Porto Alegre: uma biografia musical

Capítulo XCIV – Os Anos 70

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Capítulo XCIV – Os Anos 70 Porto Alegre, alto do morro das TVs, 1970

Quando começam os anos 1970, a situação é das mais esquisitas. No Mundo, no Brasil, e – por que seria diferente? – na música popular de Porto Alegre.

Jimi Hendrix e Janis Joplin morrem – com os mesmos 27 de Brian Jones, ex-Stones, falecido no ano anterior. Jim Morrison iria no ano seguinte, com a mesma idade. O sonho tinha acabado.

O Brasil entrara 1970 com uma expectativa de vida de 54 anos e 92,7 milhões de habitantes (56% vivendo em cidades, 30% analfabetos). No Rio Grande do Sul habitavam 6,7 milhões. Em Porto Alegre, 885 mil.

Mesmo que a TV tenha sido o principal fator de mudança dos costumes e da música brasileira a partir do final dos anos 60, em 1970 apenas 24% dos lares brasileiros tinham o aparelho. Mas o Rio Grande do Sul é o estado onde mais se comercializam televisores. Já são 350 mil, 65% deles em Porto Alegre.

Neles se viu que a Copa do Mundo era nossa, tricampeões no México. Enquanto isso, o Senado aprovara o decreto-lei da censura prévia e a ditadura entrava em seu momento mais sangrento, sob o governo Médici desde outubro de 1969. São tempos de Pra Frente, Brasil, 90 Milhões em Ação, Milagre Econômico, Transamazônica, adesivos nos carros: Ninguém segura este País e Brasil, ame-o ou deixe-o

São tempos em que os jovens e os jovens adultos tinham três opções possíveis frente à barra que pesava dia a dia. 1) Tentavam (e era até fácil) não ver o que estava acontecendo. 2) Partiam para o enfrentamento – que podia ir das letras ‘engajadas’ à guerrilha. 3) Se entupiam de drogas pra tentar entrar num outro mundo paralelo, mais feliz que esse.

Em cada uma dessas possibilidades muitos perderam irremediavelmente, se não a vida, ao menos a alma. Outros adiaram sua entrada na ‘vida real’ por anos ou até mesmo décadas. E foi nesse quadro que um ‘mercado musical’ acabou sendo algo tão distante e impensável na Porto Alegre desses anos que acabou gerando uma ideia de que esse começo dos anos 70 teriam sido anos perdidos. O que, é claro, é falso. 

Mas era preciso ter um tanto de herói para pensar em coisas tão abstratas como uma carreira musical. Shows eram poucos, gravações, inexistentes – a não ser para os raros sortudos talentosos que conseguiam algum contrato com gravadoras do centro e iam pra lá gravar. As rádios, inatingíveis, e os clubes, contratando apenas bandas de baile. Pra completar, uma noite imersa na velha-guarda. Ao mesmo tempo, não havia ainda uma nova estrutura que permitisse uma continuidade de shows em teatro, ou mesmo um circuito de casas noturnas – ainda restritas à boêmia velha-guarda. 

Que, nessa época, vinda do final dos anos 60, tem como ponto central o Adelaide´s, na Marechal Floriano, entre a Duque e a Jerônimo Coelho. Sua proprietária, a bela e misteriosa Adelaide, ganhou até música de Lupicínio (Dona de Bar). E foi ele que trouxe sua turma, que seguiu ali até depois de sua morte, até o bar fechar: Darcy Alves, Jessé Silva, Mário Barros, Azeitona, Marino dos Santos, Alcides Gonçalves, Plauto Cruz, Túlio Piva, Lúcio do Cavaquinho, Demosthenes Gonzalez, Hamilton Chaves, mais jornalistas como Paulo Sant´anna e Kenny Braga. Ou seja: toda a turma. Chegou um momento que precisava organizar o pequeno espaço com mais músicos por metro quadrado da cidade. Professor Darcy foi nomeado “diretor artístico”. 

Com o grande sucesso e o pequeno espaço, ela acabou abrindo, em 1971, outro bar e restaurante: o Chão de Estrelas (José do Patrocínio, 908). Novamente Darcy na direção. Por ali passaram todos esses aí de cima, mais Nelson Gonçalves, Sílvio Caldas, Ângela Maria e até jovens sambistas como Clara Nunes e Beth Carvalho. Em 1978 Adelaide inaugurou sua última casa do gênero, o Clube da Saudade, na Aureliano de Figueiredo Pinto quase esquina com a Praça Garibaldi. Só fechou em 1989, com a aposentadoria da dona. 

