Ensaio

O 24M de 2024 em Buenos Aires: memória, verdade e justiça em marcha

Change Size Text
O 24M de 2024 em Buenos Aires: memória, verdade e justiça em marcha

No domingo 24 de março de 2024, 10h da manhã, eu já circulava no eixo que liga a Plaza de Mayo até a Plaza Del Congreso. Conforme relatei em artigos anteriores, o 24M é feriado nacional, dedicado às questões de memória, verdade e justiça. Como já ocorrido no 8M, as manifestações envolveram não apenas aquilo que a data designa, mas foram momentos de protesto contra o governo atual. Isto ocorre porque o governo atual é fortemente antifeminista, e fortemente vinculado à valorização da ditadura, dos militares e do autoritarismo. De modo semelhante ao 8M, aqui o feriado é chamado por muita gente de 24M, e marcou os 48 anos do golpe militar.

O 24M teve uma afluência de público muito superior ao 8M, o que confirma ser essa a grande data nacional, como amplamente comentado. Uma única publicação da imprensa deu dados de estimativa do público, falando em 400 mil pessoas. Coloque no Google Maps os pontos Plaza Del Congreso e Plaza De Mayo. A avenida que os une, Avenida de Mayo, ficou completamente lotada de manifestantes em torno de 14h até 16h. Essa gente toda caminhava em direção à Plaza de Mayo, e dali se dispersava pelas ruelas laterais, pela impossibilidade de permanecer na praça. Mais ainda, as duas avenidas diagonais que desaguam na Plaza de Mayo estavam igualmente lotadas de gente que demandava a praça. Com o fechamento total do cruzamento da Avenida 9 de Julio (a avenida mais larga do mundo como gostam de dizer aqui) com a Avenida de Mayo, tivemos um verdadeiro acampamento de pessoas naquele ponto. 

A multidão foi chegando, tomando calçadas, dali a pouco foi ocupando as ruas, o centro das avenidas, e terminou por interromper o cruzamento que referi acima, e que considero um ponto nodal da cidade. Seria como a multidão interromper o trânsito no largo da Rodoviária em Porto Alegre, bloqueando acessos importantes de circulação. Comparado com o 8M e com o El Paro de 24 de janeiro, o policiamento no 24M foi muito reduzido. O que se viu foi uma ocupação da área central da cidade, sem tumulto, sem briga, em um domingo muito bonito, não excessivamente quente. O que ocorreu, em verdade, foram duas grandes manifestações, de duas grandes articulações políticas em torno dos temas da memória, verdade e justiça. Este ano, tendo em vista fazer oposição ao governo de Milei, as movimentações foram quase coincidentes, aproveitando a praça e a estrutura de palco para ambas. Por conta disso, as marchas iniciaram em torno do meio dia, e só tivemos o início da dispersão depois das 18h.

Alguém poderia perguntar como é que as pessoas ficam tanto tempo assim em uma mesma manifestação. Além da marcha propriamente dita, que é realizada pelos grupos mais organizados, temos um grande número de pessoas que simplesmente se deixa ficar ao longo da avenida, das duas praças e das ruas laterais. Ocorre que, um tanto diferente do Brasil, a atração principal não parecem ser os discursos e o palco oficial. O que eu vi foi um grande número de grupos que realizam todo tipo de performance: danças, canto coral, teatro falado, teatro mudo, coreografias que envolvem gritos de luta social, jogral, mímica, batucadas, pequenas orquestras, corridas de mascarados, colagens pelas paredes dos prédios, pessoas que se oferecem para pintar o rosto de outras, grupos que organizam pintura de giz colorido no piso da avenida ou nas calçadas, malabarismos, grupos em perna de pau, pessoas que cantam sozinhas, grupos que soltam fogos de artifício, fumaças coloridas ou balões. Algumas das coreografias envolvem algo como 80 pessoas, e essas eram feitas na avenida 9 de Julio, onde a área para evoluções de tal tipo é possível.

