Arthur de Faria | Porto Alegre: uma biografia musical

A Era do Rádio 7 – Capítulo XLIII

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A Era do Rádio 7 – Capítulo XLIII

Relembrando e ordenando: em oito de fevereiro de 1927 tinha sido fundada a Rádio Gaúcha. Em 27 de outubro de 1934 viera a Rádio Difusora Porto-Alegrense. No meio disso, em 1932, o decreto aquele do Getúlio que liberou a propaganda no novo meio de comunicação. E aí, em 1935, já num mundo novo de possibilidades, a Farroupilha entrou rachando.

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Relembrando e ordenando: em oito de fevereiro de 1927 tinha sido fundada a Rádio Gaúcha. Em 27 de outubro de 1934 viera a Rádio Difusora Porto-Alegrense. No meio disso, em 1932, o decreto aquele do Getúlio que liberou a propaganda no novo meio de comunicação. E aí, em 1935, já num mundo novo de possibilidades, a Farroupilha entrou rachando.

1936, Rádio Difusora. Tango rolando a mil.

Porto Alegre terá então, por muitos anos – até a inauguração da Itaí, em 1952, e da Guaíba, em 1957 – as mesmas três emissoras: Gaúcha, Farroupilha e Difusora. Geralmente nessa ordem. 

Em 1943 a Farroupilha e a Difusora passam a pertencer ao magnata paraibano das comunicações Assis Chateaubriand, integrando sua rede nacional de Emissoras Associadas – francamente opositoras ao então ditador Getúlio Vargas. Já a Gaúcha havia sido comprada em 1951 por um grupo bastante ligado ao já então presidente democrático, recém-eleito, que voltara ao poder na eleição de 1950. Isso dava uma barbada pra emissora: os artistas contratados pela poderosa estatal Rádio Nacional do Rio de Janeiro eram emprestados para Porto Alegre. Até Francisco Alves, o mais popular cantor do Brasil, pintava na área, facinho, facinho.

O mapa estava assim: em 1950, segundo o Anuário do Rádio, a Gaúcha era a mais ouvida, com 37,3% dos ouvintes; a Farroupilha vinha em segundo, com 33,3%; a Difusora em terceiro, com 21,6%; e, com 7.6%, direto do Rio de Janeiro, chegava a Nacional. 

Só que aí o panorama começou a mudar, com a inauguração em 1950 do transmissor de 50 KW e a torre de 198 metros de altura da Farroupilha. Com isso resolvido, em 1952 Chateaubriand manda para Porto Alegre o pernambucano Jesuíno D’Ávila, com uma missão: bombar (no bom sentido) a sua rádio. 

O cara começa revalorizando o time de primeira que a emissora já tinha: uma orquestra de 38 músicos e um elenco de radioteatro com 45 atores. Mais um acervo de 19 mil discos, com nada menos que 600 novos comprados a cada mês. 

Na música, as maiores estrelas eram os maestros: o italiano Salvador Campanella, o alemão Alfred Hülsberg (que foi se agauchando como poucos, e fez escola como arranjador de música regional) e o gaúcho Roberto Eggers (veterano nascido em 1899, respeitado na área erudita, autor de óperas e de pelo menos um sucesso popular: Tango de Amor). Além disso, claro, havia o grupo vocal da casa, o sensacional… Conjunto Farroupilha. No total, uma folha de pagamento de cerca de mil funcionários – 106 deles, músicos.

Daí em diante, até o início dos anos 1960, haverá uma grande rivalidade entre quem cantava, tocava ou integrava as orquestras da Farroupilha e da Gaúcha. 

Também, pudera…

A Gaúcha tentava o que dava. Teve também um maestro importado como os já citados Campanella e Hülsberg: era o alemão Karl Faust. Como Hülsberg, ele viera parar na cidade em 1954, a convite do maestro húngaro Pablo Komlós, que montava então a OSPA – Orquestra Sinfônica de Porto Alegre. Detalhe: ambos tinham sido contratados como instrumentistas, de naipes que não ofereciam grande oferta de instrumentistas na cidade. Faust era violista; Hülsberg, oboísta.

Regional de Antoninho Maciel. Com uma cantorinha que, aos 14 anos, já era bi-campeã dos melhores do ano no rádio gaúcho. Elis, 1959.