No outro extremo, amadurecia uma geração surgida, ainda muito jovem, na década anterior. Mas que sofria tanto o clima opressivo da ditadura quanto a ressaca mundial pós-Woodstock. Tempos de bicho-grilagem total, de falta de perspectivas, de tardes trancados no quarto fumando um – quando tinha! – ouvindo Hendrix e Pink Floyd (que o pessoal, na intimidade, chamava de Piiiiiiink).

A Galeria Malcon ainda era o ponto dos “roqueiros”, mesmo antes da inauguração das lojas Gang e Saco & Cuecão, que capitalizarão a rebeldia de classe média. Já o pessoal mais cabeça e, principalmente, mais politizado, se reunia na avenida Osvaldo Aranha, quase em frente à UFRGS: a Esquina Maldita – bar Alaska à frente. Enquanto isso, acontece o fim dos bondes, a inauguração do viaduto Loureiro da Silva e a abertura do Centro Comercial João Pessoa, o primeiro “shopping” da capital.

Ou seja: para todas as paredes, havia janelas. E elas começam a se abrir em 1971, com uma sucessão de eventos. 

Começou com o I Musipuc, festival já em clima de década de 1970, promovido pelo Centro Acadêmico São Tomás de Aquino, da faculdade de Filosofia e Letras da PUC-RS. A canção vencedora é E Viva Fernando Pessoa, de Fernando Ribeiro e seus parceiros Arnaldo Sisson e Paulinho Buffara. Mas também despontou ali uma turma que logo se transformaria no grupo Os Almôndegas: Gargalhadas, canção de Kledir Ramil, levou o terceiro lugar; Ruídos, de seu irmão Kleiton, é escolhida Melhor Letra. Em tempo: essas três canções foram esquecidas pelo tempo. Ao contrário da que tirou quarto lugar: a milonga estilizada Vento Negro, do professor de cursinho José Fogaça. Interpretada por um aluno de Fogaça, acompanhado por Zé Flávio no violão e Inácio do Canto no baixo seria o primeiro hit dos Almôndegas.

O Musipuc logo se estabeleceria como “o” lugar de nascimento da melhor música que se fazia naquele momento na cidade. Só que, diferente do que acontecia nos festivais porto-alegrenses dos anos 1960, desta vez os músicos que passassem no palco passariam despercebidos se na plateia estivessem. Tinham todos – palco e plateia – a mesma cara: hippies ma non troppo, níveis contidos de chapação, e um jeito equidistante tanto da juventude careta quanto dos roqueiros mucho locos (tampouco cumpriam os carnês da esquerda radical). A identificação era imediata: visual, musical e ideológica.

Ao longo de suas edições, o festival foi revelando uma nova safra de jovens compositores talentosos, com pouco espaço para mostrar seus trabalhos. Mais que todos, Fernando Ribeiro. Mas também Mauro Kwitko, Zezinho Athanázio ou Gilberto Travi & Cálculo 4.

Logo depois do Musipuc, ainda entre os eventos de 1971, rolou um show coletivo pensado para reunir pessoas num clima mais pra Woodstock do que pra competição. Foi a I Mostra de Música de Porto Alegre, idealizada pelo então compositor e professor de língua portuguesa, o futuro prefeito de Porto Alegre e senador José Fogaça. Foram dois dias: 17 e 18 de junho de 1972, lotando o Theatro São Pedro muito acima da sua capacidade. Tudo bancado pelo empregador de Fogaça: o IPV. 

O que era o IPV? O Instituto Pré-Vestibular, um dos primeiros exemplares gaúchos de uma instituição que então havia sido recém-inventada: o cursinho pré-vestibular.


Turma da Mostra de Música organizada pelo Fogaça. Atrás: Gilnei (futuro Almôndegas), Inacio do Canto (com o baixo), ?, ?, Toneco, Kledir, ?, ?. Embaixo: Rosane e Dora do Quarteto em Fá, Kleiton, ?, ?, Fogaça (ao lado da guitarra), Ione Carvalho, Zé Flávio, ?, ?, ?, ?, ? 

