Resenha

Os novos ternos de Marco de Menezes

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Os novos ternos de Marco de Menezes Foto: Editora 7Letras]

Marco de Menezes é um grande poeta, mas isso eu já sei há quase quinze anos, quando conheci seu fim das coisas velhas, lançado em 2009, que receberia o Prêmio Açorianos de Literatura do ano seguinte nas categorias ‘Poesia’ e ‘Livro do Ano’, e ao qual dediquei algumas páginas da minha tese de doutorado. Depois vieram Ode paranoide (2010), Pequena madrugada antes da meia-noite (2016), sobre o qual falei aqui, e a plaquete Como se constrói uma melancolia de domingo (2018). Antes tinham vindo As horas dragas (1999) e Pés de aragem (2007).

Pelas circunstâncias da minha vida atual, vivendo fora do Brasil há mais de ano, portanto longe da minha biblioteca, preciso adentrar o recém-saído Os ternos de Charlie Parker e outros poemas (7Letras) trazendo os outros livros do Marco apenas na memória, o que no fim das contas me parece mais do que adequado, em se tratando da poesia de quem se trata: uma poesia calcada na memória, sim, mas principalmente fundada no apenas.

Em trinta poemas organizados em duas partes, primeiro “Outros poemas”, com catorze, e depois “Os ternos de Charlie Parker”, com dezesseis, Menezes continua a abrir, para quem o lê, não só sua casa, onde se reúnem familiares vários (mãe, filha, irmão, irmã, pai, avô), além de vizinhos, amigos e conhecidos, mas abre também seus guarda-roupas e armários, e dentro deles os bolsos das japonas, os baús e caixas de sapatos com fotos, cartas e brinquedos velhos, e também sua biblioteca, sua coleção de vinis e suas garrafas mais tinhosas, mocoseadas numa prateleira quase inacessível do carrinho de bebidas, herdado meio que por inércia de um ex-colega de faculdade com que dividira o apartamento nos anos 80, que o herdara, por sua vez, sabe-se lá de quem. E tudo que se abre tem uma coisinha que lembra alguém, que lembra algum dia, que lembra um cheiro ou som, que lembra uma palavra, que lembra uma lembrança, e mesmo que se equivoque ao lembrar, ou principalmente por isso, tudo que se abre emana alguma coisa que já não está, inclusive naquilo que ainda está, que, às vezes, dá para chamar de poesia.

O poema de abertura, muito apropriadamente, intitula-se “doppler” (p. 15-16):

ó mãe
nem sei por que digo isso
mas meu coração não tocará
o coração de uma estrela
nem o granito que a montanha
jogou fora
tampouco o plástico
que a todos envolve
ou a medula mole e morna
de uma amêndoa
nem a trigésima camada do chão
de um jardim do pleistoceno
onde nossos ancestrais apodrecem
ó mãe
meu coração irá tocar
mas consternado
tentará novamente alcançar
ó mãe
o coração do cão
resgatado do Dilúvio anteontem
e os fundos de copo que restaram
de um deserto sem amigos
e mesmo a isso ele só fingirá tocar
mas as mãos da minha filha
tão pequenas
ele sempre há de tocar
com o doppler arrebatado
das revistas de astrofísica
e o mesmerismo
das antigas enfermeiras
tão pequenas essas mãos
que ele sempre há de tocar
[ainda que tão imensas essas mãos
em seu pegar o ar e manotear o vazio
mãos que enganamos com coisinhas
papeizinhos leves, tiras de tricoline
fios de cabelo de flores pensativas]
tão pequenas essas mãos
quanto o núcleo cerúleo
de luz postiça da cozinha
em certa hora em certo intento
cujos raios ó mãe
os gatos levam
como comparsas para o abismo
essas mãos bem pequenas
que ainda não cabem no abismo
ele sempre há de tocar

Um aspecto a observar: as enumerações, primeiro por negação (“meu coração não tocará”, “nem”, “tampouco”, “ou”, “nem”), depois afirmativamente (“meu coração irá tocar”, “tentará”, “só fingirá tocar”, “sempre há de tocar”), que se articulam com as reiterações (“ó mãe”, “as mãos” da filha) para atravessar os tempos e os espaços, os materiais e os seres, dos mais amplos e distantes aos mais breves e específicos. Tudo, de alguma forma, está ligado a tudo, e não cabe ao poema propriamente mostrar mais do que mostra ou explicar o que quer que seja, mas fazer ressentir – ainda que deformado, a depender da posição do observador em relação à fonte – ao longo de sua própria duração.

