Resenha

O mercado, memória negra

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O mercado, memória negra Foto: Reprodução
Livro de Pedro Vargas costura a história do Mercado Público com a trajetória dos afrodescendentes na Capital

Quase 30 anos atrás começou um processo inédito em Porto Alegre em matéria de preservação de patrimônio histórico: entre 1992 e 1997 se desenrolou a restauração crítica – atenção para o adjetivo – do Mercado Público. Este mesmo que hoje ainda não conseguiu voltar a funcionar adequadamente desde um incêndio ocorrido em 2013, quase uma década atrás.

Nosso Mercado foi inaugurado em 1869, nada menos que 152 anos atrás. A cidade era um pequeno pedaço do que é hoje: eram uns 43 mil habitantes então, para os atuais um milhão e meio de pessoas, quase – não sabemos ao certo porque o governo federal atual está por abolir o Censo, que deveria ter ocorrido ano passado.

Dá o que pensar essa história. Não há porto-alegrense, nato ou chegado, que desconheça sua posição, seu aspecto, talvez seu cheiro, a culinária que abriga, a simbologia que traz. Haverá outro prédio mais famoso entre nós? Não é difícil admitir que ele estará entre os 3 mais famosos lugares da capital gaúcha. 

Se o estado atual encontra-se abalado e a gestão está sob arguição forte, ao menos pode nos consolar a publicação de um livro contando com detalhes o processo da restauração da década de 1990. Trata-se de A relação patrimonial na restauração de bens culturais – o Mercado de Porto Alegre e os caminhos invisíveis do negro (Curitiba: editora Appris, 2017). 

O autor é Pedro Rubens Nei Ferreira Vargas, historiador especializado em museologia e doutor em Planejamento Urbano. Nesse trabalho, sua dissertação de mestrado, lemos uma cuidadosa reconstituição narrativa e analítica daquele processo. Como se pode ler no longo título, o livro trata desse encontro entre uma edificação mais que centenária, que até então costumava ser vista pela lente arquitetônica, e a história dos afrodescendentes na cidade. 

Pedro Vargas acompanhou aquele processo munido de algumas certezas; uma delas dizia que era preciso manter em paralelo o interesse no patrimônio material e no imaterial – o prédio e a memória que ele encarna. Por isso, entrevistou mercadeiros (os concessionários que trabalham ali) e funcionários encarregados do trabalho – que foi vasto, tendo acrescentado ao prédio a cobertura atual, por exemplo – mas também sacerdotes de religiões afro-brasileiras e militantes do movimento negro.

A equação é complexa, e o autor a acompanha com cuidado. Desde a premissa de que os trabalhadores que ergueram a construção deverão ter sido, em parte grande, escravizados, passando pela certeza de que continuamente aquele espaço foi ocupado por afrodescendentes, vendedores, vendedoras – e ainda pelo fato de que ali funcionou uma espécie de bolsa informal para empregos de baixa renda –, até alcançar o tempo atual, Pedro Vargas vai reportando as coisas como que medindo o presente pelo passado, e vice-versa.

Especial atenção recebe o Bará do Mercado, que fica no centro dos caminhos que cortam de lado a lado o Mercado, hoje um ponto de alta relevância na concepção crítica da vida negra na cidade, ele mesmo o terceiro dos pontos de referência do Museu do Percurso Negro na cidade, sendo os outros três o Painel Afrobrasileiro no largo Glênio Peres, a Pegada Africana na praça da Alfândega e o Tambor da praça Brigadeiro Sampaio.

Relembre: A cor do patrimônio

Em julho do ano passado, a Parêntese publicou um levantamento inédito que revelou que homens brancos são 60% dos homenageados em monumentos de Porto Alegre.

Historiadores ouvidos pela reportagem comentaram que a maioria das estátuas foi erguida sob a perspectiva das elites machistas e escravocratas.

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