Porto Alegre: uma biografia musical

Capítulo CI – Os Anos 70: Almôndegas (parte 6)

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Capítulo CI – Os Anos 70: Almôndegas (parte 6)

A chegada ao Rio de Janeiro se deu em 1º de Maio de 1977, dia do trabalho. E, se teve um tanto de peitaço, também teve um detalhe nada comum em histórias de bandas que vão tentar a vida na cidade grande. Ok, não eram uma banda iniciante. Mas, creiam, os rapazes de classe média eram tão mal-acostumados que foram embora “de casa” e… levaram uma empregada doméstica, a Noeli. 

Como ela e a gravadora Polygram bancando aluguel e alimentação dos seis meses iniciais ficava beeeem mais fácil a aventura.

Amontoaram-se num apartamento de dois quartos em frente à Lagoa Rodrigo de Freitas os cinco mais Noeli e um amigo do produtor Roberto Santana, que era quem gerenciava a grana que a Polygram depositava.

Kleiton:

Nossos planos iniciais eram tentar alguma coisa por lá durante esse período. Se não desse certo, voltaríamos. A banda ficou dois anos… Kledir e eu estamos aqui no Rio desde então (com dois intervalos meus fora do Rio).

A Noeli sobreviveu à passagem pela Serra da Maresia (estrada ainda em construção Santos-Rio de Janeiro) e ficou algum tempo por lá. Mas um dia avisou que ia de férias ao sul e nunca mais retornou à Cidade Maravilhosa…

Pelo menos, em poucos meses eles estavam enturmados com parte do melhor da MPB pré-estouro do BRock dos anos 1980. 

Mas não exatamente como músicos. 

Mais até graças a seu excelente equipamento de sonorização de shows, que tinham levado para o Rio – e havia sido feito sob encomenda pelo genial engenheiro de som gaúcho Egon Alsher, da Cotempo.

Era esse equipamento que eles levavam pra cima e pra baixo na sua Kombi batizada Gauchinha. Que, segundo Kleiton, “era todo o patrimônio do Almôndegas” e cuja aquisição fora a última missão do agora ex-produtor da banda, Nassif Nagig, que também não quis sair de Porto Alegre.

E é dessas locações que vinha a maior parte de seu sustento, já que o sucesso que tinham no Sul nunca chegou a sequer se esboçar no Rio. Daí o muito bem-vindo ganha-pão locando a sonorização ociosa pela ausência de shows. Eventualmente também operando a mesa, trabalhavam em shows de Edu Lobo a Boca Livre – passando até por Cartola.

Kleiton:

Era o eterno recomeço: “- Agora vai!!!”. Mas o Almôndegas, em relação a conquistar o país, só chutou na trave. Teve a Canção da Meia Noite na novela Saramandaia e alguns programas nacionais que se fez. Mas a banda não conseguiu a projeção que precisava para seguir.

Pelo menos tinham um disco novo prontinho pra ser gravado, preparado ainda com a formação anterior. Só que…

Kledir:

O melhor disco do Almôndegas teria sido o terceiro. Era um momento em que havíamos encontrando um equilíbrio interessante entre a espontaneidade inicial com a maturidade artística e técnica. Ficamos ensaiando na Cascata e fomos pro Rio com ele pronto.

Infelizmente foi desmantelado pela gravadora.

As gravações começaram em maio, agora para o selo Philips – o mesmo de Chico, Caetano, Bethânia, Jorge Ben, MPB-4 – com condições muito melhores de produção e sonoridade. O LP saiu em agosto. Mas muito diferente de como havia sido pensado.

Kleiton:

Estava redondo, perfeito na nossa visão almondiguífera. 

Quando chegamos no Rio de Janeiro, ficamos vulneráveis diante de tantas questões diferentes na vida de todos e, na hora de bater o martelo em relação ao que ia ser gravado, entraram então os “entendidos de tudo” da gravadora que interferiram de forma nefasta no material. 

Lembro bem que um dos argumentos apresentados era: “Vocês agora moram no Rio de Janeiro, não venham com esse negócio de falar de cavalos e de campo…”. 

Na verdade nossas músicas nem tinham uma relação pesada com as questões rurais, mas para eles ainda era demais. Resumindo: o grupo balançou (talvez ali tenha começado o fim do Almôndegas) e o repertório mudou.

Uma das grandes perdas foi a composição de Carlinhos Hartlieb: A Salamanca do Jarau, que ficou de fora. Foi triste quando o encontrei nas ruas do Bom Fim e tive que contar… Não sei se eu estava mais triste por mim ou por ele. 

Chegamos no Rio com repertório pronto. Não lembro que outras músicas caíram, mas essa foi sem dúvida uma das maiores perdas.

(…)

Quando gravamos esse disco (o pior da banda) chorei muito pelos corredores da gravadora Polygram, ali na Barra. Algo que deveria ser comemorado com alegria e júbilo, para mim, pelo menos em parte, significava o começo do fim.