Outro aspecto é o eco com o poema de abertura de fim das coisas velhas, de título homônimo, em que enumerações e reiterações de grandezas diversas culminam em algo como (estou citando de memória, tenham paciência, entrem no jogo) o desejo, ou a necessidade, ou a urgência, justamente, de cantar o “fim das coisas velhas”, essas coisas cortantes, na imagem final do poema, como uma faquinha recebida de presente do avô.

Mais do que o eco com um poema, é toda uma linguagem que ecoa em si mesma, e o que se vê aqui em “doppler” é a tônica da linguagem do poeta: os versos livres e geralmente breves, o que implica frases entrecortadas, picotadas, encaixadas, mas sem grandes malabarismos sintáticos, favorecendo o estilo reiterativo e enumerativo e, consequentemente, possibilitando uma proliferação de imagens; o uso de minúsculas; a pontuação enxuta; o vocabulário predominantemente simples, de onde repentinamente irrompem determinados termos ou muito específicos, ou já um pouco antigos, ou regionais, sem que – e não sei explicar como nem por que – chamem atenção demasiada sobre si. Ou seja, uma linguagem em que o estranho e o corriqueiro estão em harmonia. De modo que um dos prazeres que tenho em ler a poesia do Marco de Menezes está em esperar essas palavras-acontecimentos, esses vocábulos que eu provavelmente não conheça, ou do qual ande um tanto esquecido, e que, assim como em diversas das situações flagradas em seus poemas, me dizem algo que eu não sei exatamente o que é, algo que soa em tom menor, que brilha opaco.

Penso, neste “doppler”, pelo menos em mesmerismo (termo médico que designa o “método de tratamento pelo hipnotismo criado pelo médico alemão Franz Anton Mesmer”, em fins do século XVIII, me ajuda Aulete digital), manotear (regionalismo gaúcho para o coice dado com as patas dianteiras) e tricoline (galicismo que nomeia um “tecido de algodão macio, próprio para fazer camisas etc.”). Mas a lista encorpa um bocado, se considerarmos o livro todo: tubiana, macegas, alimária, miasmas, fosfenos, láudano, tansos, felonia, cachaço, bailarico, cerúlea, nhambu, asbesto, lindes, cinábrios, racemoso, antracoso, debrum, cinchona, glera, refocilar, realgar, ázigos.

Passemos a um poema algo narrativo, “recuerdo de 8 de julho de 1983” (p. 19-20):

no frio da manhã de julho
estou indo para a aula
dedos pálidos nas manoplas
a estrutura da noite derrubada
feito a arquibancada
em Mar del Plata
depois do três a três

partir assim tão cedo
quando as pessoas escondem
o rosto ao passar
e os ônibus têm a luz acesa
e as macegas então dormem
túrgidas do orvalho
e o orvalho vem subir pelos tênis
e pelas pernas

a noite é ainda forte
ninguém lhe torce o pescoço
há balões de fumaça
na boca da alimária
brotos de água quieta
no varal de arame
e voaram ao pé do salso
abraçados
um par de meias e um cuecão

contar as casas
dando sentido aos números
e as placas dos carros
dando sentido ao nada
guardando tudo
na toca brucutu
e perguntar o que seria
a malacacheta
o feldspato
ali no Beco das 7 facadas
ali na curva do Meu Cantinho

e também cantar bem baixo
sob a traqueia dos pedais
algo pesado e sem nome
presente enviado da noite
ou do fundo movediço da terra
(não sabemos)

Agora é uma data precisa que vai abrindo espaço para uma evocação algo proustiana, algo bolaniana, quase que integralmente sensorial, da manhã que se presentifica e, no entanto, mais esconde do que mostra: um jogo épico do Grêmio (que aconteceria naquela noite, ou seja, no futuro de daqui a pouco), as pessoas encapotadas, o frio que se insinua, o cômico-fantasmagórico das roupas andando sem gente, enfim, um cenário espesso, quase palpável, prenhe de mistério. É o eu sozinho que enfrenta o mundo, versão uruguaianense do Caminhante sobre o mar de névoa, quadro emblemático do romantismo alemão pintado por Caspar David Friedrich, ou da Cidadezinha qualquer drummondiana, aquele da “vida besta”.

