Porto Alegre: uma biografia musical

Capítulo XCII – Bebeto Alves, do início ao meio

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Capítulo XCII – Bebeto Alves, do início ao meio

* Este texto foi revisado pela última vez em 2008, e vai estar – atualizado até 2022 – no segundo volume do “Porto Alegre – Uma Biografia Musical”.

Luís Alberto Nunes Alves nasceu escorpião, dia quatro de novembro de 1954, na fronteiriça cidade de Uruguaiana – a distantes 650 quilômetros de Porto Alegre, linha reta a oeste. É uma das cidades gaúchas mais distantes da capital, separada da Argentina pelo rio Uruguai.

Aos 13 anos de idade, já uivava pra lua tocando rock em bailinhos animados pelo conjunto Os Zumbis. Que, darks avant la lettre, em pleno coloridíssimo ano de 1967 só se vestiam de preto. Um perfeito roqueiro-mirim, formado pelos filmes de praia, os filmes de Elvis e os filmes dos Beatles, e compondo suas próprias canções desde que aprendera a tocar violão, aos 12.

Mas o guri cantava na rádio Charrua de Uruguaiana desde os dez. E aos 14 já passara d’Os Zumbis para o posto de crooner do repertório em inglês do Hi-Fi, principal conjunto de bailes da região. Podia ter seguido ali, passando a vida no lamê, cantando Only You pelos clubes caixeirais da fronteira e descansando no sítio. Mas estávamos em 1970. E, pra sorte (ou azar) de Bebeto, sua mãe se separa de seu pai e muda-se para Porto Alegre, com os filhos. Ele tinha 16 anos quando foi parar no efervescente Colégio Julio de Castilhos, o Julinho. Não podia dar outra. 

Não deu.

Ali no Julinho realmente se abriu a possibilidade de prever ou antever ou ver aquilo que era bom. O hippismo, a cultura das drogas lisérgicas, a leitura, enfim: tudo que estava acontecendo naquele período me encaminhou a escolher como opção pra minha vida a música, que era uma coisa que já existia, que eu já tinha desde criança. Naquele período eu me dei conta que não tinha mais volta.

No final de 1973, abandona o colégio e mete o pé na estrada. Tinha 19 anos e, sem nenhum centavo no bolso, de carona em carona chegou ao Rio de Janeiro.

Em outubro do ano seguinte conseguira uma chance e tanto: tocar no festival de rock da praia da Palhoça, em Santa Catarina (onde também se apresentavam os Almôndegas). Só que, antes do show, comeu tanto cogumelo que na hora de subir ao palco não conseguia fazer nada além de viajar entre o cosmos e o interior de si próprio. O único saldo positivo da experiência foi que ali conheceu dois maravilhosos malucos-beleza porto-alegrenses: os irmãos Frota.

Em 1974, ao completar duas décadas de vida, está de volta a capital gaúcha. E funda, com os Frota, uma das bandas mais comentadas e menos escutadas do, vá lá, rock gaúcho: o lendário Utopia. O grupo tinha Ricardo Frota no violino e Bebeto e Ronald Frota nos violões e vozes. Os irmãos eram ainda mais jovens que ele, e se uniram ao amigo mais velho para burilar um rock-folk-gaudério-progressivo que soa moderno até hoje. (Ricardo foi para os Estados Unidos nos anos 1980, formou-se em música e passou a trabalhar com musicalização de crianças, invenção de instrumentos e esporádicas experiências em projetos musicais não-convencionais. Ronald mudou de área.)

Show do Utopia no Teatro da Assembléia. Patrocínio: Cinema ABC e Rádio Continental.

O Utopia era uma das pontas dessa nova cena porto-alegrense que dizia: sim, dá pra ser roqueiro e até progressivo, mesmo tendo nascido em Uruguaiana, Pelotas, Bagé, Porto Alegre… E, em termos de visão de mundo, talvez fosse a ponta mais rebelde:

Tem várias pessoas que se criaram no Musipuc: Nelson Coelho de Castro, Fernando Ribeiro, Inconsciente Coletivo, Gilberto Travi, Almôndegas. Nós éramos da rua. Era cultura pop-rock intuitiva. Não tinha embasamento da MPB de contestação, todo o universo que vinha dos Centros Populares de Cultura dos anos 60 e foram originados nestes festivais universitários e tal. A gente vinha de uma cultura de droga, de rua mesmo.

