Porto Alegre: uma biografia musical

Capítulo CIII – Almôndegas (parte 6) – Circo de Marionetes

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Capítulo CIII – Almôndegas (parte 6) – Circo de Marionetes (Foto: Reprodução)

Circo de Marionetes. Apesar de não ser essa a sensação deles hoje (apontam Alhos com Bugalhos nesse quesito), o último disco é também o menos regional dos LPs dos Almôndegas. Coincidentemente ou não, também é o disco mais Zé Flávio de todos: autor ou co-autor de metade das canções, Zé brilha no violão de 12 cordas. E, como ele próprio admite, ainda forçou a barra para introduzir a guitarra elétrica no som do Almôndegas.

Gravado em São Paulo nos estúdios da Gazeta e produzido por Marcos Maynard, é o trabalho onde a banda soa mais “redonda”. Para o bem e para o mal. Sem as arestas, um pouco do seu encanto havia se perdido rumo ao mainstream da MPB do final dos anos 1970. Que, diga-se de passagem, não vivia um bom momento, atropelada pela explosão da discotéque naquele mesmo ano de 1978.

Como o jornalista Juarez Fonseca escreveria na crítica do disco para o jornal gaúcho Zero Hora, o resultado era

competente, com bons vocais, boa instrumentação, um som para agradar certa faixa de público jovem mas, decididamente, um som que não reflete a criatividade e a antiga originalidade do grupo.

Kleiton, na biografia da dupla K&K escrita por Emilio Pacheco, reconhece:

A entrada de João Baptista e do Zé Flávio e a tentativa de transformar o Gilnei em um baterista eram a busca de um novo formato. (…) Pra tocar em muitas rádios importantes tinha de ter bateria. (…) (…) sem dúvida (…) teve uma participação superlativa na construção daquele novo som. Tanto pelo fato de ser um grande músico como pelo seu entusiasmo com música, que sempre foi contagiante.

O álbum já começa com um country-rock (vá lá, um rock rural, como se dizia então). Bastante autobiográfico, composto por Zé Flávio e Kledir, Céu do Rio de Janeiro fala da vida na cidade, com um refrão focado num assunto que começava a entrar em pauta: a ecologia.

Céu do Rio de Janeiro
(Zé Flávio / Kledir Ramil)

Vejo no céu do Rio de Janeiro
Minha saída, agulha no palheiro
Dentro do sufoco, vivo quase louco
Dando duro pra sobreviver

Faço do céu do Rio de Janeiro
Uma janela, a hora do recreio
Onde cabe um, somos mais de mil
Engolindo, quietos, cobras e lagartos
E Primeiro de Abril

Pão de Açúcar, não vá me melar
Teu doce é folclore, não vai me enganar
A cidade continua uma beleza
Mas aonde foi parar a natureza?

Faço do céu do Rio de Janeiro
Uma canção, mergulho num tinteiro
Pego o violão pra sair do chão
Enquanto a loucura anda de skate
Olho o céu e bebo leite

Pão de Açúcar, não vá me melar
Teu doce é folclore, não vai me enganar
A cidade continua uma beleza
Mas aonde foi parar a natureza?

A segunda canção do Lado A é Mantra, batizada com o nome de outra das ex-bandas de Zé Flávio. Parceria dele com Kleiton, que também é o autor do elegante arranjo de vozes. É a primeira faixa almondeguiana a incluir uma guitarra elétrica – ainda que discretíssima. E ainda inclui outra novidade: um solo de flauta de Kledir.

A ela se segue uma canção que poderia perfeitamente estar em um disco da futura dupla Kleiton & Kledir: Muchacha, uma quase rumba composta pelos dois, onde ruge o baixo de João Baptista e Kledir assume pela primeira vez uma persona muito bem detectada no livro de Emílio: o cara que perde as estribeiras por uma mulher (e que reaparecerá em muitas canções da futura dupla Kleiton & Kledir: Tô Que Tô, Paixão, etc).

E então vem Trama, o segundo country (rock rural?) do disco, com direito a violino na linguagem do gênero e violão imitando banjo. Falando, mais uma vez, de astrologia, um tema recorrente para Kledir, seu autor, que tinha estudado com a alemã radicada em Porto Alegre Emma de Mascheville, mentora de mais de uma geração de astrólogos da pesada.

