Arthur de Faria | Porto Alegre: uma biografia musical

Dante Santoro, o Canário Rio-Grandense

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Dante Santoro, o Canário Rio-Grandense

Nascido em Porto Alegre dia 18 de junho de 1904, Dante Italino Santoro era filho de um casal de imigrantes italianos da Calábria: Pasquale Santoro e Rosa Marsiglia Santoro. Pasquale era músico amador, e Dante e seus quatro irmãos cresceram ouvindo Rosa cantar pela casa.  

Tinha 10 anos quando a primeira flauta caiu em suas mãos. Não precisou muito para que a família visse (e ouvisse) que o guri tinha talento. Primeira atitude: botá-lo pra estudar com o melhor professor disponível na cidade. Se você leu os capítulos anteriores, já deduziu: sim, Octavio Dutra. 

Com Octavio, Dante aprendeu teoria. Flauta, ninguém sabe com quem. Ok, já falamos nisso, e voltaremos a falar: a quantidade de talentos dessa geração que desabrochou ainda muito jovem é impressionante. Com este menino-prodígio não foi diferente. Logo, como fazia com seus discípulos preferidos, Dutra logo lhe tascou um apelido: Pato

E aí começam as lendas: reza uma delas que, em 1919, aos 15 anos, Dante já estaria no Rio de Janeiro, formado em flauta pelo Conservatório de Belas Artes de Porto Alegre. O problema é que o curso de flauta do Conservatório só foi criado justamente em 1919, e não há qualquer registro de sua presença nos livros de matrícula da instituição. 

Também tem quem afirme que Dante foi para a capital federal convidado pelo cavaquinista e comediante gaúcho Ary Valdez, o Tatuzinho. Isso tampouco é verdade: em 1919, Ary tinha 13 anos, o que torna a ideia ligeiramente inviável.  

A outra estória que se conta é de que o plano de Dante era embarcar com seu grupo para os Estados Unidos ou Europa, para tentar carreira ali. Segundo já foi publicado até em livro, eles eram Dante, o também flautista Bento Gonçalves (que tal o nome?), o violonista Manuel Lima e o cantor Didi Carioca. Um acidente automobilístico teria matado a todos (menos Dante, é claro, senão não existiria este capítulo). Literalmente desconcertado, só teria restado ao garoto voltar para sua terra.  

Guardem essa história. Por enquanto, estória. 

Fatos concretos: em 1920, aos 16 anos, Dante é um dos fundadores do Centro Musical Porto-Alegrense, a primeira tentativa de organizar os músicos da cidade. Entre 1921 e 22, é figura de destaque do grupo musical e bloco carnavalesco Os Batutas, dirigido por Octavio Dutra. Aos 17 anos já ganhara muitos admiradores e um novo apelido: o Canário Rio-Grandense.  

Oscilava entre o repertório erudito e popular, e se virava como podia. Até serenatas pagas no interior do estado o pessoal fazia pra ganhar algum. Uma delas descrita pelo escritor (e, facilmente deduzível no estilo, advogado) Dante de Laytano, no seu livro Mar Absoluto das Memórias

Estava eu promotor público no Rio Pardo. (…) Achei que devia trazer, a Rio Pardo, Dante Santoro. E veio. Era uma serenata. Ia dar eu uma serenata. A noite de música é uma inundação poética na berceuse de cada um. (…) Dante Santoro veio para minha casa. A serenata estava preparada. Silêncio de outono de estrelas contentes. Ilha, que ia ser minha esposa, seria a vítima lírica do cancioneiro da madrugada bela, belíssima. (…) Lá fomos, eu e amigos e Dante Santoro. Conhecia todos os grupos de artistas de Porto Alegre, com eles convivia, fazia programa…(…) A serenata compensou os árduos problemas da matéria. Mozart era ouvido sem Viena perto mas na quietude divinatória da admiração incondicional. Nisso, Vivaldi se esgueira feliz por surgir lépido. O terceiro número então foram as lágrimas de Chopin no solo do campo santo de Paris independente de George Sand malvada, violenta e de amor volúvel. O polonês francês é sempre um gênio do romantismo musical.  

Dante Santoro regressou logo para Porto Alegre, no trem da manhã seguinte. 

Ninguém dormiu. 

