Porto Alegre: uma biografia musical

Capítulo LXXXVIII – Anos 60: A era dos Festivais em Porto Alegre III

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Capítulo LXXXVIII – Anos 60: A era dos Festivais em Porto Alegre III

Canta Povo

A casa dos pais de Laís Marques, sua irmã Sílvia e seu irmão Celso era o QG do Canta Povo, o grupo mais importante da música de Porto Alegre da segunda metade dos anos 1960.

Ele reunia as duas irmãs, que cantavam, com três nomes que você já conhece bem daqui desse capítulo: Ivaldo Roque no violão, João Palmeiro na voz e violão e Mutinho na percussão. Pra completar, uma figura que aparece aqui e será fundamental na música de Porto Alegre a partir de então: Giba-Giba, então conhecido apenas por Giba, mas já abraçado no seu tambor gigante chamado sopapo. Nascido em Pelotas, 27 anos antes, Gilberto Amaro do Nascimento já tinha no currículo o posto de sócio-fundador da Escola de Samba Praiana, em 1960. 

O grupo nascera para participar do I Festival Sul-Brasileiro da Canção Popular, em julho de 1967. Três meses antes fizeram uma espécie de pré-estreia, no show MPB-Sul, promovido por quem? Claro, pelo efervescente DAFA, o centro acadêmico da Faculdade de Arquitetura que, como já vimos, era um dos centros de efervescência da cidade.

Agradam muito. No jornal Zero Hora, cobrindo o show, o jornalista Armando Burd escreve:

Porto Alegre já está com música popular pra valer.

Vale ler o que o jornalista mais citado aqui, Juarez Fonseca, contou sobre essa história:

Da noite para o dia o Canta Povo tornou-se a sensação da cidade com sua música alegre e vibrante, as duas meninas bonitas na frente, levando multidões onde quer que se apresentasse. Aparecia toda hora nos jornais, com chamadas do tipo “Santo de casa também faz milagre”. Foi a primeira atração local contratada para shows no exclusivo Encouraçado Butikin – até então palco de estrelas como Elizeth Cardoso, Maysa, Caymmi. Detalhe: Sílvia tinha só 16 anos, o Juizado de Menores não queria liberá-la para se apresentar em uma boate, mas no fim das contas até o juiz foi assistir. 

A base do repertório do grupo eram as composições de João, Ivaldo e Mutinho, e o grande charme, os arranjos vocais feitos por Laís, que cantava então no coral da faculdade de Filosofia e estava apaixonada por música medieval e renascentista. Música medieval e renascentista que era também uma paixão dos tropicalistas. E dos poetas concretos.

Falando neles…

Em setembro de 1967, um mês antes do lançamento da Tropicália no festival da Record, Décio Pignatari, Haroldo e Augusto de Campos vão a Porto Alegre para a inauguração de uma mostra sobre sua invenção, a Poesia Concreta. Onde? Na sede do IAB, Instituto dos Arquitetos do Brasil (é impressionante pensar o quanto de protagonismo cultural havia entre estudantes e profissionais da arquitetura nesse momento).

Augusto, fascinado pelo então desprestigiadíssimo Lupicínio Rodrigues, quer muito conhecer o compositor. 

E aí voltamos a Juarez:

O jovem publicitário Jesus Iglesias, fã do grupo, disse que o levaria até Lupi, mas só depois dele ouvir o Canta Povo. Augusto foi a um ensaio, e tanto se encantou que publicou no Correio da Manhã, do Rio, elogioso texto sob o título “A voz e a vez do Sul”. 

Texto que, na sua edição número10, de 23 de setembro de 1967, o estreante caderno de cultura da mesma Zero Hora, então dirigido pela dupla Marcos Faerman e Luís Fernando Veríssimo, republica.

Todo a primeira parte é Augusto maravilhado com Lupicínio, o que inaugurará uma lenta redescoberta do compositor.

Mas a segunda metade é inteira sobre o Canta Povo, que ele havia encontrado no ensaio. Ou melhor…

Não houve propriamente um ensaio completo, antes um pré-ensaio, que os problemas de espaço e de acústica da pequena sala em que nos reunimos não permitiam mais.

E segue:

Canta-Povo? Meio desconfiado, preparei-me para me defrontar com uma sucursal “daquelas coisas pseudo-folclóricas”, com gente se dispondo a comer o microfone e agredindo o ar com carantonhas e braçadas participantes. Mas (…) era toda outra coisa. Samba urbano, evoluído, nada de provincianismos ou de demagogia regionalista. Gente inteligente, tentando raciocinar sobre o que aconteceu de novo na música popular brasileira, desde a Bossa Nova, e respondendo sensivelmente, com inventividade, às suas proposições. 

(…)

João Palmeiro canta na linha “a palo seco” de João Gilberto, a mais autêntica da nossa música popular moderna. (…) As jovens irmãs Marques – que sem ter nada de Ellis (sic) Regina parecem ter sua garra musical – não são só para ver. Têm uma técnica vocal elaborada, que provém da experiência do coral de Bruno Kiefer, compositor e regente, diretor dos Seminários Livres de Música de Porto Alegre.

