Arthur de Faria | Porto Alegre: uma biografia musical

Capítulo XLVII

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Capítulo XLVII

Outro ícone dessa era foi Plauto Cruz. 

Flauto da Plauta nasceu Plauto de Almeida Cruz, em São Jerônimo (57 km a oeste de Porto Alegre), no dia 15 de novembro de 1929. Filho de um flautista de cinema mudo, com oito anos já queria aprender o instrumento do pai, mas o velho era contra, com medo de que o filho caísse na boemia. Não adiantou: com 14 anos já era atração num conjunto carnavalesco da cidade, tocando uma flautinha feita de taquara.  

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Outro ícone dessa era foi Plauto Cruz. 

Flauto da Plauta nasceu Plauto de Almeida Cruz, em São Jerônimo (57 km a oeste de Porto Alegre), no dia 15 de novembro de 1929. Filho de um flautista de cinema mudo, com oito anos já queria aprender o instrumento do pai, mas o velho era contra, com medo de que o filho caísse na boemia. Não adiantou: com 14 anos já era atração num conjunto carnavalesco da cidade, tocando uma flautinha feita de taquara.  

Eu sei que eu repito isso o tempo todo, mas é impressionante a quantidade de músicos mirins dessa geração dos primeiros 30 anos do século XX: Radamés, Paulo Coelho, Octavio Dutra, Marino dos Santos, Lupicínio, Dante Santoro… todos esses e muitos mais já faziam música “profissionalmente” antes dos 15 anos de idade.  

O fato é que, quando viu o guri fazendo miséria numa flautinha de taquara, o pai se rendeu e lhe deu uma flauta de verdade, de ébano. Pouco depois, a família mudou-se para Porto Alegre, e logo Plauto estava impressionando o pessoal da capital. Ao mesmo tempo em que começava a estudar teoria musical, aproveitando o fato raro de ter um ouvido absoluto (uma aptidão que faz com que uma pessoa, seja ela musicista ou não, consiga identificar qualquer nota tocada – na história da música de Porto Alegre lembro de duas pessoas: Plauto e Elis Regina).

Só que ser tão jovem também tinha o lado de dar problema. E o juizado de menores cortou o barato do guri flautista “de menor”. Acabou que a família voltou para São Jerônimo. Lá, sem fiscalização, voltou aos bailes. De dia, trabalhava numa fábrica de facas.  

Pra alguma coisa serviu: em 1949, 20 anos, volta a tentar a sorte na Capital. E, graças a sua experiência na fábrica, arruma emprego de chapeador num estaleiro. Ainda bem, porque demorou três anos para conseguir a primeira oportunidade musical: uma canja na Rádio Itaí. 

Estamos em 1952, e Plauto é imediatamente contratado. O óbvio convite da muito mais poderosa Rádio Farroupilha chega em 1956. Ele vai então integrar o regional da emissora, recém-desfalcado do sopro de Alcides Macedo, que fora contratado pelo maestro alemão Karl Faust para a orquestra que estava montando na Rádio Gaúcha. 

Com o regional (flauta, cavaquinho, dois violões, pandeiro, contrabaixo e acordeom), acompanha deus-e-todo-mundo. E desponta como uma versão local de um de seus maiores ídolos, Dante Santoro, o gaúcho flautista do Regional Master Plus do Brasil, o da Rádio Nacional do Rio de Janeiro. A lista de artistas ornamentados ao vivo na rádio pelos meneios de sua flauta vão da menina Elis Regina (no programa infantil O Clube do Guri) até o veteraníssimo Vicente Celestino, em visita a Porto Alegre. 

Em 1961 é a vez dele, Plauto, ir pra Gaúcha. Vai integra o Regional do Paraná, que tinha uma formação bem particular: Plauto na flauta, Nadir ‘Cachorrão’ no trombone, Paraná no violão-tenor, Almirante no violão e Azeitona de ritmista. Paralelamente ataca – tocando basicamente flautim – na curiosa e divertida Banda dos Carijós, liderada pelo clarinetista Hardy Vedana (Erechim, 13/06/1928 – Porto Alegre, 15/06/2009). O clima é de bandinha de coreto do começo do século XX, interpretando maxixes, dobrados e outras (já então) velharias. A bandinha foi criada para tocar na rua da Praia, patrocinada pelos comerciantes do seu entorno. E aí, quando lança seu segundo disco, em 1962, tem uma ideia inédita: tocar na boleia de um caminhão que circulava pela capital. Ou seja: um trio elétrico acústico! 