E 1954 foi também o ano de quê?

Muito bem! – suicídio de Getúlio Vargas.


Manhã do dia 24 de agosto. 

Na medida em que chega à população a notícia do acontecido, uma comoção popular sem precedentes toma a capital. Quando, às 10 horas, vai para a rua a edição extra da Folha da Tarde com a manchete Suicidou-se Getúlio Vargas, o povo, ensandecido, sai quebrando tudo que pudesse estar ligado às “forças ocultas” a que o finado creditava seu ato desesperado na carta de despedida que deixara – e que fora rapidamente divulgada.

Reza a lenda que quem começou a confusão foi um lavador de carros apelidado Pirata – porque tinha um olho só. Ele teria gritado “–Vamos pro Diário!”. E lá se foi a massa ensandecida rumo ao Diário de Notícias, uma das empresas de Chateaubriand, a força oculta mais aparente entre as motivadoras do suicídio presidencial. Entram na redação, quebram geral, jogam tudo pela janela e ainda tacam fogo. Animadaço, o pessoal segue: sede da UDN, redação do jornal O Estado do Rio Grande, e então o foco se dirige às forças por trás das forças ocultas: consulado dos Estados Unidos e até as pobres das Lojas Americanas, que não tinham nada a ver com isso – só o nome. 

Ok, rua da Praia estava justiçada.

Dali para a Voluntários da Pátria: sim, o American Boite foi todo quebrado, incluindo os instrumentos dos músicos que estavam tocando naquele momento. American… Boite.

Capa da Última Hora, no calor da mesma.

A massa sobe então pela Borges de Medeiros rumo a mais uma empresa das Associadas de Chatô: a Rádio Farroupilha. Desta vez a ordem foi um pouco diferente: invadiram igual, mas primeiro incendiaram as coisas e só depois as atiraram pelas janelas. O acervo de 78 rpms (o maior do Estado) provocou uma verdadeira invasão marciana: uma nuvem de discos voadores voou pelo vão do Viaduto da Borges. A Difusora e o Auditório Associado da Siqueira Campos também entraram no rolo. 

No total, 40 prédios foram invadidos e quebrados.

(Passionais, os porto-alegrenses? Nada! Só tinham repetido o terror e pânico de 1917, quando, em função da Primeira Guerra Mundial, quebraram tudo que fosse ou parecesse alemão: a livraria Krahe, a Sociedade Germânia, a Bromberg, o Novo Hotel Schmidt e por aí vamos. E repetiram a dose em 1942, com a Segunda Guerra e de novo os alemães como inimigos: Casa Lyra, Laboratório Bayer, de novo a pobre da Krahe…).


Em 1958 – e daí já segundo o Ibope – o panorama radiofônico havia mudado consideravelmente, inclusive pela entrada em cena, no ano anterior, da Rádio Guaíba. As posições eram agora Farroupilha em primeiro (38%), a estreante Guaíba em segundo (20%) e a Gaúcha em terceiro (com míseros 9%). Detalhe: a Farroupilha passou a ser não somente a primeira do Estado como a segunda emissora mais popular de todo o país, perdendo só pra Rádio Nacional.

E a gente falou pela primeira vez em Ibope. 

Pois então. 

Foi neste mesmo 1958 da pesquisa citada que se inaugurou a primeira moderna agência de publicidade da cidade, a MPM. Muita coisa vai mudar a partir daí. É bom lembrar que estamos em pleno governo Juscelino Kubitschek, com o PIB crescendo quase 10% ao ano, desenvolvimentismo a mil e um Plano de Metas investindo pesado no crescimento na industrialização. 

O mundo está mudando, o Brasil está mudando, Porto Alegre está mudando.

Essa transição marca o auge da popularidade dos programas de auditório. O Auditório Associado – das Emissoras Associadas -, usado basicamente pela Farroupilha, ficava na rua Siqueira Campos esquina com a Leonardo Truda, e era frequentadíssimo. A rádio também era dona de um grande sobrado nos altos do viaduto Otávio Rocha, na Duque de Caxias com a Borges de Medeiros.Já o auditório da Gaúcha – inaugurado em 1950 – tinha 660 m2, 237 lugares, e ficava no décimo primeiro andar do Edifício União, na mesma Borges, mas ainda melhor posicionado: a menos de 100 metros do Mercado Público, ponto de encontro oficial de músicos em busca do que hoje se chamaria em português de “uma gig”:  um trampo, um bico, um trabalho praquela noite.

