Porto Alegre: uma biografia musical

Capítulo XCI – Anos 60: Frente Gaúcha de Música Popular Brasileira

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Capítulo XCI – Anos 60: Frente Gaúcha de Música Popular Brasileira

Chegou a hora de falar na tão marcante quanto efêmera Frente Gaúcha de Música Popular Brasileira.

Como já vimos, vinha se reunindo informalmente no Clube de Cultura uma turma de cantores e compositores advindos da Bossa Nova (ainda que muitos já estivessem mais pro jazz e alguns arriscassem uns passos roqueiros-tropicalistas). Atravessavam madrugadas tocando, cantando, bebendo cerveja e discutindo música, sociedade e política. O grande fervo foi entre 1964 e 1968. 

Pois foi no verão (de 1968), quando a classe média de Porto Alegre se muda toda para o litoral norte, que, em conversas em Tramandaí, capitaneadas pelo então superfamoso Edgar Pozzer, surge uma ideia. Uma ideia inspirada pela falta de perspectivas dos músicos da capital, mas também fazendo eco às cada vez mais variadas organizações políticas de resistência à ditadura.

Nasce ali a ideia da Frente. 

Um século depois da Sociedade Partenon Literário e 20 anos depois do lançamento do Movimento Tradicionalista Gaúcho, a Frente iria até apresentar um manifesto defendendo uma identidade estética como música brasileira do sul. 

A eterna obsessão gaúcha e porto-alegrense: delimitar fronteiras, descobrir identidade e entrar em combate.

Na primeira matéria sobre a turma, publicada na Folha da Tarde de 19 de abril de 1968, o jornalista conta:

Estava na hora de lançar gente nova para um mercado em potencial, que poderá surgir a qualquer momento. Estava na hora de criar novos ídolos e sustentar a fama e o valor artístico de muitos outros que estavam um pouco esquecidos. Em Porto Alegre iniciou-se o movimento. Os convites foram generalizados. As primeiras reuniões começaram a ser realizadas. O Clube de Cultura da Ramiro Barcelos serviu de sede. Edgar Pozzer, com seu entusiasmo de jovem veterano, passou a liderar várias dezenas de músicos. Era a Frente Gaúcha de Música Popular que começava a surgir.

Entre seus principais integrantes, várias das figuras de quem temos falado: Sérgio Napp, Raul Ellwanger, Cláudio Levitan, Luiz Mauro, João Alberto Soares, Fernando do Ó, Ivaldo Roque, Paulinho do Pinho, Erika Norimar, os irmãos César e Paulo Dorfmann. Vindos do mundo dos conjuntos melódicos, os cantores Edgar Pozzer, Fernando Collares, Sabino Loguércio e toda a turma do já veterano Norberto Baldauf, assim como a do Renato & Seu Conjunto. 

A eles se somavam alguns nomes ainda não citados aqui: Homerinho Lopes, Mauro Kwitko, Beto Morgado e os grupos Quinteto de Bossa (liderado por Paulo Dorfman), Tempo 6 (Pozzer, Antonio Codorniz, Maria Teresa, Maria Luisa Gama, José Barbosa e Ieda Leite) e Os Redondos (Raul, Homerinho, Telmo Kothlar, José Carlos Granda, Sérgio Franq e Pedro Carlos Fetter). Mas havia muitos mais: quase 80 pessoas passaram pela Frente. Gente de três diferentes gerações. Iam dos 16 anos de Cláudio Levitan até os 44 de Raul Lima, guitarrista de Baldauf (Pozzer, aos 30 anos, estava bem no meio).


Sabino, Edgar Pozzer e Érika Norimar

Juarez Fonseca, no seu tantas vezes citado texto sobre a música de Porto Alegre nos anos 1960, conta:

A Frente já nasceria sob as críticas de quem não foi convidado para integrá-la ou não concordava com a ideia. Por exemplo, João Palmeiro e Giba-Giba achavam que era uma “panelinha”, um grupo que se separava. A velha dicotomia gaúcha… 


Primeira foto da turma, no Clube de Cultura

A Frente é lançada oficialmente dia 28 de abril de 1968, num grande show de duas horas e meia, no ginásio do Grêmio Náutico União. Promovido pela Companhia Jornalística Caldas Jr, ele foi anunciado como parte das comemorações dos aniversários do jornal Folha da Tarde e da rádio Guaíba. 

Parece muito pra bolinha de um grupo que se lançava, não? Até porque era pra ser no Auditório Araújo Vianna, maior ainda, e só foi transferido de última hora para o União em função da chuva (o auditório era então a céu aberto, já no centro do parque da Redenção).

Mas é que eles tinham dois grandes trunfos. 