(Começava ali a sanha passadista de Vedana, que, além de ter sido um importantíssimo pesquisador da música de Porto Alegre, com vários livros lançados, montou nos anos 1980 uma espécie de versão jazz dos Carijós: a Hardy Vedana and his Subtropical Jazz Band.) 

O impecável primeiro LP de Plauto 

Lá pelo meio dos anos 1960 a carreira de Plauto tem o mesmo destino de todos seus colegas de geração. Sim, você vai ler de novo: com as rádios em decadência, o lance é migrar para as boates, que logo também entram em crise com as mudanças de costumes ao longo da década de 1970.  

O jeito é arrumar emprego de empacotador da loja Imcosul. Chega a tentar a vida em Curitiba e em São Vicente, no litoral de São Paulo, onde vai tocar num regional com Jessé Silva e Pery Cunha. Volta pra Porto Alegre e começa o circuito noturno que vai seguir pelos próximos 40 anos: bares, restaurantes e churrascarias. Eventualmente, aparições nacionais, como nos festivais de choro Brasileirinho, promovidos pela Rede Bandeirantes em 1977 e 78, aqueles mesmos onde brilhou Jessé SilvaOu o Festival da Tupi, de 1979, onde nasceu a dupla Kleiton & Kledir, cantando uma Maria Fumaça iluminada por Plauto desde a inesquecível frase de introdução. Ainda nos festivais, foi destaque em duas Califórnias da Canção Gaúcha: a de 1974, em Canto De Morte de Gaudêncio Sete Luas, e a de 75, com Cordas de Espinho. Ambas, canções da dupla Marco Aurélio Vasconcelos e Luiz Coronel, e ambas lhe garantindo o prêmio de Melhor Instrumentista no mais importante festival de música regional gaúcha. 

Reconhecido por muitos como um dos maiores flautistas de choro, sofreu a sina de nunca ter saído de Porto Alegre. Aí, em vez de ter, sei lá, 30 discos gravados, foram apenas dois LPs e dois CDs. O primeiro é de 1977. Foi gravado na Isaec, se chama O Choro é Livre, e é não só a estreia solo de Plauto, como de boa parte de sua turma de chorões já então cinquentões. 

Se teve poucos discos seus, perdeu a conta dos prêmios e das horas em estúdio: está em cerca de 40 discos de outros artistas, gente que vai de Orlando Silva a Nelson Coelho de Castro, de Jessé Silva a seu amigo e colega em virtuose chorona Altamiro Carrilho. 

Morreu em 2017, aos 87 anos. Completou 70 anos de carreira em 2014 e tocou até quase o fim da vida. 


Outros grandes instrumentistas/compositores dessa geração, hoje totalmente esquecidos, foram o saxofonista Breno Baldo e o clarinetista Marcelino Corrêa. 

Baldo era um dos principais solistas da orquestra da Rádio Farroupilha nos anos 1950 e, na década seguinte, liderou alguns grupos pequenos, sempre com seu nome à frente. 

E tem uma historinha muito bonitinha envolvendo sua pessoa e seu instrumento. Durante muito tempo seu sax era uma das maiores atrações da orquestra. Não, não era ele que se destacava. Era seu sax mesmo: todo remendado com cordinhas e pedaços de arame, cujo milagre era soar afinado. E soava… Como Breno não ganhava muito dinheiro nem tinha grana de família, nunca pôde arrumar o instrumento nem comprar outro melhor. Até que teve de fazer uma operação de emergência e, na volta às atividades, recebeu de presente seu velho saxofone… totalmente reformado! Quem pagou foi uma vaquinha dos 45 músicos e quatro maestros da rádio, e o resultado é que o cara levou um mês para conseguir tocar aquele instrumento tão perfeito. Estava acostumado às imperfeições. Acontece. 