Também tocava na Rádio Gaúcha, cujo diretor musical era Octavio, e onde mais o chamassem. Mas nada de muito emocionante lhe aconteceu nos eufóricos Anos 20. É em 1931 que se tem os últimos registros seus em terras gaúchas: como atração de um espetáculo musical em homenagem a Octavio Dutra; na programação da Sala Beethoven, dedicada à música erudita, onde dá dois concertos, em meses diferentes; e em uma carta escrita por Dutra, na qual ele oferece ao empresário carioca José Gagliardi seus préstimos em duo com Dante, para gravações no Rio de Janeiro – o que, lamentavelmente, não aconteceu.  

Devo-lhe dizer que disponho de um conjunto musical typico de primeira ordem, (…). O meu flautista, professor Dante Santoro, cognominado o “Canário Rio-Grandense” é, sem favor, o maior desse estado e quiçá do Brazil. Convinha, pois, que a sua fábrica de discos não perdesse tão valoroso elemento. Porém a ida do conjunto a essa capital seria um tanto dispendiosa para o senhor, por isso lembro-lhe o seguinte: um contrato só para mim e Dante, reduzindo muito, deste modo, a quantia que deveria o senhor dispender com a presença ahi do conjunto completo. (…) Eu e Dante iremos para ahi com o ordenado mensal de dois contos e quatrocentos mil réis (os dois) com as respectivas passagens de ida e volta e com contracto mínimo de seis mezes, com prorrogação dependendo a mesma de ajuste entre nós. Com respeito a nossas obrigações, cumpre-me dizer-lhe que serão as seguintes: gravar as minhas músicas uma vez adquiridas, por compra, pelo senhor, como também gravar as de outros autores, do mesmo gênero, quando isto for determinado e mais alguma cousa que será combinada ahi. 

Há quem afirme que Dante morava no Rio de Janeiro desde 1928. Nesse caso, teria voltado em 1931, pra fazer tudo o que há no parágrafo anterior. Pode ser. Afinal, em 1934, quando certamente já morava na Capital Federal, ele é atração em um concerto em Caxias do Sul, na serra gaúcha.  

A confusão relativa a 1928 certamente vem de notas do jornal A Noite, de abril e julho deste ano, dando conta de apresentações do grupo Os Bohemios Brasileiros no Beira-Mar Cassino (com Dante tocando músicas suas, de Octávio e de outros). Também há registro de aparições suas na Rádio Sociedade do Rio de Janeiro, onde apresentou-se algumas vezes – tudo isso ao lado do também gaúcho Pery Cunha na bandola. Possivelmente eram idas e vindas entre Rio e Porto Alegre, antes de estabelecer-se definitivamente na Capital, em 1933.  

Também é fato controverso que, uma vez no Rio, se dedicasse a aperfeiçoar sua já elogiada técnica na Escola Nacional de Música, com Agenor Bens – o maior flautista brasileiro de todos os tempos, segundo o compositor Guerra-Peixe. O fato, registrado em páginas reais e virtuais, não tem qualquer confirmação registrada. Larena Franco de Araújo, em seu doutorado sobre Dante, revirou arquivos da Escola e não achou nada. Mas não descarta a possibilidade dele ter estudado com Agenor no Conservatório de Música do Distrito Federal, que não tem registros dessa época arquivados. Ou mesmo em aulas particulares. 

Voltemos aos fatos: 

Aos 29 anos, Dante está no Rio de Janeiro. Era o momento da explosão do rádio no Brasil, e a novidade seria o destino natural dos melhores músicos, quer por curiosidade, quer pela possibilidade de ganhar algum dinheiro. Dante começa a atuar, esporadicamente, em várias emissoras: Cajuti, Philips, Rádio Club – onde chega a ter seu próprio programa -, Rádio Sociedade Guanabara, Rádio Educadora. Mas sempre com cachê, nunca contratado. 

Só vai conquistar os seus primeiros direitos trabalhistas dia primeiro de setembro de 1936. Aos 32 anos, entrava como funcionário em uma emissora que era inaugurada naquele dia: a Rádio Nacional do Rio de Janeiro. 

Em quatro anos ela seria encampada pelo Governo Federal e se transformaria num fenômeno de popularidade sem precedentes.  

Santoro seria, portanto, do time de fundadores da poderosíssima emissora – ao lado do também porto-alegrense filho de italianos Radamés Gnattali, que, a essa altura, também estava no Rio. O que não o impediria de seguir apresentando-se eventualmente em outras emissoras, além de cassinos e teatros de revista. 

Bom. 

Lembra da história do acidente que matou a banda do rapazinho de 15 anos?  