(Musipuc: festival de música criado e realizado na PUCRS.) 

Bons instrumentistas cercando um bom cantor, a banda rapidamente vira cult. E passa a fazer o circuito mais bacana da época: shows universitários; uma performance impactante nas Rodas de Som do teatro de Arena; músicas gravadas no estúdio da rádio da Universidade (da UFRGS) e sendo tocadas na rádio Continental; boas participações nos dois primeiros concertos Vivendo a Vida de Lee (até Bebeto brigar com Júlio Fürst, o cabeça do projeto, porque um segurança o retirou da beira do palco, de onde assistia outra banda tocar); shows individuais lotados na capital e no interior. 

No auge do sucesso era das bandas mais populares da cidade. Na edição dominical do jornal Zero Hora do dia do segundo concerto de Vivendo a Vida de Lee, o jornalista Juarez Fonseca escreve que o Utopia 

ao lado do Bixo da Seda é o grupo gaúcho que mais curiosidade tem provocado no Rio e São Paulo, tendo já várias citações nas colunas de música de Tárik de Souza e Nelson Motta. Constroem um som de altas esferas.

O sucesso batia à porta quando…

…a banda acaba.

Qual a Causa Mortis? 

Consumo de alucinógenos, churrasco, fandango, trago e muié. Mais ou menos nessa ordem. E, claro, uma necessidade de fazer outras coisas que fossem dar nisso que eu tento fazer hasta hoy. 

É bem verdade que pesou na decisão a pífia performance que tiveram em seu primeiro show fora de Porto Alegre, no festival paulista América Latina Canta, em 1976.

Bebeto, um veterano de então 22 anos, sentia que ainda tinha muito pra mostrar. No final do ano, ao lado do pianista, compositor e cantor Léo Ferlauto, faz o show Quieto, Morno e Moleque: 

Todas as influências começavam a desembocar no mesmo rio que o Carlinhos (Hartlieb) já navegava. Ou seja: a fusão do rock´n´roll, do pop, com os ritmos regionais. 

A influência de Carlinhos foi fundamental para toda a geração. E, no caso de Bebeto, acabou num show conjunto: Voltas. Que em 1977 reuniu os dois mais o também cantautor Cao Trein, o baixista Everton Pires e o percussionista De Santana: 

Pela primeira vez na minha vida tinha percebido, através da sacação do Carlinhos, que podíamos fazer uma música que nos diferenciasse em meio a tanta informação e tendências que se prenunciavam na música popular, tanto aqui no Brasil quanto no mundo todo.

Mais do que o Utopia, é este show que vai recolocá-lo em contato com suas raízes fronteiriças. E seria uma ponte para o fundamental LP coletivo Paralelo 30 que, produzido pelo jornalista Juarez Fonseca em 1978, que reuniria Bebeto, Cao, Carlinhos, Raul Ellwanger, Nelson Coelho de Castro e Nando D´Avila.

O Voltas teve uma temporada longa no IA, para a época: duas semanas de quinta a domingo. Era uma façanha, uma pretensão dos artistas locais. Mas, em plena ditadura, o Governo do Estado tinha um projeto de circulação pelo interior: Circuito DAC-SEC. Fizemos um numero expressivo de cidades e acho que foi isso. Não experimentamos em voltar a tocar em POA, não era comum. As coisas se cumpriam e, deixavam de existir, ficava na memória.

Bebeto ainda tenta uma versão revista e ampliada do Utopia, com nove (!) integrantes (incluindo Cao Trein). Mas não dá pé. Como já tinha feito e ainda faria muitas vezes ao longo da vida, botou de novo o pé na estrada. As coisas estavam no mundo e ele sentia que precisava apre(e)ndê-las.

