Porto Alegre: uma biografia musical

Capítulo XCVI – Os Anos 70: Almôndegas (parte 2)

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Capítulo XCVI – Os Anos 70: Almôndegas (parte 2)

Chegou a hora de fazer o primeiro show individual da turma. A hora de definir, afinal, quem eram os Almôndegas.

Gilnei lembra bem como aconteceu:

As primeiras aparições um pouco (só um pouco) mais organizadas do quinteto, com algumas outras participações de amigos, foram no finado Encouraçado Butikin. Foi a partir disso que o grupo foi formado, pressionado para definir-se. Depois do Encouraçado, resolveu-se quem ficava ou não, para continuar mais profissionalmente. E o processo foi bem espontâneo: alguns podiam, outros não, em vários sentidos.


O resultado do “uns podiam, outros não”. Show com patrocínio do IPV, o cursinho do amigo Fogaça. Onde, inclusive, o grupo ensaiava.

Os shows aconteceram em quatro domingos, de nove a 30 de junho de 1974. 

Antes do ano acabar tocariam no Festival da Palhoça, em Santa Catarina, aquele acertadamente apelidado de Palhostock. A delegação gaúcha era de peso. No caso das outras três bandas, literalmente peso: Khaos, Bizarro e Bixo da Seda, rock setentão na veia. No meio deles, a calmaria acústica dos Almôndegas reforçada pelo cellista Jorge Thaler.


Almôndegas e o Thaler no canto direito

Mas voltemos um pouquinho.

Ao longo de 1974, o Almôndegas vinha rodando na programação da Continental AM, rádio da qual ainda falaremos muito. 

Mas se não tinham gravado disco, como é que tocavam na rádio? 

Ah, pois é. Eram gravações feitas no próprio estúdio.

Ninguém lembra exatamente como aconteceu, mas a hipótese do Fogaça é a que me parece mais verossímil:

Não houve ninguém pedindo, solicitando, furungando ou caitituando a música do Almôndegas. Naquele momento, talvez por tudo que se fazia na rua, nas mostras, nos festivais, em tudo que rolava, foi a Continental que se interessou em botar no ar, que foi atrás. Talvez porque eram outros tempos. De início, de novidade, de mudanças…

Ninguém tocava nada de ninguém de Porto Alegre. Havia quase um tabu.

Eu achava que só ia pro ar alguma coisa que saísse de um disco preto de vinil com um selo de cor vermelha ou verde estiloso, tipo assim: Capitol, RGE, Polygram; e achava ainda que o cara tinha que ser de Londres ou do Rio de Janeiro, ou da Bahia.

Não imaginava que eles pudessem botar na programação coisas de Porto Alegre, gravadas num cartucho.

As tendências mudaram e a rádio quis tocar. Os caras lá tiveram a coragem: Anele, Marcus Aurélio e Judeu [falaremos neles].

Chamaram, gravaram, testaram e tocaram. Tiveram a coragem e fizeram acontecer.

Kledir emenda:

É claro que não houve “lobby” em nenhuma das etapas do processo – esse tipo de comportamento não é do feitio, nem do temperamento do Fogaça. Nunca foi. Mas eu não tenho dúvidas de que foi através dele que o pessoal da rádio conheceu as músicas e nos convidou para gravar. 

A decisão de botar no ar foi coisa da Continental, afinal aquilo ali era também uma produção deles – acredito que estavam tão orgulhosos quanto nós. E a resposta imediata, o sucesso junto ao público, foi a confirmação que faltava. Aquela ousadia trouxe resultados positivos para todos nós, artistas, radialistas e público ouvinte.

Um detalhe a mais (mas bastante relevante) é a qualidade técnica surpreendente do que se conseguia ali, considerando as possibilidades. Mérito do técnico de som, o lendário Francisco Anele Filho. Foi graças a ele que a juventude universitária e politizada que escutava a emissora mais comentada da cidade passou a escutar três canções do grupo, rodando alternadamente na programação: Vento Negro, o samba-meio-Bossa Nova Até Não Mais e o xote com ar de rock-rural Sombra Fresca e Rock no Quintal. No ano seguinte, Até Não Mais chegou a ser a mais pedida no programa “Pediu, Rodou, Ganhou”. 

Kledir:

Virou um acontecimento – gente do sul, tocando no rádio!