O arremate do texto de Augusto é um impressionante retrato do pensamento médio gaúcho com relação a seus artistas. Que de lá pra cá não parece ter mudado muito, haja visto que é o único estado onde, hoje, se critica Ellis, digo, Elis Regina:

O “Canta Povo, que começou há alguns meses atrás e que já conta com entusiasmo do público universitário de Pôrto Alegre, precisaria ser conhecido além-Rio Grande, urgentemente. Quando sugeri isso, alguns fãs mais exaltados protestaram: olharam com ternura para as irmãs Marques (acho que pensaram em Ellis, que se foi e não voltou), depois olharam inquietos (acho que pensaram em linchamento) para mim. Mas me perdoem os amigos sulinos, de confinamentos estamos fartos. Ainda que me arriscando à danação gaúcha, já anunciei a cariocas e paulistas: dêem uma só chance ao “Canta Povo” e toda gente vai cantar com eles.

Já estava de bom tamanho, mas poucos dias depois foi a vez de Vinícius de Moraes, em passagem pela cidade, experimentar uma noite escutando a turma, encantando-se e aceitando o posto de padrinho do grupo (coincidentemente ou não, poucos anos depois Mutinho seria não só o baterista da dupla Toquinho & Vinícius, como parceiro de ambos).

O resultado veio logo: em 1967 anunciou-se que eles seriam contratados pela Philips, a gravadora mais importante da MPB naquele momento, dirigida pelo mesmo Armando Pittigliani que havia produzido o primeiro disco de Elis fora de Porto Alegre, o excelente Samba eu canto assim.

Pitti veio a Porto Alegre conferir o burburinho em torno do grupo. E, segundo o jornalista Osmar Meletti, que anunciou o fato, depois de ouvir as seis primeiras músicas apresentadas já concluiu:

– Está pronto o primeiro lado do LP, vamos para as seis do lado seguinte.

Meletti, um grande incentivador da música da cidade, acaba assumindo o posto de mais-ou-menos-empresário do grupo, combinando com Pittigliani uma apresentação formal deles para o resto dos cabeças da gravadora, vindos do Rio especialmente para um jantar-show com o Canta Povo no chiquérrimo salão de espelhos do Clube do Comércio.

Tudo foi às mil maravilhas até que…

Conta Juarez:

A horas tantas da noite, já meio alto, João Palmeiro fez alguns comentários desagradáveis a respeito de sucesso e de gravadoras; em outras palavras, foi descortês com os homens da Philips. 

Ainda assim, ao contrário do que dizem as lendas que correram desde então, a Philips manteve o anúncio da contratação, anunciando o grupo como uma das suas grandes apostas para 1968. 

Só que…

(de volta a Juarez):

No dia seguinte o Canta Povo acabou. Às portas do sucesso nacional, simplesmente se dissolveu. Já havia problemas antes, claro, a começar pela combinação de duas meninas de família, uma de 16, outra de 18 anos, estudantes, com quatro boêmios de boa quilometragem. João costumava chegar atrasado aos ensaios, por exemplo; Laís dava bronca, cobrando seriedade. Os desentendimentos eram frequentes, a convivência tinha altos e baixos. A ruptura final foi provocada por João, que hoje alinha duas razões para sua atitude: a mãe estava muito doente, com câncer, e ele não se sentia preparado para o sucesso. Assim, para decepção de Meletti e de todos os que esperavam ver o grupo conquistar o país, foi cada um cuidar de sua vida.



Já falaremos de João Palmeiro.

O único registro sonoro que ficou em disco do Canta Povo são as gravações ao vivo de Canto de Chegar (João Palmeiro / Mutinho) e Batucada (João Palmeiro / Ivaldo Roque) no disco do I Festival Sulbrasileiro da Canção Popular.

Além disso, há a lembrança de quem os acompanhou ao vivo, nessa trajetória que merece bem o adjetivo de meteórica. Como o jornalista, pesquisador e memória viva destes anos Vanderlei Cunha:

Não há como usar outro adjetivo: precioso!

O grupo Canta Povo foi protagonista de um momento precioso, bonito e mágico no cenário musical de Porto Alegre na metade final da década de sessenta.

Quem ouviu e assistiu essa turma nos palcos universitários de então, principalmente nas Rodas de Som da Arquitetura da UFRGS, sabe e lembra do que falo.

Quem só imagina que o CP existiu por ouvir falar (relatos em formato de lenda pipocam até hoje no Portinho) e que foi fugaz como um relâmpago, realmente não se dá conta do que perdeu.


Para ouvir:

CantaPovo – BATUCADA (João Palmeiro-Ivaldo Roque)
CantaPovo – CANTO DE CHEGAR (João Palmeiro-Mutinho)
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