Porto Alegre: uma biografia musical

Capítulo LXXXIII – Anos 60: Zé Gomes

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Capítulo LXXXIII – Anos 60:  Zé Gomes

Outra figura grande surgida nestes anos e que seguiu fazendo maravilhas vida afora foi Zé Gomes.

Zé chegou na turma dos bossanovistas gaúchos do começo dos anos 1960 vindo de uma bela experiência de regionalismo de vanguarda n´Os Gaudérios, seu grupo fundado na década anterior. Com o fim da formação, monta uma academia de violão que funcionaria por anos bem no centro de Porto Alegre, sempre muito procurada, e que talvez tenha sido a grande usina de incentivo à Bossa Nova na cidade.

Entre 1958 e 1968 o professor Zé Gomes e sua esposa e também professora Alda Gomes nem davam conta de tanta gente que queria aprender as novas batidas e harmonias – mais ou menos como a academia que o Roberto Menescal tinha no Rio. Até o final da vida ele se referiu àquele tempo como “a época em que eu era rico”.

Mas antes de seguir, vale voltar à sua pré-história musical. Zé nasceu José Bonifácio Kruel Gomes dia 24 de junho de 1935, em Ijuí, 330 km a noroeste de Porto Alegre. Seu avô, Bonifácio Gomes, era regente de banda militar, emigrou para o hoje Mato Grosso do Sul e fundou lá a cidade de Bonito. Seus tios tocavam nos cinemas da cidade na época do cinema mudo. Seu pai, João Pereira Gomes, era violinista. 

Pra completar, um de seus melhores amigos de adolescência era um violonista chorão carioca que fora parar em Ijuí chamado Waldemar da Conceição, filho do mítico concertista de violão e chorão Levino da Conceição. Some-se a isso o fato de que Zé estudava teoria musical desde que se entendia por gente. E que, aos nove anos, passara a estudar piano no Conservatório Musical Carlos Gomes, na cidade de Carazinho, a 100 km dali. 

Resultado: com 14 anos era músico profissional na orquestra do Maestro Jacques.

Quando ele tinha 17 a família mudou-se para Porto Alegre. O ano era 1952, e quem conta é o jornalista Juarez Fonseca, num texto sobre os anos 1960 na música da cidade:

Em questão de dias, graças à indicação de um amigo, já tocava no naipe de violinos da Orquestra Sinfônica de Porto Alegre, a OSPA, regida por Pablo Komlós e seu assistente Salvador Campanella – este também maestro da orquestra da Rádio Farroupilha. Mas não esquentou cadeira: ao final de oito meses, quando chegou a programação de concertos para o ano seguinte, viu que a orquestra repetiria quase tudo o que havia tocado naquela temporada. Era muito inquieto, resolveu sair. Como gostava de folclore, acabou conhecendo Barbosa Lessa e Paixão Côrtes, sendo por este convidado em 1953 a integrar o grupo Tropeiros da Tradição.

O Tropeiros da Tradição misturava dança, música e poesia, e era liderado por Lessa e Paixão, as figuras de ponta do nascente Movimento Tradicionalista Gaúcho. Empolgado com o tema, no ano seguinte, 1954, Zé é um dos fundadores d’Os Gaudérios – junto com Jarbas Cabral, Moraes Filho e Neneco (Fernando Schirmer Miranda). O grupo musical ensaiava aonde? Na casa do Paixão, que na época estava a mil como apresentador do Grande Rodeio Coringa, programa radiofônico que bombava o novo regionalismo gaúcho na poderosa Rádio Farroupilha. A mesma Farroupilha onde o conjunto vocal era o Conjunto… Farroupilha, então tornando-se um fenômeno nacional de popularidade, desde que passara também a investir em repertório regional/folclórico. 

Os Gaudérios vão tão bem que, em 1958, são escolhidos para representar o Brasil na França, num Festival Internacional de Folclore, em plena Sorbonne. 

Não só ganham o festival como gravam um LP pela DECCA francesa: Os Gaudérios. De volta ao Brasil, em 1961 gravam outro, pela RGE – e este vai ser várias vezes relançado. No disco brasileiro, pelo menos dois futuros clássicos da canção regional do sul: Amargo, de Piratini e Lupicínio Rodrigues, e, claro, Os Homens de Preto, de Paulo Ruschel. Além de um tema de Zé: Passeando no Pago.

Chegamos a 1958, quando nasce o Estúdio José Gomes, nome oficial da sua Academia de violão. Ali, todos os finais de tarde, uma turma de músicos da pesada, toda ligada à Bossa Nova, se reunia para jams e muita conversa. Gente como João Palmeiro e os multi-instrumentistas Mamão e Nenê. Alda Gomes, então cara-metade de Zé, tocava violão e cantava com um charme bossanovista de respeito. Pelos próximos 10 anos, mais de 1500 alunos passarão por lá. A coisa cresceu tanto que passaram a ocupar três salas do edifício Hermon. E logo tiveram de contratar mais professores: nosso já várias vezes citado Zequinha Guanabara e um nome que crescerá em importância nessa história: Ivaldo Roque. Ivaldo entrara na academia em 1961, como aluno de violão clássico, e desde 1962 tocava em programas da TV Piratini num trio com Zé ao violino e Vladimir Latuada na flauta.