Pois então. O acidente aconteceu de verdade. Só que em março de 1935. 

A tragédia ficou célebre da imprensa carioca, batizada de O Desastre de Cruzeiro. Estavam no automóvel aquele elenco lá descrito, de forma equivocada, 15 anos antes: Dante, o violonista Manoel Lima, o cavaquinista Ary Tatuzinho Valdez, Didi Carioca (que não era cantor, mas pandeirista) e o tal Bento Gonçalves (que não era nem flautista nem gaúcho, mas sim locutor e carioca). 

Eles voltavam de (ou estavam indo para) uma apresentação EM São Paulo. Seu automóvel despencou de uma ribanceira direto no Rio Paraíba e só sobreviveram Dante, Tatuzinho e o motorista. 

* * * 

Voltando à Nacional. 

Além de ser um dos flautistas da orquestra sinfônica da rádio (sim, a emissora tinha uma ORQUESTRA SINFÔNICA), Dante assumiria em 1938 o posto de diretor musical do conjunto regional da Nacional – que se chamaria, a partir de então, Regional do Dante Santoro. Isso não era pouca coisa. Ainda mais, na rádio que se tornou, a partir dos anos 1940 (olha a maravilha do slogan!), o Himalaia dos Índices de Audiência. Ninguém batia a Nacional. E a formação liderada por Dante era a que mais trabalhava, acompanhando Deus e todo mundo. Entre outros motivos, pela praticidade. Afinal, era só o solista chegar e tocar – ou cantar: não precisava de um arranjo previamente escrito, como acontecia com as formações instrumentais maiores.  

quem eram esses solistas? Foquemos, por exemplo, no departamento de cantores. Entre tantos outros, a Nacional tinha sob contrato nada menos que Francisco Alves, Sílvio Caldas e Orlando Silva. Os três maiores de seu tempo. Todos fregueses assíduos de Dante e seu regional. É quando o Canário Rio-grandense muda pela terceira vez de apelido: vira o Bico de Ouro.  

E dá pra imaginar que o grupo que liderava teria outros grandes músicos, né? Pois por 30 anos, Dante teve a seu lado o violonista (e avançadíssimo compositor) Valzinho. O jovem Dominguinhos tocou acordeom no grupo algum tempo. E outro que passou décadas a seu lado foi o lendário Jorginho do Pandeiro. Fundador da linguagem moderna do instrumento, mais tarde Jorginho faria fama no conjunto Época de Ouro, o regional all star de Jacob do Bandolim. 

E é ele que dá uma ideia do ritmo de trabalho de Dante, num depoimento a Larena de Araújo, na própria sede da Nacional, em 2011: 

Eu quando vim pra cá (para a Nacional), em 1948, vim convidado por Dante (…). Dante quis trazer mais músicos para o regional, porque a rádio tinha muito trabalho, de dia e de noite, então um conjunto só não conseguia fazer toda a programação. O grupo naquela ocasião tinha quatro violões e só um cavaquinho, então eles convidaram o Lino (irmão de Jorginho, cavaquinista) e eu para revezar com o Valdemar Melo e o Favier.  

Então eu trabalhava de manhã e o Favier de noite. O Dante trabalhava de manhã e de noite, fazia desde as nove ou dez da manhã até as três da tarde, que acabava com A Hora do Pato, e depois voltava às seis da tarde para fazer a programação da noite. Aí ele já vinha com o outro conjunto.  

Dia de domingo eu chegava aqui às nove da manhã e fazia um programa de gaitas. (…)Depois, às 11, começava a programação. Aí a gente ficava, porque nós não fazíamos só A Hora do Pato, fazíamos os artistas que estivessem. A orquestra trabalhava até mais do que nós, mas o regional tinha que estar presente. Nós saíamos às três da tarde e aquele pessoal da parte do dia ia pra casa.  

(A Hora do Pato era um programa de calouros de grande audiência.)  

Foram 33 anos de Nacional e 30 de Regional Dante Santoro, o consagrando como um dos maiores flautistas do País. Para muitos, os caras eram ele e Benedito Lacerda. Depois, vinha o resto. 

Capas de LP – Reprodução


Arthur de Faria nasceu no ano que não terminou, é compositor de profissão (15 discos, meia centena de trilhas) e doutorando em literatura brasileira na UFRGS por puro amor desinteressado. Publicou Elis, uma biografia musical (Arquipélago, 2015).

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