Porto Alegre: uma biografia musical

Capítulo LXXXV – Anos 60: Realcino Lima Filho

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Capítulo LXXXV – Anos 60: Realcino Lima Filho

Realcino Lima Filho. Esse é o nome do Nenê baterista, um dos maiores nomes do seu instrumento em seu País, em qualquer tempo. E que nasceu no bairro do Partenon (que será palco de uma importante cena roqueira nos anos 1960), em Porto Alegre, dia 5 de fevereiro de 1947.

Foi com 12 anos que o pequeno Realcino passou a dedicar-se a um instrumento. Que ganhou de seu pai: 

O acordeom.

Estávamos em 1959, no sul do Brasil, e nesse contexto não existia nada mais bacana na música do que integrar um conjunto melódico como o do Baldauf, o do Breno Sauer, do Primo, do Manfredo Fest…

Na verdade existia, sim, uma coisa mais cool do que estar num desses grupos. Era estar neles tocando um dos instrumentos da moda: vibrafone (raro e caro) ou… acordeom.

Daí a quantidade de jovens que, nesses anos, começou a tocar acordeom – e sem nenhuma relação com o que se convencionou chamar de “música gaúcha” ou “música gauchesca”.

Só que no caso de Nenê não foi assim. Ele lembra a história numa entrevista para o selo Borandá, em 2009. Está falando de seu pai:

Ele me comprou um acordeom, porque achava que acordeom é que era instrumento de gaúcho, né? Aquela coisa… super bairrista. Eu não gostava de acordeom, mas daí começando a mexer (…) eu comecei a achar o instrumento interessante.

Interessante justamente porque ele, contrariando as expectativas do pai, começou a prestar atenção nos usos não-regionalistas do instrumento, vendo os conjuntos melódicos que tocavam nos clubes do bairro. Logo tinha aprendido o suficiente para, com amigos adolescentes como ele, montar o conjunto Serenaders.

Só que aí veio o rock e a bossa nova, e o acordeom foi substituído nos sonhos das moças e moços pelo violão (da bossa), as baterias e guitarras elétricas (do rock).

Então, aos 14 anos, Nenê começou a tocar o instrumento que o consagraria e com o qual, a partir dos 16, começou a frequentar as jam sessions onde os músicos de jazz e bossa nova da cidade se encontravam. Elas aconteciam geralmente no Clube de Cultura, nas noites de sexta. Ou, mais informais e mais conversadas, no estúdio/escola Zé Gomes, todo final de tarde. Foi entrando na turma do pianista Mamão, o primeiro cara a falar de (e talvez tocar, mas não se tem certeza) free jazz em Porto Alegre:

O Sérgio Gonçalves, que agora é fagotista da Orquestra (Sinfônica) Municipal aqui de São Paulo. Ele me ajudou muito nesse aspecto. Porque ele tocava com um baterista muito bom lá de Porto Alegre, na época era um cara hiper-moderno, chama-se Saraiva. Aprendi muito com esse cara. (…) Vendo o cara tocar, ao vivo. Todos os ídolos que eu tive nesse período, dos 12 aos 18 anos, foram de ver ao vivo, nunca de disco. Só depois, quando eu comecei a ouvir jazz, foi que eu comecei a admirar os músicos de jazz e tal. Mas na época, todos que eu conhecia eram caras de Porto Alegre mesmo. Eu andava atrás dos caras que nem um louco. Super fã daqueles caras. Carregava os pratos… só pra estar ali perto.

Ele agora era baterista, e fazia sentido: afinal sempre tivera facilidade com instrumentos de percussão. 

Mas seguia no acordeom. E foi como acordeonista que conseguiu seu primeiro emprego, como músico do GR-Show, o programa apresentado pelo nosso velho amigo GR, o Glênio Reis, na TV Gaúcha. Mais tarde, com a explosão da Jovem Guarda e do iê-iê-iê, esse mesmo grupo iria ficando cada vez mais roqueiro, mas ainda não era o caso. 

Só que um belo dia o baterista não apareceu para trabalhar. E Glênio, o mesmo Glênio que foi fundamental nas carreiras de Elis Regina e da banda Liverpool, teve o insight. Já tinha visto o garoto acordeonista brincando nos tambores entre um ensaio e outro. E decidiu:

Hoje tu toca a bateria. E não tem como dizer não

Naquele instante o acordeom deu lugar para sempre à bateria (ainda que nunca tenha sido abandonado: Nenê gravou com ele no disco do grupo suíço Urban Safari, e chegou a integrar a Orquestra Popular de Câmara de Benjamin Taubkin e acompanhar Mônica Salmaso como acordeonista – além disso, foi a partir do acordeom que ele chegou, aos 20 anos, ao piano, instrumento com o qual terá muita intimidade e que utilizará para seu vasto trabalho como compositor).