Vai para São Paulo, depois para o Rio. Finalmente sediado ali, lançaria em 1981, pela CBS, seu primeiro disco solo: Bebeto Alves

No mesmo ano Vitor Ramil (com 19 anos) e Nelson Coelho de Castro (27, como Bebeto) lançavam também seus trabalhos de estréia. O LP vai bem no sul, mas logo vira artigo de colecionador, gerando uma seita que Bebeto batizaria informalmente de viúvos do primeiro disco. Nacionalmente, não acontece nada. A divulgação, que já tava fraca, foi definitivamente esquecida. 

No Rio Grande, o LP caiu como uma bomba. Não era nada comum artista gaúcho ter um trabalho com aquele nível de resolução formal, tão bem-acabado e com um som tão bom (naquele momento, só ele e o LP do Vitor tinham encostado nesse patamar). Na base, a segurança instrumental dos jovens veteranos roqueiros gaúchos do Bixo da Seda, segurando uma pegada rocker, aliada à característica sofisticação da banda. Em cima dela, belos arranjos de orquestra. Um luxo. 

Além disso, as músicas. Uma das quais vira o hino extra-oficial de toda uma geração de gaúchos que, naquele momento, tentava a vida pelos centros do País. Um épico meio vidala argentina, meio rock, chamado De Um Bando, cujo estribilho era uma frase-síntese: Somos um bando e muitos outros

A canção vira hit na Bandeirantes FM de Porto Alegre e começa a apontar para um novo formato de composição gaúcha. Um passo à frente dos Almôndegas e retomando, com uma cara mais moderna, as fusões utópicas de uma década antes. 

O mesmo se dava em outros sucessos do disco, como a bela milonga Santana do Uruguay (com letra de Luís de Miranda) ou a debochada rancheira-pop Kraft!… Mesmo (com letra de Paulo Klein). Esta chega a participar do festival televisivo MPB Shell 81, o mesmo de Navega, Coração, da nascente dupla Kleiton & Kledir. E gera até um clipe, com a citada casinha na Restinga (bairro popular da capital gaúcha) habitada pelo casal formado por Bebeto e Suzana Saldanha, numa hilária performance.

E se o primeiro disco tinha os roqueiros do Bixo tocando vidala, o segundo – gravado ao vivo em Porto Alegre no ano seguinte e lançado em 1983 – não deixaria por menos. Bebeto pôs os virtuoses rapazes jazz-funk do grupo instrumental Cheiro de Vida a encararem uma milonga. O LP se chama Notícia Urgente e é lançado pela Warner. Outro sucesso local, novamente uma rancheira-pop: Notícia Urgente. A todas essas, Bebeto seguia como contava na canção: 

Compadre, saudade!

Tou aqui no Rio. Tá fazendo frio. 

Acabou meu charque, meu fumo de rolo, meus cobres, meus réis…

…Me mande os papéis de votar!

Nesse exato momento a música mais tocada no Brasil era Tô Que Tô, cantada pela Simone. Pois quem tinha composto a canção? A recém-citada dupla Kleiton & Kledir. Que vinha de dois excelentes discos que foram sucesso de público e crítica. Estava na moda então (e não só no Rio Grande do Sul) o gauchismo light e um tantinho for export dos irmãos Ramil. Mesmos Ramis que tinham acabado de gravar 433, uma arrepiante canção de Bebeto que falava da linha de ônibus que ia da Vila Isabel lá pro fim do Leblon. Uma das melhores coisas do terceiro disco dos K&K, que acabara de sair. 

Pois então. É aí nesse momento dos mais propícios que o cara, firme na Warner, dá sua primeira guinada. Lança um compacto com a ultra-pop Quando eu chegar (aquela do refrão Galeão-Salgado Filho…). Gravada seguindo à risca a mais ortodoxa cartilha pop de 1984, a canção estoura. Com tudo o que tinha direito um pretendente a pop star desses primeiros anos 1980: Chacrinha, Xuxa, Flávio Cavalcanti e por aí vamos Com a bola cheia, Bebeto, empolgadíssimo, apresenta pra gravadora o projeto de um disco todo assim, pop! E os caras… negam!! Tavam com outros planos pra ele. Uma coisa meio Fábio Jr., sabe, meio romântico, mil coisas…

Bebeto, sendo Bebeto, só podia fazer o que fez: apertou o eject

Só que aí a Som Livre compra a ideia do disco rejeitado – inclusive com o mesmo produtor, Sérgio Carvalho. E, no clima redemocratização, vem o LP Novo País, lançado em 1985 e gravado com um super time que incluía metade da então popularíssima A Cor do Som. Um disco ultrapop, tremendamente bem realizado. Mas, sabe lá Deus por quê, não deu no sucesso que se poderia prever pelo compacto do ano anterior.