Ironicamente, o LP que era pra se chamar Em Palpos de Aranha foi rebatizado como Alhos com Bugalhos. E abre com uma das três canções do novo integrante (e velho colaborador) Zé Flávio: um “rock rural” com toques regionais, no compasso ternário de 6/8. A canção é Em Palpos de Aranha, e tinha escrita para a banda de mesmo nome, que até pouco antes Zé liderava junto com Claudio Levitan.

Zé, em depoimento para a biografia de Kleiton & Kledir escrita por Emílio Pacheco:

Eu tenho dois lados. Tenho o meu alter-ego, que é o Thunder Lord, que é o caos, e tenho o Zé Flávio, que faz a musiquinha dos Almôndegas.

Dialogando com o violino meio rabeca de Kleiton, é uma das tantas músicas onde brilha o acordeom de ninguém menos que Sivuca, ainda que numa indisfarçável falta de intimidade com o sotaque gaúcho. Não chega a ser um problema, mas diz alguma coisa sobre a ingerência da gravadora nos resultados do disco. 

Também é notável o protagonismo ascendente do baixo de João, que também crescera muito como instrumentista.

A ela se segue a melancólica valsa No Meu Coração, letra e música cheias de sutilezas. Cantada com um sorriso por seu autor, Kledir, recebeu uma moldura de piano e cordas arranjadas pelo maestro gaúcho Paulo Dorfmann – mais o sempre criativo violão de 12 cordas de Zé Flávio e um discreto baixo de João Baptista. 


No Meu Coração

(Kledir Ramil)

Voar é com as borboletas

Que sabem como bem voar

E cada voo colorido

Borboleta setas no meu coração

Beijar é com os beija-flores

Que sabem como bem beijar

E cada beijo colorido

Beija-flora floras no meu coração

Cantar é com os passarinhos

Que sabem como bem cantar

E cada canto colorido

Passarinha ninhos no meu coração

E aí entra um xote clássico de Teixeirinha, Gaúcho de Passo Fundo, emoldurado pelo acordeom nada gauchesco de Sivuca – num arranjo que não só puxa pro rock como usa a introdução e a coda de Sombra Fresca e Rock no Quintal.

Segue-se outro 6/8 de Kledir, com certo ar de chamamé, arranjo de cordas do próprio Kledir, e falando de um de seus assuntos prediletos: astrologia. Aliás, é ele quem mais brilha no disco todo – como compositor, cantor, arranjador e até mesmo flautista.


Futurismo

(Kledir Ramil)

Voar é com os astros

Zodíaco

Com búzios, mãos e cartas

Horóscopo

E eu, navegador aquariano

Neste céu de previsões

Dias cheios de superstições

Um mar de desilusões e ambições

Zumbindo na cabeça

A voz de um futuro fatal

Largue minhas mãos, meiga cigana

Com olhos de jaguar

Largue minhas mãos de seus felinos

Saberes não farei

A paz

Cavalgando, a quinta música do Lado A, é a segunda de Zé Flávio no LP. Com uma levada próxima de Em Palpos de Aranha, mas mais “gaúcha”, fala de pampa, canha, coxilhas e por aí vamos – encerrando num clima épico em compasso quebrado de 5/8, mantendo por perto mais um latente chamamé. E com o violino de Kleiton novamente emulando uma rabeca:


Cavalgando

(Zé Flávio)

Cavalguei a noite inteira

Vez em quando descansando na coxilha

No pampa de ferro e fogo

O Cruzeiro indica o lugar certo

Longe do seu

Que devora quem apeia

Longe do seu

Que devora quem bobeia

Morte certa achado pra quem se perdeu

Morte certa achado pra quem se perdeu

Nesse lugar que não é o meu

Com certeza

Cavalguei a noite inteira

De gole em gole a canha foi me aquecendo

No pampa de ferro e fogo

O Cruzeiro indica o lugar certo

Longe do seu

Que devora quem apeia

Longe do seu

Que devora quem bobeia

Morte certa achado pra quem se perdeu

Morte certa achado pra quem se perdeu

Nesse lugar que não é o meu

Com certeza

Cavalgando eu venci mil quilômetros

E você, meu amor, nunca viu

Cavalgando eu venci mil quilômetros

E você, meu amor, nunca viu

E aí o Lado A fecha no mesmo clima em que fechara o Lado B do LP anterior: um Almôndegas quase Conjunto Farroupilha recriando o clássico regionalista Minha Carreta (das seis músicas do Lado A, cinco tem compassos ternários. Uma raridade na música brasileira).

O Lado B abre com as duas primeiras parcerias dos irmãos Kleiton & Kledir a aparecerem em disco. Primeiro, a inaugural Alhos com Bugalhos – que dá nome ao disco -, um “tunga-taca almondeguiano” onde brilha o baixo de João Baptista e o violão de 12 cordas de Zé Flávio.


Alhos com Bugalhos

(Kleiton Ramil / Kledir Ramil)

Quantos anos tem a sua cara?

Não confunda alhos com bugalhos

O sol nasce quente às seis da manhã

No meio do dia ele queima que dói

Ele queima que dói

Quantos olhos tem a sua cara?