O primeiro era o prestígio de Edgar Pozzer, já conhecido há pelo menos uma década como cantor e galã de rádio e TV.

O segundo era uma grande amiga de boa parte da turma, que topou fazer o show de encerramento da noite, depois de 70 artistas da Frente se revezarem no palco. 

Essa amiga era ninguém menos que Elis Regina. Nesse momento não só a maior cantora do País, como recém-chegada de uma temporada consagradora em um dos palcos mais nobres da Europa, o Olympia de Paris – feito que teve ampla repercussão no Brasil.



Cláudio Levitan, ainda menor de idade, foi um dos destaques no show, junto com o Conjunto Norberto Baldauf e a dupla Raul Ellwanger e Homerinho. E, em 2022, lembra bem do que seria seu primeiro encontro com a ex-colega de tantos dos que estavam ali:

A Elis convidou a gente – tinha a minha irmã, a Liane, que tinha uns 10 anos de idade. Então: a Elis nos convidou no camarim e eu fui com a Liane lá, a gente conversou com ela, muuuuito querida. Ela tava tocando ali no União e depois ela ia pro Teatro Leopoldina, e me convidou pra ir lá no Teatro Leopoldina pra assistir o show dela. Eu achei o máximo! 



O sucesso da estreia foi grande. A maioria das cinco mil pessoas que lá estavam tomava contato pela primeira vez com a obra de dezenas de artistas da sua própria cidade.

Empolgados, o pessoal da frente logo marcou um show no Clube de Cultura, sede informal do grupo (e que, duas décadas depois, também seria a sede da Coompor, Cooperativa dos Músicos de Porto Alegre, também com Levitan, Raul e Cesar). O lugar era muito menor, mas novamente tiveram um super-apoio: agora do Banco do Estado do Rio Grande do Sul, o futuro Banrisul.

Nesse novo espetáculo apresentaram-se Nana Chaves e Os Redondos, Os Rouxinóis e Paulinho Trio, Jorge Schönfelp com o grupo Mutirão, Tempo 6, Sabino Loguércio, Vera Mariza, O Vocal e Edgar Pozzer solo. No programa, um texto-manifesto assinado por César Dorfman dá mais uma vez a dimensão do estrago feito pela chegada do videoteipe às tevês “locais”:

Uma ideia de há muito na cabeça de muitos. Fervilhando. Amadurecendo. Faltava a mola propulsora, e esta surge na capacidade realizadora de um pequeno grupo comandado por Edgar Pozzer. A ideia: unir em torno de uma bandeira comum, com fins claros, um grupo (ou todos) de músicos, executantes e compositores, espalhados por esta pequena P. Alegre. Com isto, vencer a barreira na não-comunicação com o público, grande incentivador e receptáculo de inovações criativas. Vencer a barreira imposta pela TV que não dá a chance necessária ao lançamento de valores locais, atulhando o vídeo com tapes alienadores e enjoativos. Levar, enfim, a boa música (e ela existe aqui, apesar dos incrédulos) ao público, por meio de espetáculos de palco, como este que ora se realiza. O valor dos integrantes do grupo, a esta altura, já não pode ser contestado, bastam as cifras. 

Aquela primeira matéria sobre a Frente, publicada na Folha da Tarde de 19 de abril de 1968, já glosara o mesmo mote:

Esquecidos há muito tempo de quase todos, afastados dos vídeos de nossas televisões, longe dos microfones de nossas rádios, nossos compositores, músicos e cantores já começavam a desanimar. Mas isto não seria válido. E veio a reação.

Em nove de dezembro, um novo palco, desta vez novamente num grande espaço: o Teatro Leopoldina. O novo show, de 20 músicas, tinha até título: Batida de Violão Quase à Janela da Década de Setenta. Desta vez a lotação foi de meia casa, atribuída em parte ao dia escolhido: uma segunda-feira.



Mais do que qualquer resultado concreto, o que a Frente estava conseguindo era fazer renascer entre os cantores e compositores de Porto Alegre a ideia de que era possível ter uma carreira. Ideia que vinha sufocada por décadas de bailes e apresentações em TV e rádio onde qualquer trabalho próprio, autoral, era virtualmente impossibilitado. 

Só que…

… logo logo César, Napp e Edgar, os cabeças da turma, se deram conta que eram três trabalhando por 80. Pra piorar – e muito -, em dezembro de 1968 o AI-5 faz a barra da ditadura pesar definitivamente, tornando impossível a existência de grupos que se reúnam para cantar, tocar ou discutir madrugadas adentro.