E aí, puto da cara, nosso já não tão jovem rapaz de 32 anos resolve chutar tudo pra cima e ir tentar a vida nos Estados Unidos. Numa absoluta coincidência, enquanto em Porto Alegre a banda new wave Urubu Rei cantava Nega, Vamo pra Boston, Bebeto vai MESMO pra cidade americana onde morava então seu velho amigo Ricardo Frota. Mas ia não para ser músico. Queria era encarar a vida, ver o mundo, chutar lata, jogar Boston no ventilador.

Encarou de pintura de parede a entrega de pizza. Mas, entre uma muzzarella, um rodo e uma calabresa, compõe furiosamente. Em ambos os sentidos do termo furiosamente. Aguenta menos tempo do que imaginava, chega a dar um tempo em Nova York, mas, sete meses depois, tá de volta não só ao Brasil, como a Porto Alegre. Resolve então resumir essa odisseia gravando um novo disco. Novamente ao vivo, no então badaladíssimo bar Porto de Elis, é registrado um de seus melhores trabalhos: Pegadas

Nas pegadas das minhas botas trago as ruas de Porto Alegre

Na cidade dos meus versos o sonho dos meus amigos

 O ano era 1987 e o LP, lançado pela Continental, vende boas 20 mil cópias. Nele, estreia a banda que irá acompanhar Bebeto por um bom tempo: Fernando Corona nos teclados cheios de frases espertas, o parceiro de 10 anos antes Everton Pires no mais sólido dos baixos, e o possuído Bebeto Mohr quebrando todas na bateria. 

Bebeto Alves tinha de novo uma banda, uma casa, uma cidade. Investindo no sonho dos seus amigos, é um dos fundadores da Coompor – a Cooperativa dos Músicos de Porto Alegre. Que passa a agregar parte importante dos artistas gaúchos de MPB das mais variadas gerações, funcionando como um celeiro de shows e projetos, nos quais Bebeto é uma das cabeças mais fervilhantes.

Na cidade dos seus versos, grava uma trilogia de discos ultra-pops, cada vez mais eletrônicos. Uns mais datados, outros menos, sempre em parceria com Corona. Dos três, Milonga de Paus, de 90, é o que melhor sintetiza sua poética verborrágica em tratamentos musicais quase minimalistas. Como na ousada faixa-título, que expande os horizontes da milonga por oceanos nunca dantes navegados. Mixando vanguarda eletrônica e as possíveis raízes mouras do ritmo, no canto melismático de Bebeto:

Ai, ai, ai, ai, que se sente

Uma sofreguidão

Ver a linha do horizonte

Sumir na palma da mão

Pentes semeiam morosos cabelos tão negros, paisagens de Portinari, janelas de tanta cor acalmam os pensamentos 

Os dias se incendeiam em azuis de dor, tão cegas sem duração, onde mulheres tatuaram meu corpo em luas de sedução

E vão de tudo aí, se lê, vê de tudo um pouco

E de tudo, todos já viram, e assim continua tudo exatamente igual, que nem mal não faz.

Ás de ouro, por baixo do pano, propina (flor de especial, de primeira), tás louco, que estória sovina, Ladrão!, Retruco! Quero vale quatro! 

E nunca mais, nunca mais, dizia eu e o corvo…

Mas de novo pus um ovo, uma milonga de paus dentro do coração.

