores no corpo, pressão baixa. Nosso rendimento – assim como o dos alunos – cai. Passamos por mudanças climáticas e esse contexto tende não somente a se perpetuar, mas piorar. As condições de trabalho são insalubres. Agora passa o verão, e o desconforto térmico também é forte no inverno. As escolas não têm ar-condicionado, os vidros não têm uma boa vedação”, enumera.

Registro de um aluno na tarde desta quarta | Foto enviada por docente da rede municipal

Mosquitos, falta d’água e crianças passando mal

Relatos semelhantes se repetem em diversas regiões da cidade. Na EMEF Rincão, no Belém Velho, não há quadra coberta para a educação física. “Professor e alunos estão passando mal. Dentro das salas há também estudantes sofrendo, colegas com pressão baixa”, disse uma das professoras. Na Restinga, docentes e crianças passam mal por conta de ventiladores danificados. “Os alunos ficam muito inquietos por causa da temperatura”, relata uma professora. Na EMEF Grande Oriente do Rio Grande do Sul, um ventilador solitário precisa dar conta de uma sala com 30 alunos. A professora Camila Alexandrini diz que as salas são quentes, e o refeitório, “um forno”. “Eu queria ressaltar o calor dos espaços das funcionárias terceirizadas”, destacou.

O trabalho de professores de educação física é um dos mais prejudicados, mas não somente pelo calor. A docente Tatiana Camargo, da EMEF Professora Judith Macedo de Araújo, no bairro São José, diz que grande parte das quadras na rede municipal não é coberta. As condições de trabalho e estudo nas escolas são prejudicadas em caso de chuva, sol ou frio extremos. Chove dentro do pátio da escola, as janelas estão emperradas, ventiladores funcionam com lentidão e há falta d’água com frequência”, conta. Para Tatiana, é urgente rever a estrutura física das instituições, revisando telhados, aberturas, climatização e medição de ruídos.

A falta d’água não é um problema isolado da escola do bairro São José. Na EMEF Deputado Victor Issler, no bairro Mário Quintana, o intermitente acesso a um item de primeira necessidade se repete. “Nossa escola teve vários problemas com a distribuição de água. É uma falta comum no bairro e temos problemas na caixa e no encanamento. A burocracia e a falta de celeridade na resolução dos problemas deixam a escola sem abastecimento, com saneamento precário, o que obriga a gestão a solicitar caminhão pipa – e muitas vezes aguardar uma solução técnica que não vem. Trabalhamos no limite , trazemos nossa própria água gelada e pensamos nos alunos que não têm essa oportunidade. A instituição acolhe toda a comunidade apesar dessa situação. Alunos, funcionários e docentes passando mal, é desumano”, contou a professora Caroline Viana. Na tarde de quarta-feira, um estagiário da escola passou mal devido à pressão baixa.

No bairro Cristal, há um problema sanitário agravado pelo calor de verão: atrás da EMEF José Loureiro da Silva há um valão, próximo ao bloco onde ficam as salas das crianças dos anos iniciais do ensino fundamental. “Com ventiladores estragados, aumenta o número de mosquitos, um perigo com o surto de dengue que estamos vivendo na cidade. Eu comprei um filtro e repelente de tomada pra ver se dá uma diminuída – a gente abre a porta e vem uma nuvem de mosquitos em cima de nós”, contou a professora Kyanny Denardi.

Em uma localidade periférica da zona leste, uma foi construído no sentido norte a sul – a metade das salas, portanto, pega o sol da tarde diretamente. Sem proteção externa, os cômodos cujas janelas estão voltadas para oeste são especialmente “inóspitos”, conforme relatou o professor Luciano Gomes. “São utilizadas cortinas para bloquear o sol, o que aumenta muito o abafamento. Os jovens estão com muita dificuldade para se concentrar. Há um desânimo geral por pura falta de energia. Para os professores, a situação não é diferente, ao que se soma o desgaste emocional de ver as aulas não funcionando. É bastante cansativo estimular crianças a realizarem tarefas quando se sabe que elas não estão fisicamente bem para isso”, lamenta o docente.

A professora Fernanda Cauduro, da EMEF Migrantes, no bairro São João, precisou suspender sua aula na quarta-feira. Quando encaminhava seu relato à reportagem, uma aluna acabou por passar mal: vomitou de calor. A docente precisou chamar os pais para que buscassem a criança. Ela e a turma estavam no pátio, buscando algum refresco.

O que diz a prefeitura

Sobre os problemas elétricos que impedem a instalação de ar-condicionado ou mesmo o acionamento dos ventiladores, a Secretaria Municipal de Educação (Smed) informa que realizou, em outubro de 2023, obras de reparos na rede elétrica em 83 escolas (51 EMEFs e 32 EMEIs) com investimento de R$ 2 milhões. A pasta diz que lançou, já neste ano, um edital de R$ 85 milhões para contratação de serviços de reformas em escolas, que incluem melhorias na rede elétrica.

“Cabe destacar que a rede de escolas públicas do município em grande parte é de prédios antigos que carecem dessas reformas antes da instalação de equipamentos como ares-condicionados. Ainda assim, a pasta faz um levantamento para que as instalações nas unidades aptas ocorram o mais rápido possível”, comunicou o governo à Matinal, através de sua assessoria de imprensa.


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