Já o compositor Marcelino Corrêa é um segredo guardado a sete chaves por alguns dos antigos chorões de Porto Alegre, sempre citado pelo amigo Hardy Vedana. Nascido em Santa Vitória do Palmar (500 quilômetros ao sul de Porto Alegre) em seis de abril de 1900, aos 18 anos se alistou no exército, em Jaguarão, sendo logo transferido para Juiz de Fora, em Minas Gerais.  

Lá, virou músico só para ter melhores condições na tropa. Primeiro aprendeu clarinete e, anos depois, sax alto. Estabeleceu-se em Belo Horizonte mas, acometido da infalível saudade do pago, voltou para o sul em 1934, estabelecendo-se na capital. 

A partir daí, chega a atuar profissionalmente até pelo menos 1949. Mas o que gostava mesmo era das infinitas rodas-de-choro com canjas de alguns dos músicos mais importantes da cidade, a quem impressionava com suas elaboradas e muitas vezes estranhas composições. Em alguns casos, elas chegavam a mudar alucinadamente de tom, derrubando qualquer músico desavisado.  

Marcelino nunca fez sucesso, nunca foi muito conhecido, mas impressiona a todos que conheçam essas composições, e isso tem acontecido entre chorões de Porto Alegre, do Rio e de Brasília. Vedana, que tinha um acervo de 80 composições de Marcelino, é o responsável por uma das raras gravações de alguma música sua: a valsa Horizontina, que está num LP da Bandinha dos Carijós. As outras estão na coleção Choro Carioca, Música do Brasil, lançada em 2002, com grandes nomes como Nailor Proveta (clarinete) e Toninho Carrasqueira (flauta) tocando seus temas. O clarinetista morreu em nove de outubro de 1986, compondo ininterruptamente até os 80 anos de idade músicas que dificilmente alguém iria tocar. Já doente, sua penúltima composição foi um choro chamado, ironicamente, Breve Fechará.


Até agora, falamos de músicos que chegaram a se estabelecer com algum renome. Mas também há o outro lado. Dos anos 1930 até os 1950, instrumentista que quisesse entrar na vida artística da capital – principalmente se viesse do interior –, tinha de, quase invariavelmente, pagar um pedágio: os cafés do Mercado Público.  

Era à volta das mesas de mármore de estabelecimentos como o Java e o Naval que conjuntos improvisados na hora sabatinavam os novatos. O processo era uma seleção natural quase darwiniana: sempre que chegava alguém novo, chamavam pra roda. E davam um jeito de puxar o tapete do sujeito. Se ele escapasse de errar feio, tinha alguma chance. “Tinha muito banditismo…”, lembrava em 1999 José Barreto Baptista, o Zezinho da Bateria da Orquestra de Karl Faust. Que, nos anos 1940, guri de Osório tentando a vida na capital com um pandeiro debaixo do braço, passou por essa sabatinada. 

Das três da tarde às nove da noite, aquilo parecia um show de variedades. Tinha de tudo, com os músicos passando o pires ao final de cada apresentação e conseguindo pelo menos garantir a janta. Com sorte, o pagamento da pensão. A coisa durou até 1953, quando o último pires foi passado – pelo cantor e acordeonista Marino Coronel. 

Se fossem aprovados nesse teste inicial, os aspirantes podiam até conseguir uma vaga nas rádios da cidade.  

Foi assim que apareceram figuras importantes como o notável arranjador e multi-instrumentista Alcides Macedo, o futuro Maestro Macedinho. 


Macedinho nasceu dia 29 de agosto de 1916 em Tupanciretã, 389 km a noroeste de Porto Alegre e que na época pertencia a Cruz Alta. Seu pai era músico do exército e mestre da bandinha da União Operária local. 

Com 16 anos Alcides Macedo alterou sua idade para 18, que era o jeito de poder entrar na banda do exército. Terminado o serviço militar, foi admitido na banda da Brigada Militar de Porto Alegre, onde logo seria aprovado no concurso para Mestre de Banda. Ali ficaria por 21 anos. 