Passa a trabalhar com publicidade, e ataca de produtor de discos como o primeiro trabalho de reggae no Estado: Porto Reggae, ao vivo e com ele e bandas pioneiras no gênero que logo em seguida viraria febre permanente em Porto Alegre, como a Motivos Óbvios e a Produto Nacional. Ou então um projeto de dance gaudério (em pleno 1993!). 

E aí, em 1994, se encontra com o compositor de música regional Mauro Moraes, de quem vai se tornar o intérprete ideal, numa insuspeitada parceria em que ambos saem ganhando. Mauro têm finalmente ressaltadas as nuances de suas composições, normalmente patroladas pela falta de sutileza dos intérpretes que até então a elas se dedicavam. E Bebeto reencontra, nas arejadas milongas e chamamés de Mauro, suas raízes mais profundas – que cavocam no mais fundo de sua alma uruguaianense, e de lá trazem um nêgo véio bagualudo que nem ele suspeitava que ali ainda habitasse. Ia dar caldo.

São três discos, um dos quais não menos que espetacular: Mandando Lenha, de 1997, todo recortado de silêncios, por onde se costuram a voz de Bebeto, o violão selvagem do argentino Lúcio Yanel e o inabalável baixo acústico de Clóvis Boca Freire. Mais do que ligado à tradição, o disco é imerso nela. E consegue uma força telúrica tão impressionante que é um pecado não ter corrido o mundo através de alguma gravadora de World Music. Pelo contrário: recebeu um lançamento paroquial, pela regionalista USA Discos, que não teve a menor noção do que tinha em mãos (alguém pode me explicar uma gravadora regionalista que se chame USA Discos ??!!). Por ser tão bom como é, mesmo assim seguiu sendo escutado e redescoberto, década a década.

Nesse momento, Bebeto já tinha um punhado de hits, reconhecíveis em qualquer canto do Rio Grande do Sul, tocados à exaustão nas mais variadas rádios. Como a demolidora pop-song Mais Uma Canção Popular – feita em parceria com Corona -, que ironiza a sina do compositor popular em se querer fazer ouvir num cenário tão imbecilizante como é o da FM. Usando para isso, subversivamente, todos os clichês desse mesmo cenário (note o jogo entre a fim e afim): 

Mais uma canção, onde tudo é desatenção,

Tamanha dispersão onde o meu coração vaga

Não quero mais falar sozinho em meio à multidão

Quero o vento batendo em meu rosto

E você me pedindo perdão por mais essa canção

Mais uma canção eu fiz por você não saber nada

Mais uma canção, sim, por você não estar a fim

E, em vão, mais uma canção, um sim

Por você não estar afim

E então, mais uma canção

No final da década, a necessidade gregária de Bebeto o junta a Totonho Villeroy, Gelson Oliveira e Nelson Coelho de Castro no projeto Juntos, que até o começo do milênio seguinte renderia dois discos e shows em Buenos Aires, Montevidéu, Paris, e no festival de Sanary-sur-Mer, na França. Provando que os quatro tinham repertório mais do que suficiente no imaginário local para fazer um disco ao vivo feito 100% de hits.

Pois é justamente numa edição do festival da Côte D´Azur que ele começa a quebrar um jejum de sete anos sem um disco de carreira – triste sina de vários cantautores gaúchos nos anos 90 (como o próprio Nelson). Bebeto lança ali seu derradeiro projeto para o século XX. Uma síntese de sua passagem musical pelo mundo, chamada Bebeto Alves y La Milonga Nova. A tal milonga era uma nova proposta de tratamento para o ritmo, fundindo sua pulsação quase mântrica a batucadas brasileiras, com um certo rock’n’roll cutucando por baixo e o samba-reggae pairando por cima. 

A estréia é no festival Brasil 2000, em Viena (onde se apresenta ao lado de Papas da Língua, Renato Borghetti e Arthur de Faria & Seu Conjunto). Logo em seguida, sai em CD, pelo selo gaúcho Antídoto. Que, só pra não fugir à regra das relações entre Bebeto e suas gravadoras, não faz nada pelo trabalho. Mais uma vez, uma pena. Estava ali (mais) uma síntese possível. 

