Ficção

Feira do Livro 2030

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Feira do Livro 2030 Imagem gerada por IA/Bing Image Creator.

Estaciono meu carro em uma vaga coberta. Pagarei 50 reais a primeira hora e mais 10 reais as posteriores. Assim, quem não está comprando e movimentando a economia permanece menos tempo no shopping, não fica por aí, zanzando sem rumo. Pagamos apenas pelo uso do espaço, e meu carro não estará protegido por nenhum tipo de seguro ou responsabilidade civil, isso depois que a Emenda à Constituição número 497 afastou a possibilidade das garagens e estacionamentos responderem por qualquer ilícito (furto, roubo ou estupro). Fico imaginando o que seria dos empreendedores sem essa importante alteração legislativa que combate o ativismo judicial.

Sempre odiei estabelecimentos de compras e lazer, mas desta vez vim com dois objetivos bem definidos: visitar a 75ª Feira do Livro de Porto Alegre, que ainda resiste, muito embora grande parcela da população acredite que os livros não têm qualquer serventia, e comprar uma calça de brim. A Feira não ocorre na Praça da Alfândega há mais de cinco anos, quando o local foi alvo de uma parceria público-privada e o novo gestor, que explorará o espaço por 40 anos, resolveu locá-la para empresas, sociedades de propósito específico, eventos e feiras. À época, concordei. A economia tem que girar. Empreendedorismo é tudo. O Estado deve ser mínimo, só educação, saúde e segurança. Livros? Que cada um compre os seus em sites. Praças antes subutilizadas, e inclusive o estádio Beira-Rio, já foram transformadas em negócios mais rentáveis: prédios de apartamentos, hotéis, estacionamentos e centros de eventos. A economia tem que girar. O bolo precisa crescer para depois ser repartido, não é mesmo? Não gostei de a Feira do Livro funcionar somente em shoppings da cidade. Após as últimas pandemias, esses lugares se tornaram muito perigosos. Apenas do ponto de vista sanitário, lógico, porque estão cada vez mais seguros e distantes da criminalidade.

Abrimos mão da nossa privacidade para o bem de todos. As câmeras cobrem integralmente: fora e dentro das lojas, nos cinemas e até nos banheiros. Logo na entrada, somos escaneados e passamos, ao mesmo tempo, por raio-x, medição de temperatura e reconhecimento facial. Assim, se a sua temperatura estiver acima de 37,5 graus, você é convidado a se retirar, mas ao menos ganha a isenção da cobrança do estacionamento.

O reconhecimento facial, conectado aos bancos de dados, identifica de forma completa a pessoa: Carteira de Identidade Nacional, raça, filiação, endereço, prontuário médico completo, gênero, orientação sexual, lojas e produtos preferidos, posição política e ideológica, sites mais visitados, árvore genealógica, amigos, histórico profissional etecétera. Essa maravilha da tecnologia também evita a entrada de facínoras no local, emitindo um alerta não sonoro, o qual permite a prisão de eventual bandido. Cedemos a privacidade, mas é para o nosso próprio bem e dos outros, não é mesmo?

O raio-x previne a entrada de armamentos, e apenas cidadãos de bem que possuem porte podem adentrar com suas armas carregadas, apesar de os fuzis ainda não serem permitidos. O sistema não tem possibilidade de erro, porque, se houver alguma inconsistência no reconhecimento facial, serão analisadas as impressões digitais da pessoa. Além disso, aqueles que portarem celulares também serão identificados automaticamente pelo número de IMEI com o uso do sistema de geolocalização da empresa de telefonia. Por esse motivo, os shoppings são 99,9% seguros; ocorrem algumas chacinas, mas apenas uma ou duas por ano. Apesar disso, o número de frequentadores que saem felizes é infinitamente maior que o número de vítimas. Morre mais gente nas ruas. A economia tem que girar, não é mesmo?

Vim comprar livros. No entanto, eles não estão expostos no shopping. Em cada um dos quatro estandes, há cinco totens com telas de LCD, disponíveis para visualizar os livros. Quando chego na frente da tela, de acordo com os dados pessoais analisados pelo sistema de reconhecimento facial, são sugeridas apenas algumas obras de História, todas em papel. Os algoritmos devem ter visto que nunca compro ebooks. Assim é melhor, não perdemos tempo. Apesar de tudo, a economia tem que girar, não é mesmo?

Receberei os livros em casa em algumas horas.

Agora já posso comprar a calça de brim nova, porque tenho um encontro na minha casa hoje. Vou cozinhar para uma moça que conheci no Tinder.

Dirijo-me à área de roupas do shopping. Cada quadrante vende um tipo de produto. Tudo muito organizado. Entro na loja e o vendedor me recebe chamando pelo nome, ao mesmo tempo em que apresenta quatro modelos de calça de brim tamanho 44. Antes de sair de casa, tinha enviado uma mensagem para a página do shopping informando o que faria lá. As lojas já tinham recebido alertas com as minhas informações e os desejos de compra. Tempo é dinheiro, não é mesmo?

Fico feliz com a calça, era o tipo que os algoritmos diziam que eu gostava, mas acabo saindo com mais 17 itens ofertados via mensagens em meu celular, com descontos crescentes e em cascata, vindos das lojas mais próximas, todas também de roupas e acessórios, previamente projetadas para otimizar as vendas. Lojas e algoritmos conversam entre si mais do que pessoas.

Chega! Vou embora. Estava me dirigindo ao estacionamento quando entra mais uma mensagem no meu celular. Os algoritmos viram a comida preferida da minha parceira de logo mais à noite. Recebo uma receita de comida tailandesa, assim como uma lista com os ingredientes necessários e a localização exata deles nas gôndolas do hipermercado. Vou ao mercado, assim aproveito e resolvo todos os problemas. A tecnologia está aí para nos ajudar: dando um pouco, recebemos muito.

Tempo é dinheiro, e a economia tem que girar, não é mesmo?


Rodrigo Valdez, 52, é procurador da República e Escritor, autor do livro de contos Berkut (2022), e do romance Operação Benefit, ambos pela Editora Besourox.

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