Fotos: Fernando Seffner

Outra coisa muito bonita de ver são as barracas com brincadeiras, em geral para crianças, que envolvem jogos de adivinhação, bola ao cesto, brincadeiras com bastão, mímicas, jogos com cartões coloridos, tudo voltado para o tema dos desaparecidos e da denúncia dos crimes da ditadura. Além disso, há muitas barracas que vendem livros e outras de materiais artesanais, o que torna o ato uma grande feira. É de fato algo muito bonito essa diversidade de atividades, e revela uma característica que já percebi nos outros dias de movimento social, que é a extrema criatividade para produzir acontecimentos no meio da multidão. A coisa vai desde um homem de perna de pau e fantasiado de girafa, que provocava fortemente a criançada, até um grupo de jovens de um partido revolucionário que entoavam cantos de luta.

E há também todo tipo de comida para vender, a começar por grelhas onde se assam pedaços enormes de carnes como rês, porco e frango, e salsichão. Em alguns pontos da praça de Mayo a concentração dessas grelhas de carne assando era tão grande, espalhando uma fumaça e um aroma tão deliciosos, que a coisa parecia uma parrilla a céu aberto. Vale dizer que cafeterias, supermercados, casas de empanadas, hamburguerias, restaurantes, lancherias, pizzarias, todas ficam abertas ao longo da avenida. No meio disso tudo, a quantidade de pessoas que estava na Plaza de Mayo e que assistiu aos discursos é provável que tenha sido pequena, pois a maioria fica circulando. E com tal quantidade de gente, não havia como todo mundo ficar na praça. Enxergar o palco e as pessoas que nele estavam foi outro desafio, tal era a imensa quantidade de bandeiras e faixas na praça, algumas simplesmente gigantescas, sem contar balões e mastros com fitas. Apenas quem efetivamente estava a poucos metros na frente do palco poderia ver o que nele se passava.

Embora não seja uma data em princípio ligada às mulheres, elas têm uma presença muito grande no evento. Tanto nas Mães e Avós da Praça de Mayo, que constituem o coração destes movimentos de memória, justiça e verdade, quanto naquilo que se percebe caminhando no meio da multidão. As mulheres, de todas as idades e procedências, organizam batucadas, cantam gritos de luta, realizam performances massivas, executam números de dança, encenam pequenos esquetes teatrais no meio da multidão, desfilam organizadas em um sem número de agrupamentos políticos com bandeiras e cartazes. Além disso, elas estão diretamente envolvidas em barracas e áreas da manifestação dedicadas às crianças. 

Foto: Fernando Seffner

A diversidade de agrupamentos políticos é enorme, e comprova os dados que indicam ser a Argentina um dos países mais associativos do mundo. São organizações por geração, por bairros da cidade, por locais da Província de Buenos Aires e de outras províncias, por gênero, por orientação sexual, por categoria profissional, de patrões e inclusive além de empregados, de aposentados de tal ou qual ramo, de tal ou qual tendência política, de paróquias ou pertencimentos religiosos. Temos também os grupos do movimento social indígena, sempre muitos fortes, particularmente as mulheres indígenas. Nunca vi tantos agrupamentos partidários diferentes, em todo espectro político de esquerda que se possa imaginar, com todos os nomes possíveis que podem existir. Os coletivos da área da cultura e das artes são muito fortes aqui, e respondem também por outro leque de associações.

A quantidade de faixas, cartazes e bandeiras é de enlouquecer, não se consegue ler tudo que passa. Um dado interessante é que há um equilíbrio entre cartazes e faixas produzidos por organizações, e uma grande diversidade de cartazes e faixas produzidos pelas pessoas, em pedaços de papelão, em faixas de tecido, nas próprias roupas, com o corpo pintado, ou simplesmente segurando uma folha de papel grande com uma mensagem. São os organizados e os soltos, como se diz aqui (sueltos). Novamente, como nos movimentos anteriores, senti falta de agrupamentos de afrodescendentes. Por outro lado, os agrupamentos das populações indígenas são numerosos.