Levitan:

A Frente Gaúcha não foi um movimento cultural em si. Na minha opinião ela teve um caráter mais corporativo – no sentido de defender a música e os músicos gaúchos, independentes dos seus gêneros, contra a hegemonia do eixo Rio-SP. Nasce como uma reação ao surgimento das grandes redes de telecomunicações que começaram a reduzir as programações locais e passaram a adotar o que veria a ser o “padrão Globo” de cultura. 

E que música tocava e compunha o pessoal da Frente? Como já falamos e repetimos, os registros fonográficos são raros. O que nos resta são principalmente depoimentos de época. 

Numa matéria de 1968 intitulada É Uma Frente pra Frente, o jornalista (que não assinou) escreve:

As composições dos integrantes da Frente Gaúcha de Música Popular Brasileira giram em torno de temáticas universais, como o amor, a saudade, a esperança de alterar o preconceito. Nascem do sentimento que tem o autor de expressar seu comprometimento com a ordem social. São fruto da dívida de cada cidadão para com a sociedade de que participa e à qual tem o dever de ajudar a transformar.

Ok, isso é o conteúdo, claramente engajado. Mas e a forma? A música? Voltemos a Juarez, que estava lá:

Com poucas variações, os estilos musicais eram influenciados pelas citadas raízes da MPB, pela segunda fase (mais social) da bossa nova e pelos festivais do Centro do país. Paulinho do Pinho, por exemplo, tinha um vigor que lembrava Baden Powell. A música O Gaúcho, de Ellwanger, era uma tentativa de renovar temas regionais como faziam Gilberto Gil e Vandré. (…) A temática regional também já inspirava um bossa-novista como Geraldo Flach ao compor De Rodeio, não classificada no Festival da Arquitetura. 

A imagem mais conhecida da Frente é uma foto feita no Araújo Vianna para uma matéria. Num texto emotivo e autobiográfico Raul Ellwanger a descreve: 

Sobre o fundo da plateia vazia do Auditório Araújo Viana, estão quarenta cantores, instrumentistas e compositores muito sorridentes, com um ar de otimismo e confiança. 


Raul é o primeiro à esquerda, de jaqueta preta. A seu lado, Cesar Dorfman. Com os dois braços levantados, à direita, Paulo Ruschel. À sua esquerda, de barba, Homerinho. À direita deste, Edgar Pozzer. Atrás de Edgar, Paulinho do Pinho e, atrás dele e Homerinho, Salvador Touguinha. À esquerda de Paulinho, da direita para a esquerda: Telmo Kothlar, Mauro Kwitko e Sabino Loguércio.  

Em maio de 1968 Nazareno de Brito e Vilson Rodrigues, dois dos cabeças da Continental, estiveram em Porto Alegre ciceroneados por Ayrton dos Anjos, o Patineti, representante local da gravadora. Prometeram mundos e fundos. Segundo a imprensa da época, iriam gravar vários artistas da frente – Edgar Pozzer, Erika Norimar e o Tempo 6 são citados nominalmente, além do cantor Escurinho e o conjunto GR-Show, montado pelo apresentador Glênio Reis para o seu programa de TV do mesmo nome.

A matéria da Folha da Tarde de 23 de maio diz que

Os dirigentes da Continental deixaram Edgar Pozzer encarregado de fazer uma triagem dos valores da Frente Gaúcha. A gravadora quer uma seleção de bons cantores e compositores.

De todos, só Erika chegou ao LP.


Para concluir, nada melhor que voltar ao texto de Raul Ellwanger:

Na Folha da Tarde, de 27 de abril de 1968, há um longo artigo de “Apresentação” da Frente Gaúcha da MPB, assinado por mim: diz ali que:

“[…] universitários, profissionais liberais, profissionais da música, trabalhadores e poetas se unem para em definitivo lançar as bases de um novo centro da música brasileira, em condições de equiparação com os demais polos musicais do país”. Em dezenas de recortes, vou descobrindo o potencial dessa turma alegre e atrevida. 

(…)

Tendo ficado de fora do movimento musical por uns dez anos (entre clandestinidade, condenação pela Lei de Segurança Nacional e exílio), sempre pensava em qual teria sido o destino dessa nossa grande turma. No retorno a Porto Alegre, gravei meu primeiro LP e comecei de novo do ponto onde tinha parado, 10 anos antes. Descobri o pior: tudo tinha parado por dez anos. Medo, exílio, perseguição… alternativas místicas, muito baseado e LSD, cooptação, “pra-frente-brasil”, família, trabalho, desinteresse e temores da mídia, foram fatores que ceifaram o movimento. A cereja podre e perversa desse bolo é o Ato Institucional nº 5, de 13 de dezembro de 1968. Como em quase tudo no Brasil, o AI-5 cortou pela raiz aquele movimento musical, aquele ímpeto criativo, aquele ânimo participativo. 


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