Kleiton, Kledir, Gilnei, Pery, Quico

Em menos de dois anos o quinteto se tornaria o nome de maior popularidade na música do Rio Grande do Sul desde Pedro Raymundo, Teixeirinha, Lupicínio e Elis Regina.

Por enquanto, sigamos com o Kledir (lembrando que a gravadora Continental não tinha nenhuma relação com a rádio Continental):

Com todo o bochicho das músicas tocando na rádio, surgem os convites das gravadoras: Continental, Odeon e, mais tarde, Polygram. A Continental estava no auge do sucesso com Secos e Molhados – Rodrigues, o presidente, foi a Porto Alegre e apresentou um contrato – o Patinete era o representante local. 

Enquanto isso o representante da Odeon no sul chegou com a notícia: “O Lessa (diretor artístico da gravadora) pediu para vocês irem ao Rio, pois quer contratar”. A Odeon tinha a consistência artística de Milton Nascimento, Clube da Esquina, Gonzaguinha… 

Juntamos os trocados, compramos uma passagem de avião e fui ao Rio conversar com a Odeon – cheguei lá, o Lessa estava de férias!!!

Claro, nem ligamos pra marcar reunião… Coisa de gente inexperiente – voltei pra Porto e assinamos com a Continental.

Dias depois conhecemos Roberto Santana, da Polygram, que lamentou termos contrato assinado. Mas virou nosso empresário e depois nos levou para o Rio – e para a Polygram em 1977.

O primeiro e o segundo álbum dos Almôndegas – ambos lançados em 1975 – se tornariam uma espécie de Marco Zero da nova música urbana de Porto Alegre. 

Sedimentando um novo conceito, a partir deles se (re)descobriu que era possível fazer uma música de raiz local, diferente da ideia de adesão à MPB da geração surgida nos festivais dos anos 1960, da qual já tanto falamos (no volume anterior). 

O que estava nascendo ali não era claramente “MPB”, como se via os trabalhos de João Palmeiro, Mutinho, Raul Ellwanger ou mesmo Fernando Ribeiro. Era outra coisa. E se os Almôndegas não eram os primeiros a tentar – estavam junto com Carlinhos Hartlieb, Pentagrama, Claudio Levitan e uns poucos outros -, eram os mais visíveis. 

Praticamente toda a música urbana não roqueira feita no Rio Grande do Sul a partir de então, partirá – ainda que inconscientemente – dessa matriz. Uma matriz que, em 2023, está a apenas meio século de distância. Mesmo para padrões brasileiros, isso é assustadoramente próximo.

Pense num músico carioca, baiano ou pernambucano: para eles e tantos outros, as tradições musicais fundadas entre o século XIX e o começo do XX tiveram um seguimento ininterrupto. 

Para os gaúchos não foi assim. 

Em 1975, qualquer carioca sabia que, há pelo menos 60 anos, seu ritmo era o samba. Qualquer recifense se reconheceria no frevo – e por aí vamos.

Em Porto Alegre, extremo sul, meio do caminho entre os demais estados brasileiros e os países do Prata, só agora a síntese era possível.

Como deveria soar uma canção para ser inequivocamente porto-alegrense em 1975? Ninguém sabia. Era preciso inventar uma tradição.

De volta a Kledir:

Considero o Almôndegas um amálgama precioso, uma coisa que deu liga. Em especial, o encontro dos cinco primeiros integrantes.

Estávamos todos em formação. Aquela concepção musical original é resultado de talentos individuais se revelando e sem frescuras. Havia uma real fraternidade ali, com gente que se gosta até hoje. Os egos ficavam do lado de fora, até porque a gente não sabia o que era isso.

Na medida em que cada um foi lapidando seu talento e descobrindo suas vontades, as coisas foram ficando melhores e piores.

É bom acrescentar que, por trás disso tudo, éramos um bando de universitários, estudando pra seguir um outro tipo de carreira. Ao mesmo tempo, fazíamos parte de uma geração que queria mudar o mundo. Ou seja, vivíamos de sonhos, mas carregávamos as preocupações familiares da época. Os “velhos” apoiavam nossas iniciativas artísticas, mas alertavam para a necessidade de uma formação profissional mais segura. Ainda mais no RS, onde não havia nos anos 70 uma referência de artistas com uma carreira sólida.


Quico, Pery, Kledir, Kleiton, Gilnei.

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