Entre outros, subiram ao palco da Mostra várias das atrações do Musipuc e muitos mais: Fernando Ribeiro, Zé Flávio, Fogaça, o violonista Toneco e, em variadas combinações, os cinco futuros Almôndegas: Kleiton, Kledir, Quico Castro Neves, Gilnei e Pery Souza. Ainda sobre eles, o repertório do show incluía três canções que, anos mais tarde, estariam no primeiro disco do grupo: Quadro-Negro (Kledir), Vento Negro (Fogaça) e a (mais uma) milonga estilizada (Quico). 

O compositor estrela era Fernando Ribeiro, que em dupla com Arnaldo Sisson era o autor de um quarto do repertório da noite: Não Adianta Nem Vestir a Camisa, Stelio, Por Quanto Tempo eu Tentei de Entender, Os Dias Já Não Andam Passando e Isso Não Interessa.

Em seguida, Zé Flávio e Inácio do Canto, ambos com quatro canções: Zé com Era Tão Saudável, Quatrocentos Alqueires na Terra de Santa Cruz, Suíte Ironside e, em parceria com Inácio do Canto, O Ovo da Manhã. Inácio também assinava Rumo Leste e Se Vocês Não Entendem Nada e, com Fogaça, Lenda de Santa Maria.

O repertório se completava com Graça (Kledir), Ruídos (Kleiton), Ícaro (Quico Castro Neves), Risadas (Pery Souza / Rogério Camargo) e Um Momento a Dois (Jesus Costa Gonçalves).

A matéria do jornal Folha da Tarde anunciava:

De maneira alguma o público local, sobretudo aquela parcela que espera alguma coisa em termos de criatividade do compositor gaúcho, pode permanecer indiferente a estes espetáculos.

Dias depois, a crítica de Osvil Lopes, no mesmo jornal, é repleta de elogios. Destacando Fernando Ribeiro, Zé Flávio, Fogaça e o trio Liane, Rosane e Dora, resumia o acontecido:

As vinte músicas que compuseram a mostra reuniram cerca de sete grupos de compositores e intérpretes diferentes. Fugindo de qualquer esquema comercial, nenhum desses grupos tinha nome e, em certas músicas, houve mesmo a integração de músicos e cantores de outros conjuntos, para reforçar a composição de um companheiro.



Em abril a Globo traz a Porto Alegre o Som Livre Exportação, maior atração musical da TV daquele momento. Gravado no Auditório Araújo Vianna, o programa vai ao ar para todo o país, com Ivan Lins e uma gauchada: Elis Regina, a banda Liverpool e o grupo Uma Mordida na Flor.

E segue o ano efervescendo: no mesmo Colégio Júlio de Castilhos onde Paixão Côrtes e Barbosa Lessa, 30 anos antes, tinham feito aquele entrevero todo, acontece o primeiro festival de rock da capital.

Enquanto isso, a Rádio Continental, de quem falaremos muito, muda radicalmente de estilo. Será, a partir daí, não só a grande porta-voz da música da cidade, como o grande veículo de mídia “jovem” ao longo da década. 

Em maio, o estudante de Direito Jerônimo Jardim e o publicitário Luiz Coronel, ambos de Bagé, encabeçam no recém-inaugurado Teatro de Câmara o show coletivo Rio Grande do Som – Um balanço geral de nossa música. Graças a Coronel, o espetáculo – promovido pela Secretaria Municipal de Educação e Cultura e pelo Centro Acadêmico André da Rocha, do Direito/UFRGS – consegue montes de patrocinadores. Um dos produtores é o nosso velho conhecido Ivaldo Roque. E o balanço geral passa pelos já veteranos Luís Mauro, Mutinho e João Palmeiro, até chegar a Jerônimo, Kleiton e Kledir.

Ah, sim: 1971 não fecha sem que, em dezembro, na distante cidade de Uruguaiana, estreie o mais importante festival de música regional do Estado, a Califórnia da Canção. 


Arthur de Faria nasceu no ano que não terminou, é compositor de profissão (20 álbuns e EPs) e doutor em Lupicínio pelas Letras da Ufrgs. Publicou Elis, uma biografia musical (arquipélago, 2015) e tá no prelo Porto Alegre, uma biografia musical, Volume 1, reunindo as primeiras colunas publicadas aqui.

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