Depois de Trama, um dos momentos mais altos da discografia da banda. Irretocável em letra, melodia, harmonia e arranjo, Androginismo, de Kledir, é uma espécie de moto-perpétuo melódico-harmônico, naquela levada de “milonga caribenha”, e cuja letra celebra a alegria andrógina que fervia pelo mundo e pelo Brasil, de David Bowie a Ney Matogrosso, passando, obviamente, pelos Dzi Croquetes. Polêmica, nos últimos anos a canção tem sido interpretada e gravada por artistas LGBTQ como Almério, Valéria Barcellos e Silvero Pereira, ao mesmo tempo em que incomoda outros artistas LGBTQ que a veem como uma canção homofóbica.

Androginismo
(Kledir Ramil)

Quem é esse rapaz que tanto androginiza,
Que tanto me convida pra carnavalizar?
Que tanto se requebra do céu de um salto alto
E usa anéis e plumas pra lantejoulizar?
Que acena e manda beijos pra todos seus amores
E vive sempre a cores pra escandalizar?
A minha mãe falou que é um tipo perigoso
Que vive sorridente fazendo quá, quá, quá
O meu pai me contou que um dia viu o cara
Num cabaré da zona dançando cha-cha-cha
Quem é esse rapaz que tanto androginiza,
Que tudo anarquiza pra dissocializar?
Com mil e um veados puxando seu foguete
Que lembra um sorvete pra refrescalizar?
Cuidado aí vem ele: é um circo, é um cometa
Abana, abana, abana, que é o Papai Noel!
Cuidado aí vem ele, é um circo, é um cometa
Abana, abana, abana, que é o Papai Noel


Eu pensei que todo mundo fosse filho de Papai Noel…

A ela se segue outro country-rock, também de Kledir, cantado por João Baptista e comprovando a efetiva influência que Zé Flávio teve sobre a turma. A canção fala do sítio da Cascata – que é da família de João. O mesmo sítio que ele e seu primo Quico Castro Neves frequentavam na infância, e onde foi gerado o terceiro disco da banda, aquele retalhado pelos produtores:

Cascata
(Kledir Ramil)

Eu era um guri verde como o mato
Puro como a água clara da Cascata
Eu era um guri verde como o mato
Puro como a água clara da Cascata

Todo o dia eu acordava com o sol
Engolia meu café com pão e mel
Encilhava o bom tubiano corredor
Azulava com o Quico e o Valdemar
Céu azul, estrada, campos, plantações
Eu não tinha asma nem preocupações

Estufados com o feijão da Dona China
Tio Eurico, a Vó e a Mãe jogavam pife
E, atirado à sombra fresca da figueira,
Eu sonhava em ser Tarzan ou Robin Hood
Escondido pelos matos namorava
A sobrinha da empregada do Costinha 

Noite adentro era fogueira e violão
Vai milonga e cada qual contava um causo
A Mulher do Violino enfeitiçado
Galo Branco ou o Noivo Enforcado
No clarão do fogo eu era muito macho
Mas suava frio no escuro do meu quarto

Mais uma prova da influencia de Zé Flávio é o irregular compasso de 7/4 em Cheiro de Jasmim, a faixa seguinte. Com direito até a uma passagem meio rock-progressivo – o tipo de sonoridade que Zé experimentava em suas bandas anteriores. O vocal final, armado novamente por Kleiton, traça uma elaborada trama de contrapontos.

O Lado B abre com uma das grandes canções de Zé: a desesperançada balada Estórias pra Você. É uma das músicas que explicita o clima de fim que perpassa todo o disco. E ainda tem o primeiro solo de guitarra da banda:

Estórias pra Você
(Zé Flávio)

Pelo jeito vou passar a noite inteira
Contando estórias pra você.
Bobagens e tolices,
Realidades, crendices,
E não sei mais o quê.

Pelo jeito vou passar a noite inteira,
Contando estórias pra você.
Verdades e mentiras, 
Urbanas e caipiras,
Coisas em que você não crê.

Por exemplo: quando falo em profecias,
E lhe digo não vai ser um ano bom, 
Você está no bar enchendo a cara
E nem sabe que a colheita esse ano gorou,
Que esse ano gorou

Pelo jeito vou passar a noite inteira
Enchendo o saco sem querer.
Com meu jeito de entendido,
Meu tesouro escondido
Que ninguém consegue ver

Pelo jeito vou passar a vida toda
Tentando convencer você
De que a vida é a ciência 
De manter a consciência 
Quando tudo escurecer.