No palco, para quem conseguiu ver – eu só consegui escutar, não enxergava o palco por conta da já referida massa de faixas de bandeiras – falaram Adolfo Pérez Esquivel – 92 anos de idade e prêmio Nobel da Paz de 1980, Taty Almeida – 93 anos de idade, uma das Madres de Plaza de Mayo, Estela de Carlotto – 93 anos de idade e presidenta de Avós de Plaza de Mayo. Mais gente tomou a palavra, inclusive o governador da província de Buenos Aires, e lideranças de outros movimentos. Foi lido o documento acordado entre um conjunto de organizações, intitulado “30.000 razones para defender la patria. Nunca más miseria planificada”. O documento pode ser acessado aqui.  

Para mim, dois momentos muito emocionantes foram a passagem do caminhão com as mães e avós da Plaza de Mayo, que provocou um verdadeiro frenesi na multidão. E a passagem de um táxi, logo no início da manhã, conduzindo uma das mães para a praça, e que simplesmente não conseguia avançar, tal a multidão que se juntou. Eu mesmo fui fotografar e acompanhar. Como já comentei quando descrevi as caminhadas semanais na Plaza de Mayo, as mães e avós são aqui idolatradas. E é algo muito tocante ver senhoras de tal idade, todas em cadeira de rodas, ou de bengala, ou com andador, ainda ativas na militância em função dos desaparecidos.

Na dispersão, ingressei em uma estação do metrô superlotada, e pulei a roleta como boa parte das pessoas estava fazendo. Foi a quarta vez que pulei roleta aqui em dias de manifestação. A composição de metrô que consegui entrar era daquelas em que praticamente não há porta entre cada vagão, então se enxerga toda a extensão. As pessoas vieram cantando e entoando gritos de luta de uma maneira furiosa. Ao mesmo tempo, agitavam bandeiras da Argentina, e cantaram a parte inicial do hino nacional. Neste país, a direita não sequestrou os símbolos nacionais, eles constituem um patrimônio dos movimentos sociais progressistas. No metrô me dei conta que a maioria das pessoas, homens e mulheres, estava com camisetas ou lenços com as cores da bandeira argentina. Parecia praticamente o retorno de uma partida de futebol. O metrô fez parada em três estações, abriu as portas, e as pessoas que estavam na plataforma não conseguiram entrar, pela superlotação. E me dei conta que nas plataformas também as pessoas cantavam e agitavam bandeiras.

A preocupação com o não esquecimento das violências produzidas na ditadura militar é aqui um elemento central de disputas políticas. No caminho de retorno para casa de um curso que estou fazendo, duas semanas antes deste feriado, fui surpreendido por uma placa ao lado da porta de entrada do Hotel Normandie. Uma homenagem ao pianista brasileiro Tenorinho, que ali esteve hospedado, acompanhando Vinícius de Moraes e Toquinho em uma turnê. No dia 18 de março de 1976, seis dias antes do golpe militar, Tenorinho saiu do hotel para comprar remédio e comer um sanduíche. Foi sequestrado por militares argentinos na esquina da Avenida Corrientes, torturado e assassinado. Seu corpo nunca foi encontrado. Ele tinha 34 anos de idade. Fiquei emocionado com esse cuidado com a memória dele, uma forma de dizer TENORINHO PRESENTE como aqui se fala.

Foto: Fernando Seffner

Para quem deseja saber mais acerca da ditadura argentina e dos movimentos sociais em torno da memória, indico a plataforma de filmes https://bafilma.gba.gob.ar/. Ali estão listados e em acesso aberto os filmes 1976; Caminos de Justicia; Un claro dia de justicia; Entre nosotros; Centros clandestinos. Para pensar a importância de contar às novas gerações os horrores vividos em uma ditadura, me ocorre finalizar este artigo citando Pablo Ramos, autor argentino, em seu livro “La ley de la ferocidad”. No romance, o personagem Gabriel, ao regressar ao local onde nasceu, por conta da morte do pai, se dá conta de tudo que precisa lembrar para entender-se, e afirma: “Deberían haberme avisado. Ya sé que me avisaron. Pero deberían haberme avisado más”.


Fernando Seffner é professor da Faculdade de Educação da UFRGS.

RELACIONADAS
ASSINE O PLANO ANUAL E GANHE UM EXEMPLAR DA PARÊNTESE TRI 1
ASSINE O PLANO ANUAL E GANHE UM EXEMPLAR DA PARÊNTESE TRI 1

Esqueceu sua senha?

ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.
ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.