Logo em seguida a essa mudança de posição no GR-Show foi que aconteceu o – já tantas vezes citado aqui – apocalipse: a chegada do vídeo-tape e o consequente desemprego em massa dos músicos e atores que trabalhavam nas rádios e TVs de Porto Alegre. Aconselhado por Glênio – sempre ele -, Nenê seria um dos muitos que iria tentar a vida em São Paulo, como o fizeram naquele momento Elis, Mutinho, Manfredo Fest, etc., etc. Em 1965, com 18 anos e se mandou. 

Nessa época os músicos tinham duas coisas que faziam na vida: era tocar no baile – que era o top do músico – e no rádio. Rádio era o cara famoso, o cara que tocava muito, estrela da música e tal. Depois a televisão. E na zona – de prostituição. O lugar onde tinha mais trabalho era ali. Em Porto Alegre, na rua Voluntários da Pátria, tinha umas 30 boates mais ou menos.

Todas com música ao vivo.

Mas antes de São Paulo, houve passagens pelo Uruguai e Argentina: 

Nós chegamos em Montevideo, e a gente não tinha experiência. Fomos eu e o meu amigo Cidinho. A gente achava que Montevideo era que nem os Estados Unidos… Lá tem um montão de trabalho… E foi uma coisa horrorosa. Eu tinha 16 pra 17 anos.

Passaram fome, foram expulsos do hotel, e ele acabou atravessando o rio da Prata e arrumando um emprego de baterista num restaurante do bairro da Boca, em Buenos Aires (de onde foi contratado – como violonista – para uma temporada em Mendoza, na fronteira com o Chile).

Foi se virando.

No ano seguinte, sua primeira gravação em disco será justamente em Buenos Aires, com o grupo Bossambistas.

Dali voltou para Porto Alegre. E, para escapar do serviço militar, se mandou pra São Paulo.

A partir da segunda metade dos anos 1960 tocou com Deus e todo mundo da cena paulista. No meio da febre dos trios ele foi baterista dos grupos de, entre outros, Pedrinho Mattar, Dick Farney e Tenório Jr. Integrou o Quarteto Novo no lugar de Airto Moreira e, já na década de 1970, seria uma das estrelas da banda de outro integrante do Quarteto Novo: Hermeto Paschoal. 

O encontro com Hermeto foi fundamental na sua vida, e quem os apresentou foi o pianista Aluizio Pontes:

 Um dia ele me levou na boate (Stardust, onde Hermeto tocava). Quando eu vi ele, eu falei: – Pô, esse é o cara com quem eu vou tocar. Eu tenho que tocar é com esse pianista. Mas eu falei: – Bom, pra eu tocar com ele, eu tenho que tocar que nem esse baterista. Ou mais que ele, ou igual a ele.

Era Airto Moreira.

Nenê colou em Airto, estudando seu estilo.

Quando ele foi-se embora para os Estados Unidos, o posto no trio de Hermeto e no Quarteto Novo era dele.

É Nenê o baterista de discos essenciais do bruxo, como A Música Livre de Hermeto Pascoal (1973, onde ele também é o pianista de muitas faixas), Hermeto Pascoal ao Vivo – Montreux Jazz e Zabumbê-Bum-Á (ambos de 1979). Neste último, inclusive, há uma música sua, Alexandre, Marcelo e Pablo, coisa raríssima em discos de Hermeto, onde tudo é sempre composto pelo próprio. 

Voltariam a tocar juntos em 1993 e 1994, em duas turnês que passaram por várias capitais brasileiras e dezenas de cidades europeias.

Nenê chega a acompanhar algumas das maiores intérpretes brasileiras – Gal Costa, Maria Bethânia, Ângela Maria, Elis – e alguns dos maiores compositores da MPB – Caetano Veloso, Gilberto Gil, Milton Nascimento –, mas seu foco nunca deixou de ser a música instrumental.

Com Elis, seu grande momento foi integrar o time que montou um dos maiores (em número de apresentações e público) shows brasileiros de todos os tempos: Falso Brilhante. Ele tinha acabado de entrar pra banda que se completava com o pianista e diretor musical Cesar Camargo Mariano, o guitarrista Natan Marques e o baixista Luizão. Fizeram uma temporada no México e já se enfurnaram em longos meses de ensaio e uma temporada que era pra ser de um mês que virou 16 – ele tocando bateria, piano, acordeom e violão. Mas no meio disso teve de sair para acompanhar Milton Nascimento na turnê do álbum Minas, que já estava combinada antes de tudo. Não sem antes gravar o LP Falso Brilhante, um dos mais importantes da carreira de Elis. Nenê e Milton se conheciam desde que ambos, vindos cada um de seu estado, foram morar em São Paulo.

Acabaram se reencontrando, Elis, Milton e Nenê, numa das sete faixas em que ele participa no álbum Clube da Esquina 2. Justamente a incrível dobradinha O Que Foi Feito de Vera / O Que Foi Feito Deverá, com Elis e Milton se alternando nos vocais. 