Quanto mais me queimo mais me amarro

O amor nasce quente, acende a manhã

No meio do quarto ele queima que dói

Ele queima que dói

Quantas pregas tem a sua saia?

Não confunda alhos com bugalhos

A ela segue-se uma daquelas “milongas caribenhas” da banda, neste caso com certo sabor de tango: Feiticeira. Outra que tem toques esotéricos e astrológicos, num arranjo meio latino com uma melodia por vezes surpreendente. 

E então volta Zé Flávio, com um bolerão em portuñol ornamentado por trompete com surdina, bongôs, corinho e até um violão de 12 cordas emulando um três cubano.

Canção Americana

(Zé Flávio)

Quieta en la vieja ciudad

Una triste mujer de pelos glacê

Canción americana, quizás un bolero

Sincero usted

Mágica americana

Tumbadoras, sapatos lamê

Na porta do velho mercado

O sonho, a harpa guarani

Quieta na velha cidade

O táxi, semblante vazio,

Você vê a triste mulher

Anúncios, TV

Claro, quem não sabe

Buenos Aires ou talvez qualquer tom

Canción americana

Água e sal, sim senhor

Quieta y triste mañana

Com sabor de ti

Quieta em la vieja ciudad

Una triste mujer de pelos glacê

Canción americana, quizás um bolero

Sincero usted

Viva, quase nua

Suspiros da grande voz

Na fronteira, no cume

Cordilheiras, ciúme

Um pecado atroz, o céu

Veia de prata, el clarín

Você vê a triste mulher americana

Na mesa de um cabaré

Claro, quem não sabe

São Paulo ou São Salvador

Canción americana

Com sabor de depois

Atolada na lama

Mulher partida em dois

E então outro grande momento de Kledir. 

Num momento em que, consciente ou inconscientemente, vários artistas brasileiros começaram a compor fados (no caso dos conscientes, o mote era a Revolução dos Cravos, que em 1974 acabara com quatro duras décadas de ditadura em Portugal), a dupla Kledir e Fogaça repete o ímpeto politizado de canções como O Piquete do Caveira. Tudo enfeitado pelo violão de 12 de Zé Flávio, que agora se transforma numa quase perfeita guitarra portuguesa.


Há um Pouco do Meu Coração em Portugal

(Kledir Ramil/Fogaça)

Quem dera

Ai, quem me dera a inconstância

Ai, que me dera ser um pássaro

Num pouso breve em tuas mãos

Quem dera

Ai, quem me dera a fronte erguida

Ai, quem me dera a água límpida

O fogo e o sal da terra nua

Um pouco de ti nas vozes da manhã

Há um pouco de ti nos meus olhos

Nas brancas janelas que o tempo fechou

Quem dera morrer em Portugal

Quem dera

Ai, quem me dera o canto livre

Ai, quem me dera nunca esmorecer

E não calar meu coração

Quem dera

Ai, quem me dera a longa vida

Pra ver nascer do chão do meu país

Num céu de abril um cravo um dia

Um pouco de ti nas sombras de mim

Há um pouco de ti nos meus passos

Nas pobres mulheres, nos barcos ao mar

Quem dera morrer em Portugal

Encerrando o disco, Ri do Rock, mais uma típica canção de Zé Flavio, só que composta por… Kledir, em homenagem aos tempos de baile de João Baptista, que é quem a canta. O arranjo, curiosamente, tem a cara das recriações de hits elétricos pelos Acústicos MTV dos anos 90 e 00, com solo de violino e tudo.

E aí praticamente um P.S., um bônus: a regravação em estúdio de Piquete do Caveira. Que, comparada ao registro anterior, ao vivo, é o que se poderia chamar de “versão turbo”.

Os shows de lançamento foram de quatro a sete de agosto numa temporada de quinta a domingo no Teatro da Galeria no Rio. Que começaram com pouco público para lotarem no sábado e domingo. Bom sinal.

Repetiram a dose em Porto Alegre, no Leopoldina, de 15 a 18 de setembro. Casa lotada, claro. Como foram lotadas as plateias das outras cidades por que passaram: Santa Maria, Bagé, Rio Grande e, pra culminar, Pelotas. Teatro Guarany cheio, com direito a canja de Quico cantando Vento Negro

Encerraram o ano novamente no Rio, de quinta a domingo, em dezembro, dividindo com Paulinho Nogueira a temporada no Projeto Seis e Meia do Teatro João Caetano.

A coisa tava indo bem.

Gilnei, Kledir, João, Zé, Kleiton: até foto feita pelo Miguel Rio Branco eles tinham.

Arthur de Faria nasceu no ano que não terminou, é compositor de profissão (20 álbuns e EPs) e doutor em Lupicínio pelas Letras da Ufrgs. Publicou Elis, uma biografia musical (arquipélago, 2015) e tá no prelo Porto Alegre, uma biografia musical, Volume 1, reunindo as primeiras colunas publicadas aqui.

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