Como já vimos, desde 1961 Zé passou a atuar também como professor – e concertista – de violão clássico (era muito elogiado tocando Bach e Villa-Lobos, especialmente). E era uma das estrelas dos Seminários de Música coordenados pelo compositor e professor Bruno Kiefer na Secretaria de Educação e Cultura do Estado, cujo diretor de cultura era Carlos Jorge Appel. Brizola era o governador.

Com o Golpe Civil-Militar e a nomeação de Ildo Meneghetti como governador, todo uma área da cultura foi desmontada. Mas Zé e Bruno Kiefer já tinham criado o CLC, Centro Livre de Cultura (uma espécie de CPC local), que reunia música, cinema, teatro, arquitetura e por aí vamos. Evidentemente passaram a ser perseguidos em 1964 e fecharam as portas dois anos depois.

Mas com essa experiência, Zé e Bruno organizam juntos o Selim, Seminário Livre de Música, em trio com Armando Albuquerque. Bruno e Armando eram professores do mesmo Instituto de Artes da UFRGS para o qual Zé presta concurso em 1969, e onde passa a dar aulas. E foi a salvação, porque o Estúdio Zé Gomes tinha fechado as portas no ano anterior, com medo da repressão pós-AI-5.

Nesse meio tempo passou dar aulas e palestras avulsas sobre música erudita e música sacra – chega a compor uma Missa para Coro, Flauta, Violão e Cavaquinho. Além de participar como jurado do programa A Grande Chance, na TV Piratini. 

Atuando em todas as frentes, em 1965, no primeiro Arqui-Samba da Faculdade de Arquitetura da UFRGS (do qual logo falaremos), o programa distribuído ao público anunciava: 

O Arqui-samba vai começar com sambistas cá de casa, que vão mostrar a um grande público que já se faz Música Popular Moderna em Porto Alegre. Vocês verão a ‘bossa’ de José Gomes com Ivaldo e Bigode; o conjunto de Geraldo Flach e a cantora Maria de Lourdes Pederneiras, as irmãs Marques e o quarteto de Aldo Astaf. 

“Bigode” era o saxofonista Vladimir Latuada. E reza a lenda que Luiz Eça, pianista da atração nacional da noite, o Tamba Trio, ficou encantado com o violino de Zé Gomes.

Na década seguinte, Zé se mudaria para São Paulo, contratado como professor de música do Colégio Pio XII, e passa a trabalhar como arranjador em festivais da Record e da Tupi, função que havia estreado em 1968, nos festivais porto-alegrenses de que logo falaremos. Também passaria a compor trilhas para teatro e cinema e participaria do volume 1 da série de LPs Música Popular do Sul dos discos Marcus Pereira.

Ao longo dos anos 80 e 90, foi crescentemente apaixonando-se pela música de raiz, principalmente do sudeste e centro-oeste. Com isso, quase abandonaria o violão, enquanto aproximava cada vez mais o som do seu violino da sonoridade da rabeca, passando logo a alternar os dois instrumentos. Em 1992, apaixona-se pela primitivíssima viola de cocho mato-grossense, instrumento até então quase ignorado fora da sua região. 

Nessa nova fase, e nesse novo meio, Zé passa a ser um dos músicos mais solicitados para gravações e palcos, deixando sua inconfundível assinatura de violinista/rabequeiro em mais de 200 discos. Tocando com gente como Elomar, Heraldo do Monte, Diana Pequeno, Grupo Tarancón, Renato Teixeira, Pena Branca & Xavantinho e seu grande parceiro Almir Sater. Mas também com gente de fora desse universo, como Chico Buarque, Alzira Espíndola ou Arthur Moreira Lima. Entre os gaúchos, Vitor Ramil e Yamandú Costa. 

Com Almir, sua parceria mais conhecida, foram mais de 20 anos. Ele integrou inclusive a Comitiva Esperança, projeto bancado pela Funarte que pesquisou a música pantaneira numa longa viagem a cavalo que durou mais de três meses e percorreu mais de mil quilômetros pelo Pantanal. Com Almir também escreveu Doma, um dos temas instrumentais mais importantes do violeiro, que virou uma espécie de standard dos violeiros profissionais e estudantes.


Zé e Almir Sater

Mesmo com tudo isso, só nos anos 1980 Zé começa a desenvolver um trabalho solo – inicialmente em Noites da Rabeca realizadas no Rio e em Belo Horizonte. Seu primeiro disco veio só aos 60 anos, em 1995. O CD batizado Palavras Querem Dizer foi lançado num belo show no Theatro São Pedro de Porto Alegre, com Zé acompanhado de metade da banda instrumental gaúcha Cheiro de Vida: o baterista e percussionista Alexandre Fonseca e o baixista e sitarista André Gomes. Que vem a ser… filho de Zé.