No meio disso, é uma das melhores coisas de um disco curioso: Porto Alegre canta Tangos, com sete artistas gaúchos cantando clássicos do tango acompanhados de músicos argentinos – disco feito para o mercado argentino, no auge da popularidade do festival Porto Alegre em Buenos Aires, em 1998. Só a versão de Bebeto para Malena, de Homero Manzi e Lucio Demare, vale o CD. E ainda há mais dele em Vuelvo al Sur e Naranjo em Flor. 

Voltando um pouco, é bem verdade que não ajudou a Milonga Nova o fato de que, mal saiu o disco, Bebeto aceitou assumir a direção do Instituto Estadual de Música, na gestão petista do governador Olívio Dutra. Como em tudo que fez, pôs ali, inteira, sua ira santa, usando toda a energia possível para semear projetos como o espetacular Roda Som – que incluía shows em palcos móveis por todas as cidades do Estado, programa de TV (na TVE) e de rádio (na FM Cultura). 

De lá só saiu com o fim do mandato de Olívio. 

No seu lugar, entrou Elton Saldanha, que rapidamente desmontou tudo que Bebeto havia montado.

Em 2001, também é das melhores coisas do álbum Paralelo 30 Ontem e Hoje, edição em CD duplo do Paralelo 30 original mais (sub)versões dos originais, rearranjadas por Vagner Cunha, com a Orquestra Unisinos. Milonga de Paus e Que se Pasa? são as (deslumbrantes) faixas de Bebeto.

E aí estávamos na virada de 2002. Virada que pega Bebeto às vésperas de ser avô, e ainda um pouco assombrado com o fato de ter uma filha que havia virado musa e sex-simbol nacional – a atriz Mel Lisboa, revelada na minissérie global A Presença de Anita. Mas era novamente um homem faminto de bola. Cheio de músicas novas, mais uma vez se preparando para um novo trabalho, e que sentia que alguma coisa havia mudado para sempre. As vésperas dos 50 anos, descobria, feliz, que tinha finalmente saído da adolescência. E que o homem velho, já dizia o cara aquele, é inequivocamente o Rei dos Animais. 

Cheio de gás, avô e cinquentão, lança, praticamente de uma vez só, nada menos que um selo, em parceria com Fernando Nazer e o guitarrista, compositor e dono do estúdio TEC Audio Marcelo Corsetti. O selo se chama Upa!, e lança de cara QUATRO discos: a versão em CD de Porto Reggae; uma gravação ao vivo (por Francisco Anele) daquele show lá de 1977, o Voltas; uma coletânea de hits: Mais uma Canção, que, lá pelo meio, emenda uma assombrosa seqüência de milongas, suas e alheias, que desnudam o velho milongueiro nego véio.

O quarto disco é de um trabalho que começara pouco antes, no retorno ao primeiro palco importante de sua vida, o Teatro de Arena, com o espetáculo Blackbagualnegovéio. Nova síntese possível entre o pampa e o pop. Primeiro show, depois disco (em 2003), depois DVD (em 2006), o trabalho é uma obra-prima.

Que bem o traduz a dor do fim de um marcante relacionamento em novas e brilhantes colaborações de, entre outros, o arranjador e violinista Vagner Cunha, o produtor e guitarrista-campeão-de-barulhinhos Corsetti e o acordeom de João Vicenti. Só a assombrosa versão milonga dissonante de Paint in Black, dos Rolling Stones, vale o disco. Mas há muito mais. A estarrecedora valsa Solaris, só voz, violão e violino e imagens tarkovskianas:

Quando estou só, quem fala pela casa? A água. A água que lava o meu rosto. 

E o pensamento se esconde pelas gavetas.

Solaris, Solaris. Estacionei a nave no mar do esquecimento.

A mais bela palavra chora e bate a porta na minha cara. Outras estalam pela noite no quarto de dormir.

Solaris, Solaris. Assombra o nu da solidão que no escuro se esgueira.

Quem fala? Quem fala?

É o teu cheiro que da cama exala.

E a pedra jogada na janela foi o teu coração.

Que foi parar no chão da sala.