O Auditório da Gaúcha nos anos 50.
Rádio Farroupilha, anos 1950. Jeito e força.
O Conjunto Farroupilha, anos 1950. Muita manha.

O Auditório Associado invariavelmente lotava. Afinal a Grande Orquestra Farroupilha era a mais completa do broadcasting local: a base era uma big band com os naipes fechados no padrão Glenn Miller, que era o referencial da época: cinco saxes, quatro trompetes, quatro trombones, guitarra/violão, piano, contrabaixo e bateria, mais ritmistas e cantores. Isto posto, acrescente à receita uma orquestra de câmara completa: primeiros violinos, segundos violinos, violas, cellos, contrabaixos, oboé, clarinetes, fagote, trompa. Segundo o radialista Glênio Reis, a orquestra completa chegou a ter mais de 60 músicos. E pelo menos uma curiosidade: revezando-se entre o violoncelo e o sax alto tocava ali o suíço Walter Smetak, que depois se radicaria na Bahia e seria um vanguardista compositor e inventor de instrumentos, um dos mentores dos tropicalistas e do grupo mineiro Uakti.

O timaço da orquestra se subdividia, conforme as necessidades, em Jazz de Breno Baldo (saxofonista), Conjunto Melódico ou Trio. E não era a única fonte de músicos da rádio. Havia também o Regional de Antoninho Maciel e a típica de tango. Só pianistas contratados, eram três, um para cada especialidade – tango, música brasileira ou música erudita. Além de uma infinidade de cantores, com vários especialistas para cada ritmo ou estilo. A arma maior da Farroupilha era justamente o gigantismo.

Já a Gaúcha, como vimos, em 1957 estava bastante alquebrada. Na verdade, quase falindo – mas mantendo as aparências. Foi quando o jovem animador de programas de auditório Maurício Sirotsky Sobrinho comprou a empresa com mais três sócios. Chegou cheio de ideias e mais ainda de ambições. 

Contrata muita gente e aposta numa rádio com forte interação com o público, em transmissões ao vivo de seus programas – que logo teriam entradas disputadas quase aos tapas, direto do auditório da emissora mas também de teatros e cinemas. Era assim o seu Programa Maurício Sobrinho, quando ainda transmitido pela Farroupilha do auditório da Siqueira Campos. Seria assim com a troca de emissora, só que agora direto do Cine Castelo da avenida Azenha, um espaço muito maior.

A primeira investida de Maurício na Gaúcha tem o mesmo foco da de Jesuíno na Farroupilha, anos antes: valorizar os funcionários já contratados. Começa por seus 36 atores de radioteatro e pela big band de – apenas, mas excelentes – 18 músicos, dirigida por Karl Faust. Karl, quando veio para a OSPA, a princípio trabalharia na Farroupilha, mas alguma coisa o fez mudar de ideia. E estava certo: já em 1956 sua orquestra foi eleita a melhor do rádio pela Revista da TV.

(Sim, antes mesmo de haver televisão, Porto Alegre já tinha sua Revista da TV, que, num feito impensável sete décadas depois, era nada menos do que a quinta publicação dedicada ao showbizz gaúcho: somava-se à Revista do Rádio, Rouxinol, Radiolândia e Revista do Globo).

Primeira formação da Ernani-Marino, ainda na Gaúcha, 1941.

A entrada de Faust foi essencial para a Gaúcha, que naquele momento havia acabado de perder a prestigiosa Orquestra de Ernani & Marino (dos Santos), que se dissolvera. Aproveitando muitos dos músicos que ficaram pendurados no pincel, a grande inovação do alemão foi o capricho com que “Fausto” – como foi imediatamente apelidado – trabalhava: um arranjo novo era primeiro passado com todo mundo. Aí cada naipe ia para uma sala, ensaiar separadamente cada respiração, cada acento, cada mínimo detalhe que fizesse quatro ou cinco músicos soarem como um só. Era um padrão de excelência inédito na cidade. Por isso, não foi de espantar que, na virada dos anos 1950 para os 60, eles levassem por seis anos consecutivos o título de Melhor Orquestra. Além disso, encantavam os artistas de fora que vinham apresentar-se na rádio acompanhados por eles. E a Gaúcha ainda aproveitava os talentos individuais do pessoal para compensar com qualidade a falta de quantidade de elementos do seu cast.