No mesmo ano participa do festival Cantamérica, também em Porto Alegre. E quem viu os dois espetáculos pode garantir que foram radicalmente diferentes. Como Zé sempre era. 

Muitas estórias correm a seu respeito, contadas por seus parceiros mais constantes, Almir Satter e Renato Teixeira à frente. Uma delas é a de que ele jamais ensaiava. “O Zé nasceu ensaiado”, escreveu Renato (no encarte de Palavras Querem Dizer).

A outra é que não “passava o som” antes de um show. Afinal, segundo ele (e há um fundo de razão nisso). na hora em que o público entra no lugar o som muda, então não adianta arrumar tudo antes.

Tudo tem a ver com a longa transição que foi fazendo no decorrer de sua vida: do rigor erudito Zé foi se direcionando cada vez mais para uma música improvisada e espontânea, tanto fazia se com ou sem uma forte raiz regional.

Com tudo isso, só teve quatro discos lançados, todos em CD.

O primeiro, de que já falamos, é o tocante Palavras Querem Dizer, lançado pela Caipirapira Produções Artísticas, de Renato Teixeira, e distribuído pela gravadora Kuarup em 1995. Nesse disco, pela primeira vez um músico profissional usa como instrumento principal uma viola de cocho (o violeiro e pesquisador Roberto Corrêa já vinha gravando com o instrumento em seus discos desde 1988, mas nunca um trabalho inteiro). O CD é praticamente um duo dessa rareza de instrumento matogrossense com uma rabeca de três cordas também tocada por Zé. E foi fruto de dois anos de tanto apaixonamento pelo instrumento que ele mudou-se para uma casa na Serra da Cantareira para se concentrar na viola de cocho. 

O segundo CD viria em 1998, em parceria com seu filho André Gomes. A Idade dos Homens (Paradoxx Music) já tem uma onda bem diferente, um clima meio world music. Graças em parte à abundância de instrumentos persas, árabes e hindus tocados por Marcus Santurys, que se somam à rabeca, viola de cocho, violino, violão, kalimba e teclados de Zé e ao baixo, sitar, violão, guitarras, teclados e percussão de André (mais Rodrigo Sater eventualmente tocando saltério). É o típico trabalho que parece ter sido todo criado em improvisos coletivos assinados basicamente por Zé e André.

O terceiro, Tempos Interiores, foi feito em 2000, mas nunca teve distribuição comercial. E também muda totalmente o clima: agora ele mistura a rabeca com violino, viola (de arco) e cello, todos tocados por ele, e recebe alguns convidados como Almir Sater e sua viola.

Por fim, há Rabecas, feito em parceria com o violinista, saxofonista e rabequeiro suíço Thomas Rohrer pouco antes de morrer. Thomas veio passear no Brasil em meados dos anos 1990, conheceu Zé e a sua música e isso mudou tanto sua vida que acabou vindo morar no Brasil, apaixonando-se pela rabeca e se tornando um grande pesquisador da música de raiz envolvendo o instrumento, tanto em seu trabalho solo quanto no grupo A Barca ou em duo com seu Nelson da Rabeca. Como Zé, alterna música tradicional com música livre improvisada.

Além desses discos, todos dificílimos de encontrar, há muito pouco de Zé acessível para se escutar. Um exemplo raro são as canções “No mar, veremos” e “Minuano” que ele escreveu com o poeta Nei Duclós e que estão postadas no YouTube, em gravações onde ele canta e toca todos os instrumentos.

Ficaram inéditos um disco gravado ao vivo em duo com Yamandú Costa e um método para rabeca.


Zé um ano antes de morrer.

Zé morreu de enfarte em cinco de junho de 2009, poucos dias antes de completar 74 anos. Seu último show importante tinha sido em dezembro de 2007, com convidados como Almir Sater e Renato Borghetti, em Porto Alegre, no encerramento do festival Acorde, ao ar livre, ao lado da Usina do Gasômetro. Praticamente uma grande improvisação coletiva de raiz. Seja lá o que isso signifique.

Segundo seus amigos e conhecidos, e isso também ficava claro para quem o escutava falar, Zé estava num processo de crescente amargura com o mundo da música e o crescente ostracismo a que fora relegado.

Quando de sua morte, escreveu o amigo Joel Emídio da Silva, o Joca, no seu blog “Ser-Tão Paulistano”:

Do que morreu o Zé Gomes? O diagnóstico foi infarto, mas pode ter sido tristeza, indignação, frustração perante as tremendas dificuldades, cansado do vilipêndio, das redundâncias, dos que se conformam com o sucesso fácil, descartável. O frágil corpo que abrigava um gigante não suportou. Porém, foi sua vingança final, prevalecendo até o fim sua radical postura de sempre buscar as origens ignotas da expressão musical. Como me disse o amigo Deo Lopes: “Ele foi o alicerce musical de todos nós…”

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