De que a vida é a ciência 
De manter a consciência 
Quando tudo escurecer.

As guitarras finalmente tomam o poder em Mulher Maluca, puro pop-rock brasileiro dos anos 1970, escrito por Zé Flávio e cantado por João Baptista.

Segue então um dos poucos acenos regionais do disco. A “milonga caribenha” Harmonia, assumidamente uma tentativa de um novo Vento Negro.

E então outra canção que sobreviveu ao tempo: Alô Buenas, de Kleiton. Uma declaração de princípios de artistas vindos do sul para o centro do País. E que, em sua estrutura, lembra os primeiros tempos do grupo: escrita em portuñol, tem uma primeira parte em 4/4 e uma segunda numa nova variação da levada em 6/8 tão clássica dos Almôndegas. 

Alô, Buenas
(Kleiton Ramil)

Você diz alô
E eu digo buenas
Você diz alô
E eu digo buenas
Eu sou do fim do Sul
Do fundo do quintal do país

Llorar solo pude acalentar la muerte
Vamos luchar ahora y hacer la suerte
Llorar solo pude acalentar la muerte
Vamos luchar ahora y hacer la suerte

Rio Grande do Sul
Das guerras de Sepé Tiaraju
E lendas
Luz de boitatá
E a bruxa moura Teiniaguá

Vou-me embora, vou-me embora
Prenda minha
Tenho muito que fazer…

A canção seguinte, Voltando pra Casa, é a única parceria de Zé e João. E segue o tom autobiográfico de Céu do Rio de Janeiro, mas em clima de fim de aventura, com direito a backing vocals de Zizi Possi.

Voltando pra Casa
(Zé Flávio / João Baptista)

Esse barco que me leva rio acima
Rima com meu coração
Trago malas e bagagens, saudades de casa
E uma nova canção
Que fala da cidade grande
E da fome que quase passei
Esse barco é meu socorro
Sem ele quase morro
Sem rever você

Menina do interior
Com cheiro de campo e de flor
Esse rio de água funda e escura
Leva o barco, vou também
De volta

Não vejo a hora de rever velhos amigos
Andar em lugares que nunca esqueci
O Sol do Sul me faz bem
O céu do Sul também
Esse rio de água funda e escura
Leva o barco, vou também
De volta

E aí a última faixa do último LP encerra a discografia da banda em grande estilo. Escrita pelos irmãos Ramil, uma grande melodia leva versos de resistência a uma época infeliz (do País, da banda que acaba). Mas com uma força, uma violência e uma esperança machucada que a coloca como um dos pontos altos de toda sua obra:

Circo de Marionetes
(Kleiton Ramil / Kledir Ramil)

Nós somos ásperos 
Por força do hábito
Trazemos o sangue muito quente 

Vivemos de migalhas
Promessas e batalhas
Estamos rindo de nervosos. 

Cobertos de feridas 
Num beco sem saída.
No entanto, o coração palpita.

Estamos lúcidos, 
Atentos, com fôlego, 
Armados de fé até os dentes. 

Truques, acrobacias, 
Palhaços e magias, 
Estamos vivos de teimosos. 

Circo de marionetes, 
Chuva de canivetes.
No entanto, o coração se agita.

***

Gilnei nem chegou a terminar as gravações do disco. Foi pesando a pressão da banda para que ele, bom percussionista, estudasse bateria. Criatividade havia, faltava era técnica e vontade de mudar de instrumento. Ele até tentou, mas essa acaba sendo a gota d´água em sua decisão de voltar pro Sul. Somou-se à congênita doença gaúcha chamada saudade do pago.

Kledir, em depoimento a Emilio Pacheco:

Com a entrada do baixo elétrico, o Gilnei começou a tocar uma mistura de percussão com pedal de bateria. Depois, começou uma pressão em cima dele para estudar bateria e Almôndegas virar uma banda padrão tipo `bateria, baixo e guitarra`, que é o que se escuta no quarto disco.

No disco, finalizado com dois bateristas de estúdio – um deles, o espetacular Mamão, do Azimuth -, Gilnei gravou basicamente percussão. E foi-se embora.

A confusão resultou numa situação estranhíssima, que só não teve maiores consequências porque todos eram muito amigos: o designer sino-americano Basil Pao, diretor gráfico da Warner americana, se encantara pela banda e oferecera-se para fazer a capa.

