Arthur de Faria | Porto Alegre: uma biografia musical

Capítulo LVIII – Um milhão de melódicos melodiosos – ou: os anos de transição (Parte 4)

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Capítulo LVIII – Um milhão de melódicos melodiosos – ou: os anos de transição (Parte 4) Conjunto Melódico Norberto Baldauf: É tão sublime o amor (envelope com disco 78 rpm)

A primeira ida para o Rio acabou resultando em 12 viagens que o Conjunto Melódico Norberto Baldauf fez à cidade maravilhosa para gravar. Desta feita, registram material para cinco 78 rpm a serem lançados entre agosto de 1955 e julho de 1957.

É importante marcar o que representava, para um grupo gaúcho dos anos 1950 estar em uma gravadora. O Conjunto Farroupilha era o único artista ou grupo do Rio Grande do Sul a ter esse privilégio naquele momento. E nunca é demais lembrar que não havia estúdios em Porto Alegre desde que a Casa A Electrica falira, 30 anos antes.

Quando voltam dessa primeira temporada carioca, são festejados pela mídia local como heróis desbravadores. Todos os 78 rpm vendem bem, recebem resenhas elogiosas no centro do país e garantem contrato pra mais dois 78rpm… e um LP – naquele formato de então: 10 polegadas, 23 minutos de duração. 

Os rapazes davam pé. 

De valsa, no caso. A etiqueta na capa já esclarecia: Para Dançar.

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O primeiro LP. Para dançar… com elegância.

O álbum Ritmos da Madrugada (1955) chega ao número um de vendas da Odeon. Tem, além de Felicidade Foi-se Embora (sic), de Lupicínio Rodrigues, duas pérolas do único compositor do grupo, Canella: Baião na Espanha Duas Rotações

E bom compositor: suas músicas chegariam a ser gravadas por quem, naquele momento, era considerado o maior acordeonista do Brasil, o também gaúcho Chiquinho do Acordeom. 

Eu sei, você quer saber quem era o número dois. 

Sivuca. 

O mesmo Sivuca que, certa vez, no programa Fantástico, da Rede Globo, disse que o maior acordeonista do Brasil morava em Porto Alegre e se chamava… Victor Canella.

O mesmo que recebeu ao longo da vida muitas propostas pra gravar discos só seus, mas nunca topou, porque dizia que se sentiria traindo a trupe. É ele quem alça os voos mais altos nos poucos improvisos registrados em discos do conjunto. Afinal, o líder Norberto não era muito disso: 

De vez em quando, me animo a fazer jazz, improvisar, etc., mas não é o meu feitio. Gosto mais de pegar uma melodia bonita e enfeitar aquela melodia. 

O guitarrista Raul Lima também fica em volta do tema, mais variando do que improvisando. Já Canella ia longe, num fraseado bastante particular – nem completamente jazz nem completamente brasileiro. Um mestre.

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Deu certo? Repete a ideia, melhora o time e lança um volume dois.

Ritmos da Madrugada Nº 2 , do ano seguinte, terá (ao lado de canções de Caymmi e Ary Barroso) uma versão suingada da folclórica Balaio e dois belos choros “locais”: Capricho em Ré, do pianista Délcio Vieira, e mais uma pérola de Canella: Um Choro na Penumbra. Além da primeira gravação de Tem Que Ter Mulata, do sambista Túlio Piva, recém-chegado de Santiago do Boqueirão e apresentado a eles pelo amigo em comum Paulo Deniz (vale ler a história no capítulo sobre Túlio).

Portanto, das nove músicas, quatro eram de autores gaúchos. E foi mais um sucesso, mais um disco ao chegar ao número um de vendas da gravadora número um. Cate aí o Lado B – as músicas emendam-se todas umas nas outras -, e diga se, em muitos momentos, aquilo já não é quase bossa nova. Na levada de Baraldo com as vassourinhas, nas variações, no suingue quebrado da guitarra de Raul, no acordeom de Canela, cujas síncopes antecipam o futuro violão hard-bossa de Baden Powell…

No meio disso, tanto Midani quanto Aloysio insistem para que eles se mudem para o Rio ou, no mínimo, São Paulo. Não topam: família, trabalho garantido, empregos “oficiais”… Era muita coisa pra arriscar. Nem os que eram 100% músicos – Canella e Baraldo – se empolgaram com a ideia.

E, também, era muita gente: desde Ritmos da Madrugada Nº 2, o grupo tinha crescido: eram agora um septeto. Haviam acrescido percussão (na época dizia-se “o ritmo), com o então muito jovem Fausto Roberto da Costa Touguinha (Rio Grande, 09/8/1935, Porto Alegre, 29/09/2006). Ele vinha do Regional do Paraná da rádio Gaúcha e era colega de trabalho de Canella no Piano Drink e no Clube da Chave. Durante o dia, barnabé do IAPETEC – Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Empregados de Transportes e Cargas.

Touguinha atacava com as armas da época: pandeiro e agogô nos sambas. Bongôs, agê, congas e maracas no repertório mais latino. E ainda dava uma encorpada nos vocais, que eram usados só eventualmente. E, mesmo assim, quase que só nos refrões.

Pois então: vocais. 

Começou a ser essencial alguém que cantasse como solista. Demorou alguns 78 rpm, dois compactos, um LP e muitos bailes, mas acabou aparecendo: Luiz “Alemão” Octávio Medeiros de Albuquerque Neto (Porto Alegre, 30/07/1933 – 16/08/2013). Que vai entrando aos poucos, já que o grupo tinha firmeza no conceito de fazer uma música basicamente instrumental. Nesse primeiro disco em que aparece, por exemplo, só canta três trechinhos: algumas frases em Eu Sem Maria (Dorival Caymmi / Alcyr Pires Vermelho), a segunda parte de Tem Que Ter Mulata e um curto solo em Faceira (Ary Barroso).

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Baldauf, Luiz Octávio, Touguinha, Baraldo, Léo, Canella, Raul: O Septeto Fantástico

A gravação baldaufiana de Faceira ‒ escrita 25 anos antes por Ary Barroso , é um belo exemplo da sonoridade dos melódicos: piano, acordeom e guitarra, juntos, tocando a melodia da primeira parte em blocos de acordes, com eventuais perguntas e respostas dos instrumentos. Variações melódicas e variados ornamentos enfeitam tudo. Aí modula (troca de tom) e os vocais finalmente entram, aos dois minutos de uma música de 3’. 

Em uníssono, cantando o refrão. Uma única vez, em stacatto, sem alongar nenhuma nota, num clima bastante bossa nova  e com aqueles “rr” tão deliciosamente datados. Na repetição, a maviosa voz de Luiz Octávio, num clima Dick Farney/Lúcio Alves, canta, variando a melodia, uma única frase: “Fooooooooi, nuuuum saaaaaamba, deeee gente baaaaaamba”. Só isso. 

O coro então volta: “que eu te conheci, faceira, fazendo visagem, passando rasteira”. 

E pronto. Retorna o instrumental e encerra.

Pra quê mais? 

Só João Gilberto faria menos  e João, nessa época, ainda cantava imitando Lúcio Alves.


Arthur de Faria nasceu no ano que não terminou, é compositor de profissão (15 discos, meia centena de trilhas) e doutorando em literatura brasileira na UFRGS por puro amor desinteressado. Publicou Elis, uma biografia musical (Arquipélago, 2015).

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