Ficção

O acerto de contas

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O acerto de contas Foto: Anna Louise/Pexels

Alguém morreu em um dia de céu azul de verão. Os ipês derrubaram todas as suas flores e, esturricados, não dão pistas se amarelos ou roxos. As calçadas estão vazias, em uma sombra três gatos descobrem um restinho de umidade e se deitam limpando seus pelos com capricho.

Alguém morreu e por isso Chris caminha apressada, repetindo para si mesma apenas uma formalidade, apenas uma formalidade. Só ia a cemitérios quando não tinha outra saída, herdou de sua avó a certeza de que nas cerimônias fúnebres a morte aproveitava para fazer sua próxima encomenda. 

Uma formalidade, seguia dizendo, nada mais do que um abraço em uma colega de trabalho que perdeu a irmã mais velha. Não precisaria se preocupar em ter uma expressão pesarosa, seguramente não estava com uma cara boa. 

A sua última vez tinha sido há muito tempo, na despedida da avó, nesse caso, a tristeza profunda não deu espaço para o medo. Será que logo após o enterro alguém da família morreu?, ela se perguntou. Não, ninguém morreu, pensou com alívio, a superstição da avó estava errada. Mas como poderia ter essa certeza? Fazia muitos anos e a família era grande, isso sem contar com os amigos e conhecidos. Não tinha como saber se alguém havia morrido logo depois. Talvez a avó estivesse certa.

Chegou ao cemitério e viu uma grande quantidade de pessoas em frente à capela, um velório concorrido. Ela teve esperanças de que o seu rosto patético não fosse notado. Ficaria escondida no meio de todos e, o melhor, ninguém a notaria quando decidisse ir embora.

Não demorou nada para perceber que estava errada, o tempo no velório não seria tão rápido quanto gostaria. Chegou bem na hora em que o Pastor estava encomendando o corpo, não tinha como ir embora, precisava abraçar a colega, marcar sua presença, teria que ficar até o final. 

Procurou se deter em observar as pessoas que apinhavam o lugar, queria evitar a visão do caixão, mas era difícil. Irritada por não conseguir desviar os olhos, teve certeza de que as capelas são espaços reduzidos para que o morto domine a cena, felizmente do ângulo em que estava via apenas a ponta do pé e do nariz da defunta. Ao lado do caixão, o Pastor. Ele falava balançando o próprio corpo para frente e para trás. Estranho cacoete. Procurou se concentrar em suas palavras.

Uma passagem do livro dos Salmos nos lembra: Tu, Senhor, repreendes e disciplinas o homem por causa do seu pecado; como traça destróis o que ele mais valoriza; de fato, o homem não passa de um sopro. Nesta extremíssima hora vamos refletir: precisamos pensar nos nossos pecados para chegarmos leves nos braços do senhor. Quantos de nós podemos dizer que fazemos essa meditação? E nenhum de nós sabe quando será chamado a prestar contas. A senhora Maria Lúcia fez o seu trabalho de se ajoelhar perante o senhor e expor os seus pecados?

Do que ele está falando? Chris se perguntou. Ele está chamando uma mulher recém morta, na frente de sua família, de pecadora. E ainda por cima de uma que talvez nem fosse arrependida. Chris era supersticiosa, mas não religiosa. Procurou indignação no rosto dos familiares, no entanto só encontrou dor. À exceção da irmã da falecida que puxou um pouco o Pastor para si e, com alguma discrição, corrigiu o nome dito errado por ele: Maria Leonor.

No entanto, ele não se abalou nem um pouco e prosseguiu:

– Oremos pela alma de Maria, e também pelas nossas. Ainda estamos vivos, temos tempo de ajoelharmo-nos perante o Senhor e, com lágrimas nos olhos, entregarmos nossos corações aquele que cuida de nossas almas. Mas não ela, o tempo dela acabou. Oremos por Maria Lúcia que não está mais entre nós.

Novo cutucão da irmã de Maria Leonor que desestabilizou o balançar do Pastor, este prontamente levou a mão à beirada do caixão para se segurar. Então, Chris teve outra percepção, não era cacoete, ele estava cambaleante. Bêbado? Se estava, sua voz clara e segura não deixava transparecer.

– Em Romanos 14:8 podemos ler: Se vivemos, vivemos para o Senhor; e se morrermos, morremos para o Senhor. Assim, quer vivamos ou morramos, pertencemos ao Senhor. E dona Maria agora está lá, prestando contas, porque o Senhor quer aquilo que lhe pertence, a sua alma.

Chris escuta uma conversa em voz baixa ao seu lado: 

– Mas ela não era da Umbanda? 

– Só ela, a família toda é cristã.

Agora com raiva do Pastor e da punição a que ele se dava o direito de fazer à morta, Chris começou a desejar que sua avó estivesse certa, e que ele fosse o escolhido pela morte.

Uma nova oscilação do homem de Deus o fez apoiar-se fortemente no caixão, desta vez, a ponto de provocar um rangido na estrutura que o segurava.

– Que Deus console a família e que Maria Lúcia se arrependa de seus pecados.

Então, o rosto do Pastor ficou lívido. O de Chris também, e ela mal escutou o alvoroço ao redor, tal a sua perplexidade. Ninguém poderia ter previsto, nem mesmo sua avó com suas crendices. Uma mão saiu de dentro do caixão e segurou firme o pulso do Pastor. A morta, com voz transbordante de raiva, disse; 

– Maria Leonor, seu filho da puta!

De algum canto da capela alguém cantava:

Portão de ferro, cadeado de madeira!
Ô no portão do cemitério, quem manda é Exu Caveira!

O Pastor já liberto da mão fria não cambaleava mais, na verdade ele agora girava, girava, girava.


Taiasmin Ohnmacht é escritora e psicanalista. Publicou os livros Ela Conta Ele Canta (Cidadela, 2016), Visite o Decorado (Figura de Linguagem, 2019). Em 2021, publicou o romance Vozes de Retratos Íntimos (Taverna), romance que foi vencedor dos prêmios AGES e Açorianos na categoria Narrativa Longa, e finalista nos prêmios Jabuti, São Paulo de Literatura e Academia Rio-grandense de Letras. Em 2023, lançou o romance Uma Chance de Continuarmos Assim (Diadorim). 

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