O lado bom é que ela foi escolhida como a melhor capa do ano pela gravadora. O lado ruim é que, ao saber que o baterista tinha saído, Basil simplesmente raspou Gilnei da foto da contracapa antes de mandar para a impressão. O efeito é medonho e antipático.


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Gilnei, em depoimento no livro de Emílio:

O que aconteceu foi… caminhos. Interferência da gravadora em repertório, um pouco de discussão – no bom sentido, de caminhos a tomar, em termos da coisa ficar mais pop. E começou a perder o sentido pra mim. Comecei a me desiludir com a música. Não com os guris, que até hoje a gente é amigo, a gente se encontra todo final de ano. Briga, não houve nenhuma.

O fato é que, acabadas as gravações do disco, precisavam de um baterista para os shows, que seriam produzidos em grande estilo pelo mesmo empresário do então bastante popular Ivan Lins. Zé Flávio sugere então uma participação especial fixa de seu ex-companheiro de banda Mantra Fernando Janczura, o Pezão (Porto Alegre, 15/08/54). O mesmo Pezão que, nas décadas seguintes, integraria duas outras bandas de grande importância e sucesso popular no sul: Musical Saracura e Papas da Língua.

Pezão pega o finalzinho do sonho. E faz bonito.

Kleiton:

O Pé (…) teve participação fundamental no show Circo de Marionetes, um espetáculo muito poderoso. 

E segue, contando da derradeira temporada carioca, lançando o disco no Teatro Ipanema, de 18 a 29 de outubro de 1978:

Lembrei agora de duas figuras ilustres na plateia: Ivan Lins, que era admirador e incentivador do grupo, e o Jim Capaldi, do grupo inglês Traffic. O Big Jim era nosso amigo (cheguei a compor uma música com ele) e tocou bateria com o Almôndegas em show realizado na Praia Vermelha, no Rio de Janeiro. Ele gostava muito do grupo, levantava no meio do show e gritava e aplaudia eufórico. O pessoal gritava “senta, senta…” e ele virava com aquela carcaça de respeito (e era o “Big” Jim – muito forte) e dizia: “Eu sou amigo deles. Sou amigos desses caras…” no seu português enrolado.

(Ah, sim. Antes de encerrar essa parte, vale contar que teve isso: Capaldi estava morando no Brasil, casado com uma brasileira amiga da jornalista Denise Cunha, namorada de Kleiton. Foi por aí que conheceu a música do grupo e não só adorou, como se ofereceu pra tocar bateria num show que aconteceu num sábado à tarde, em maio, no Teatro de Arena da UFRJ, na Praia Vermelha. Por razões de contrato, ele não podia ser anunciado, mas o boca a boca valeu. E o show lotou pra ver os Almôndegas com Jim Capaldi na bateria tocando uma mistura do repertório deles com músicas do Traffic.)

Mas, voltando, algo se quebrara. 

Kledir:

O Gilnei era o meu companheiro mais próximo, do tipo sair pra conversar, trocar ideias, fumar um. Dali saíam muitas análises e reflexões. É claro que havia essa troca também com os outros, mas minha relação com Gilnei tinha uma intimidade, uma cumplicidade que acabava clareando nossas ideias e ajudando a trazer um pouco de luz para as infindáveis “reuniões do Almôndegas”. Além do seu talento musical intuitivo, era um pilar naquele grupo, tanto que no dia em que foi embora, a banda se desmantelou.

A dureza também andava grande. Nem o aluguel do sistema de som da banda com eles trabalhando de operadores estava salvando a pátria.

Gravam clipes de duas músicas do disco – Androginismo (https://www.youtube.com/watch?v=1ORzogB60rc) e Alô, Buenas – para o especial Rock Concert, da TV Globo. Fazem nova temporada em novembro: três dias no Teatro de Bolso, no Leblon.

Mas no final de novembro de 1978, Kledir avisa que está indo embora para a Venezuela, morar num ashram da Grande Fraternidade Universal para se dedicar à ioga e à meditação.

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Na única sessão de fotos feita como quarteto, ninguém parece lá muito feliz, né?

Arthur de Faria nasceu no ano que não terminou, é compositor de profissão (20 álbuns e EPs) e doutor em Lupicínio pelas Letras da Ufrgs. Publicou Elis, uma biografia musical (arquipélago, 2015) e tá no prelo Porto Alegre, uma biografia musical, Volume 1, reunindo as primeiras colunas publicadas aqui.

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