Formação clássica da Ernani-Marino, 1952.

Um exemplo era o primeiro sax alto da orquestra (e, anos depois, claronista e timpanista da OSPA) Giovanni Porzio. Giovanni tocava sax na orquestra de Faust e, de brinde, atacava de pianista de jazz, de música erudita, de música brasileira ou de tango, com amplo domínio de cada uma das linguagens (lembre-se: para a mesma função, a Farroupilha tinha três diferentes pianistas). 

Além dele, Fausto foi contratando aos poucos o que havia de melhor então entre os instrumentistas da cidade. O saxofonista Alcides “Macedinho” – futuro maestro da Banda Municipal -, Zezinho da bateria, pianistas como Délcio Vieira e o então muito jovem Ruy Barros e o guitarrista e violonista Paulo Coelho (que não era nem o pianista da década de 1930, muito menos o mago de décadas depois). E a grande estrela era o veterano e já mítico saxofonista Marino dos Santos (lembram dele? Justamente o grande parceiro do Paulo Coelho pianista).

Todos esses músicos ou já estavam lá ou foram sendo buscados por Karl pela noite da cidade. As exceções foram os músicos que Mauricio tirou da Farroupilha: o guitarrista Paulo Coelho, Primo e Seu Conjunto Melódico (liderado pelo pianista Peixoto Primo) e uma jovem cantora revelada pelo Clube do Guri da emissora associada: Elis Regina.

A reação vem rápido. Ainda não em números, mas imediatamente em prestígio. Em 1958, se ainda amargava 9% apenas de ouvintes segundo o Ibope, n’Os Melhores do Rádio da prestigiada Revista do Globo, quase todos os escolhidos eram da Gaúcha. Melhor Arranjador e Melhor Orquestra para Karl Faust, Melhor Instrumentista para Paulo Coelho, melhor cantora para… Elis Regina. Aos 13 anos. Ainda falaremos dessa menina.

Em 1959, na eleição da Revista da TV, Elis e Karl repetem o feito. Faust é escolhido novamente Melhor Maestro. Alfred Hülsberg, da Farroupilha, Melhor Arranjador. Demosthenes Gonzalez, Compositor. E o Conjunto Melódico de Norberto Baldauf, Melhor Conjunto Instrumental. O conjunto de Baldauf – montado, ensaiado e experimentado nos corredores da Gaúcha – era e seguiria sendo o mais importante e longevo de todos os conjuntos melódicos, assunto que trataremos com dedicação daqui a pouco.Correndo por fora na briga entre as duas emissoras vinha a Difusora, que não tinha lá um imenso plantel, mas fora a casa da já citada Orquestra de Ernani & Marino. Também lá atuaram como pianistas, desde o final dos anos 1940, craques como Arthur Elsner, Aderbal D’Ávila e o próprio Baldaulf. E era na Difusora que se tocavam os arranjos de nosso velho amigo Armando Albuquerque, que acabaria se dedicando somente à música erudita – como compositor e professor.


É interessante pensar como se trabalhava numa época em que viajar com uma banda era muito caro e playbacks eram inimagináveis. Cada cantor de renome nacional embarcava no avião com uma grande pasta, onde havia as partituras do arranjo de cada música – que ia para o maestro – e as partes individuais de cada instrumento. Chegava na hora – muitas vezes na hora mesmo, sem nenhum ensaio prévio –, distribuíam as partituras e Deus ajudava se quisesse. Por isso era tão importante a leitura de música à primeira vista. Aliás, era comum a pergunta “você é músico?” querendo dizer “você lê partituras?”)

Todas as rádios tocavam discos, claro. Mas também tinham programação ao vivo, nesses moldes, todas as noites. Além disso, havia horários de música ao vivo também ao longo do dia e quase tudo ao vivo no final de semana. Emprego não faltava.

Esse mundo logo ruiria vertiginosamente.


Arthur de Faria nasceu no ano que não terminou, é compositor de profissão (15 discos, meia centena de trilhas) e doutorando em literatura brasileira na UFRGS por puro amor desinteressado. Publicou Elis, uma biografia musical (Arquipélago, 2015).

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