Ensaios Fotográficos

Luz e sombra

Change Size Text
Luz e sombra

Não adianta nem tentar me esquecer

Durante muito tempo em sua vida, eu vou viver

Detalhes tão pequenos de nós dois 

São coisas muito grandes pra esquecer 

E toda hora vão estar presentes, você vai ver (…)

Detalhes (Roberto Carlos/ Erasmo Carlos)

Domingo de Páscoa na clínica. A sala de convivência dos familiares estava lotada. Sobre a mesa de centro, um bolo de chocolate, doces em bandejas decoradas com coelhinhos de pano e várias jarras de suco de laranja. Maria, 92 anos, sentada na ponta do sofá com sua bengala no colo, me pediu um beijo logo que cheguei, e disse que queria me namorar – desejo que sempre manifestava. Ioiô, quase 100, abraçada a uma boneca, contava sem parar suas estórias engraçadas. Olga achava que todo mundo era o João e pedia “café com leite, pão com manteiga”. Tia Lurdinha, sentada no canto da sala em sua poltrona, segurava uma almofada com estampa de corujas e puxava com as duas mãos fios de linha imaginários. 

A clínica tinha quatro pavimentos. No último andar, a UTI. No térreo, o pequeno pátio. Aura, uma das cuidadoras, levou Lurdinha até o banheiro para trocar a fralda. Ela voltou choramingando, sentada na cadeira de rodas. Descemos pelo elevador até o pátio, coloquei-a de pé e começamos a caminhar, bem devagar. Não havia árvores ali, apenas dois bancos de madeira. A iniciativa durou pouco, ela voltou a chorar, e nos sentamos num dos bancos. Cantei Detalhes, sua música preferida. Depois, coloquei em seus ouvidos os fones do celular, com uma gravação antiga da sua própria voz. Levantou os olhos e, por alguns segundos, pensei que havia se reconhecido. Mas não, apenas olhou alguns passarinhos, em revoada.

Na semana seguinte, não encontrei a Maria na sala de convivência. Aura me contou, com a cabeça baixa, que ela havia partido. Ficamos em silêncio. Sempre quando isso acontecia, restava a saudade imensa do idoso e também de seus familiares, que deixavam de frequentar o lugar. 

Dois meses após completar 89 anos, tia Lurdinha despediu-se e também partiu. Era um dia nublado de maio. Achei que nunca mais voltaria à clínica. Mas, algumas semanas depois, voltei. Fui direto ao pátio, sem falar com ninguém. Sentei no mesmo banco onde tantas vezes acariciei seu rosto. Havia uma folha de plátano pousada ali, não sabia de onde viera. Peguei-a com delicadeza. Passei a ponta do dedo, sentindo a textura rugosa. Foi como se aquela folha, improvável, agora cantasse Detalhes pra mim. 













Flávio Wild é designer gráfico, fotógrafo e artista visual

ASSINE O PLANO ANUAL E GANHE UM EXEMPLAR DA PARÊNTESE TRI 1
ASSINE O PLANO ANUAL E GANHE UM EXEMPLAR DA PARÊNTESE TRI 1

Esqueceu sua senha?

ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.
ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.