Estávamos na década de 1930, em Porto Alegre. Daí quem ele foi procurar pra ver se enturmava com os músicos da cidade? Adivinhou: o onipresente Octavio Dutra. Octavio o introduziu na roda do Café Gaúcho, uma das mais prestigiosas do Mercado. A partir daí, o tupanciretanense conciliou o posto de Mestre da Banda da Brigada com o trabalho como instrumentista em bailes e cabarés. O que não era difícil de conseguir, afinal tocava piano, violão, cavaquinho, bandolim, violino, trompete, trombone, trompa, bombardino, clarinete e todos os saxofones. 

Em 1945, aos 29 anos, assina contrato como diretor do Regional da Rádio Farroupilha – que contava com feras como Arthur Elsner no acordeom e Antoninho Maciel no violão. Sairia dali no final da década de 1950, para integrar, com destaque, a Orquestra de Karl Faust, na Rádio Gaúcha. Paralelo ao seu trabalho na orquestra, era o diretor musical da emissora. Até 1965, quando o departamento musical da Rádio Gaúcha foi fechado e todos os seus músicos demitidos. 

Passa a defender algum em bailes com a orquestra Alcides Macedo Show, que chega a excursionar a Buenos Aires e Montevidéu.  

Com o fim também das orquestras, só terá nova chance em 1977, quando é convidado para ser maestro da Banda Municipal de Porto Alegre. Um projeto do vereador Larry Pinto de Faria tinha feito renascer a lendária formação, no ano anterior. Ao contrário da Banda Municipal anterior, desta vez o foco era música popular.  

Ali, Macedinho vai reger o Mestre Lua do trompete, Lola na tuba, Natalício na bateria e muitos dos melhores músicos de sua geração, esquecidos, na terceira idade, e fazendo miséria. Para a banda, escreveu grande parte de seus melhores arranjos e músicas, que seguiram sendo tocados por um bom tempo depois dele aposentar-se.  

Músicas nos mais variados ritmos, escritas com brilho, conhecimento de causa e originalidade.  

Quando o músico e produtor Carlos Branco assumiu a coordenadoria da Secretaria de Música da Prefeitura de Porto Alegre, em 1989, a banda ganhou uma atenção muito especial. E um dos resultados foi seu primeiro disco que, por decisão de Branco, foi todo feito com composições de Macedinho, que felizmente teve, assim, algo da sua obra registrada. 

Em 1992 teve de aposentar-se por lei. Mas seguiu perto da Banda pelo menos até gravarem e lançarem o LP, em 1993. 

Os shows de lançamento foram sua última grande alegria. 

Sem música, Macedinho foi morrendo aos poucos. Até seis de outubro de 1995. 

Primeira formação da banda, em 1927
LP da Banda já coroa, com quase 70 anos de idade 

Surgida em 1926 por ordem do intendente Otávio Rocha, a Banda Municipal de Porto Alegre teve como primeiro maestro o italiano José Leonardi, formado pelo Real Conservatorio di Palermo e importado especificamente para isso. O primeiro time de músicos, selecionado por concurso, veio de todo o Brasil, de Buenos Aires e até da Itália. As partituras também foram todas importadas da terra de Leonardi. Tocavam apenas música erudita. 

A formação inicial, de Banda Sinfônica com 60 músicos, era composta por sopros, percussão, violoncelos e contrabaixo. O concerto de estreia foi no Theatro São Pedro, dia 13 de junho de 1926. No repertório, Mozart, Wagner, Schubert, Carlos Gomes. Seus concertos frequentes no auditório Araújo Vianna, que era então na praça da Matriz, no local onde hoje se ergue a Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, eram programa obrigatório na cidade.  

Araújo Vianna, na praça da Matriz

Nos anos 1950, a Banda acabou esvaziada com a criação da OSPA, Orquestra Sinfônica de Porto Alegre, e encerrou as atividades em 1957 para renascer do jeito que acabamos de ver.


Arthur de Faria nasceu no ano que não terminou, é compositor de profissão (15 discos, meia centena de trilhas) e doutorando em literatura brasileira na UFRGS por puro amor desinteressado. Publicou Elis, uma biografia musical (Arquipélago, 2015).

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