Ou então uma das obras-primas das suas tantas talk-songs como De Um Bando ou Pegadas: Trânsito. Daquelas letras imeeeeensas, de melodia errante e letra meio em fluxo de consciência que são tão claras marcas suas quanto as milongas.

No meio disso, gira pelo Brasil com o Projeto Pixinguinha, numa caravana tão bem-sucedida que é uma das escolhidas para representar o País em 2005 no Ano do Brasil na França. Pega uma estrada e já bate o sangue cigano de novo. Não deu outra: volta a morar no Rio de Janeiro, pra ficar mais perto das filhas.

Passa a compor com muita gente, além do parceiro Totonho Villeroy, agora rebatizado Antônio Villeroy, e estabelecido como hitmaker profissional no Rio. Lança, em 2008, o CD Devoragem. Gravado quase solo, basicamente em casa (ainda que tenha a mão precisa do velho parceiro Fernando Corona, de assinatura claríssima), é um dos seus trabalhos mais cheio de talk-songs imensas e reflexivas, na primeira pessoa. Mas tem também um sabor mais “brasileiro”, quase bossa em alguns momentos, reflexo das vivências cariocas. No meio disso, algumas quase milongas, uns rocks e uma tão bela quanto pateta balada romântica (como devem ser as boas baladas românticas), Tchau:

Você passa por mim como um sol, me diz “oi”, caminhando ainda diz: 

Hoje ouvi uma música, lembrei de ti. Que música louca! Mas… tchau!

Você me disse “Tchau, te vejo por aí, talvez amanhã, numa outra”. 

Um disco na linhagem do Blackbagual, mas muito menos voltado pra si, e mais para a reflexão sobre o estado do mundo, do Brasil, das coisas. Cantado em português, inglês, francês, espanhol com uma produção moderna. E que ainda inclui uma espécie de samba-rock-enredo (Naval) que conta a história de Naval, o

fuzileiro, bom de samba, de pandeiro, com fama de balaqueiro, saiu do Rio de Janeiro destacado a Uruguaiana

que transformou a cidade fronteiriça numa das cidades de carnaval mais animado no Estado, só perdendo para Pelotas e Porto Alegre.

E então, em 2008, acontece finalmente o encontro mítico que faltava com a aura oriental que sempre rondara seu trabalho. 

Ela se materializa numa viagem com a filha Mel para a Grécia e a Turquia, terra de melodias melismáticas tão caras a seu canto desde sempre. É um mergulho em águas profundas. Bebeto volta com um saz (popular instrumento de cordas turco), muita música na cabeça e energia renovada.

Pra quê? Pra seguir rodando o mundo.

P.S (de Nelson Coelho de Castro): 

Um pano rápido: Em 78, convido o Bebeto como guitarrista para o show Milagrezinho… naquele chão do (Teatro de) Arena ele ficava em pé num corner com o instrumento… colocando frases roqueiras, com distorção e outros sei-lá-quê-pedais, nas melodias, um barato! Um dia, num dos ensaios, mostrei para ele a música Sertório. Ele disse: – Magrão, isso é um reggae. E eu: – Régui! O que é um régui??

O novo, para mim, sempre esteve com Bebeto. O Bebeto é parabólico. Uma vez falei isso para ele. Ele disse: – Uruguaiana. Ela é cosmopolita. Marinheiros cariocas, contrabando, povo árabe, turco, castelhanos, bugres, fronteira, alguém chegando, alguém partindo – mais pampa e o caralho. 

Nas poucas e boas andanças que tivemos pelo planeta, ficava admirado por seu nenhum estranhamento, pasmar ou fobia para com as urbes d´além mar. E isto está na pele da sua música e no texto dele. Dos meus coevos, ele é o mais artista. Faz teatro, cinema, rádio e televisão sem nenhum embaraço. É do ramo.


Arthur de Faria nasceu no ano que não terminou, é compositor de profissão (20 álbuns e EPs) e doutor em Lupicínio pelas Letras da Ufrgs. Publicou Elis, uma biografia musical (arquipélago, 2015) e tá no prelo Porto Alegre, uma biografia musical, Volume 1, reunindo as primeiras colunas publicadas aqui.

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