Mas, como vimos, seu foco era a música instrumental. E, pra quem fazia música instrumental no Brasil dos anos 1970, depois de tocar com Hermeto Pascoal o que resta como ambição? Ah, depois disso, só… Egberto Gismonti. 

Sim. 

A partir de 1980, Nenê, o contrabaixista Zeca Assumpção e o flautista e saxofonista Mauro Senise formam o quarteto fantástico Academia de Danças, que se completa com o líder Egberto. Pelos três anos seguintes, gravarão dois discos até hoje aclamados, Em Família (1981) e Sanfona (1980), e excursionam pelo mundo. 

Nenê ainda gravaria com Egberto o álbum Trem Caipira (1985) e se juntaria a ele numa turnê europeia, em 1989, integrando um quarteto que se completava com nada menos que Charlie Haden no contrabaixo e Michel Portal nos saxes e bandoneon.

No meio disso, ele tinha se mudado para Paris, no final de 1982, logo depois de gravar as baterias do álbum Toca Brasil – Arraial das Candongas, de Wagner Tiso.

É na França que ele começa, em 1983, sua carreira como band-leader e compositor, lançando uma trilogia de discos absolutamente ligada às suas mais profundas origens gaúchas: Bugre (que ele havia gravado no Brasil, mas não conseguiu lançar por nenhuma gravadora nacional, foi por uma francesa e emplacou como um dos 10 LPs do ano de 1983 segundo a revista Jazz Hot), Ponto dos Músicos (1984) e Minuano (1985). Todos lançados primeiro na Europa e, depois, no Brasil.

Em 1986, mesmo morando na França, é convidado para integrar o quinteto instrumental Pau Brasil, com a qual lança os discos Cenas Brasileiras (1987), Lá Vem a Tribo (1989) e Metrópolis Tropical (1991). Em todos há vários temas seus, como Tutti Legal – composto em homenagem a outro grande do instrumento, Tutti Moreno – ou o samba lento Canção para Lupicínio Rodrigues.

Até 1995 ficará vivendo entre São Paulo e Paris, apresentando-se por toda a Europa com seu quarteto e com o Pau Brasil e publicando, lá, o método para bateria e percussão Brazilian Rythms by Nenê – que anos mais tarde seria lançado no Brasil com o nome de Ritmos do Brasil. Em 1987 é compositor residente da Orquestra Nacional de Jazz da Dinamarca.

Só se fixa definitivamente em São Paulo quando passa a ser professor de Ritmos do Brasil e Prática de Conjunto na Universidade Livre de Música Tom Jobim, onde passa a ser colega de dois grandes músicos que foram estrelas dos melódicos que tanto o inspiraram na adolescência: o guitarrista Olmir Stocker e o contrabaixista Gabriel Bahlis. 

Começa a lançar disco após disco no Brasil, todos com composições suas: Trio a Pampa (1997), Porto dos Casais (1998), Concerto no Rio (1999), Ogã (2004). 

Alterna a bateria com o piano, num duo de piano e voz com sua então esposa Zezé Freitas.

E aí, em 2001 montou o Nenê Trio, com os pianistas Guilherme Ribeiro, Moisés Alves ou Írio Jr. e os contrabaixistas Rogério Botter Maio e Alberto Lucas. É com quem tem se apresentado em festivais de jazz pelo mundo afora e lançado mais um montão de discos: Caminho Novo (2003), Sudeste (2007), Suíte Curral D’El Rey (2007, indicado a Best Latin Jazz Album no Grammy), Outono (2010), Inverno (2013), Primavera (2019), Verão (2020) e Mudança de Rumo (2022).

Com cerca de 15 discos lançados como artista principal, Nenê só perde para o pianista Manfredo Fest em quantidade de discos de artistas gaúchos de música instrumental que começaram suas carreiras antes dos anos 1980. E mesmo entre os surgidos depois, só Geraldo Flach, Renato Borghetti e Yamandú Costa tem discografias tão vastas e sólidas. 

Eu gosto de compor. Eu componho bastante. A composição pra mim é que nem a bateria: se você não estudar a bateria regularmente, você fica todo duro. E é uma maneira de você evoluir também. Composição é a mesma coisa.

Além de ter se tornado uma referência fundamental da criação de levadas de bateria para uma infinidade de ritmos brasileiros e ter formado uma legião de alunos e discípulos como poucos bateristas brasileiros tem ou já tiveram. Um mestre, na mais profunda acepção da palavra.


Arthur de Faria nasceu no ano que não terminou, é compositor de profissão (20 álbuns e EPs) e doutor em Lupicínio pelas Letras da Ufrgs. Publicou Elis, uma biografia musical (arquipélago, 2015) e tá no prelo Porto Alegre, uma biografia musical, Volume 1, reunindo as primeiras colunas publicadas aqui.

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