Mais um traço da poesia do Marco: a recorrência dos topônimos, com grande ênfase para lugares do interior profundo do Rio Grande do Sul, ruas, bairros, linhas, distritos, rios etc. Aqui são o “Beco das 7 facadas” e o “Meu Cantinho” – estamos, suponho, na Uruguaiana dos seus livros anteriores – a oferecerem algo muito parecido com o estranhamento harmônico das escolhas lexicais mencionado anteriormente; no outro poema era o “Dilúvio” a ancorar um lugar-imagem-lembrança. Assim, em Os ternos… e nos seus outros livros encontramos Caxias, Uruguaiana, Itaqui, Mostardas, o rio das Antas, a rua Santana, o bairro Fátima, o Tibola e por aí vai, nomes que situam o poema geograficamente, ainda que muitas vezes soando de modo cifrado, justamente por situarem muito, no muito pequeno, como versões do “Beco” e da “rua do Curvelo” de Manuel Bandeira. Lugares à altura de seus nomes-mais-que-nomes, esfíngicos, irrelevantes, que só com o lapso de digitação que me acabou de sair (juro) fui capaz de definir: arquetipitocos.

A menção ao primeiro poema me leva de volta à imagem do “coração do cão / resgatado no Dilúvio” – que, por sua vez, tinha me levado a outro cão e a outro curso d’água, que estão no (provavelmente) último poema de fim das coisas velhas, nesse caso o cão está vivo, mas algo já não tão vivo é resgatado da água – e me ajuda a trazer para a conversa outro aspecto central, e de raízes certamente muito profundas, do imaginário do autor: as imagens que retornam, que se reelaboram, que talvez sejam da família daquilo que foi definido como “metáforas obsedantes” por Charles Mauron (que vai nos dar a licença de ficar fora, porque não vou entrar nesse mérito). Entre as obsessões de Marco, que tanto me tocam e atucanam, destaco: os tênis gastos, os velhos blusões de lã e outros itens do guarda-roupas da adolescência; a calcedônia, o feldspato e outros minerais; as bolitas, os gibis, a posição de goleiro-linha e outros quefazeres lúdicos; a enguia, o celacanto e outros seres aquáticos; o vermute e outros álcoois balsâmicos.

Em andamento algo cômico, vejamos “hoje vamos falar mal” (p. 47-48), este já da segunda seção do livro:

hoje vamos falar mal
da Dona Flores
e somente dela

que é iracunda e cruel
com os pequeninos
incute-lhes terror diurno
e beija-lhes com face óssea
feito o esqueleto
de uma velha e magra morsa

mas tem ela também
dentes pequenos
nascidos de gengivas
que o tabaco rói
e trabalhou até os 50
num departamento da receita
depois pousou aqui cinzenta
depurando todo o asbesto
que lhe bate na veneta

Dona Flores bem se empenha
é o estorvo dos porteiros
vasculha a correspondência
espia as coisas alheias
(da cicatriz de uma aliança
a garrafões e frasqueiras)
e vem esparzindo vendeta
pelaginosa e arsênica
sobre toda a vizinhança
contra tudo o que se move
e todas as potestades
contra a ideia de justiça
e contra o totem da igualdade
contra a fortidão de tinta
que uma pintura exala
e contra uns pobres troços meus
deixados no corredor
que estão ali a suportá-la

Dona Flores vai à feira
toda sexta-feira
e traz amoras salgadas
e pissacán espinhento
em sua sacola sórdida
(comprada
por uma filha
que mora na Flórida)

e era isso,
hoje vamos falar mal
da Dona Flores
e somente dela

Pobre Dona Flores, vilipendiada pelo vate: espero que tenha sido presa junto com o bestiame no fatídico 8 de janeiro de 23! E como lembra outras velhinhas, não só aquela de fim das coisas velhas, mas da vida em condomínio, do Brasil de ontem, de agora!

Este, talvez, um outro eixo da poesia do Marco: o presente, mas um presente metido na farda da memória futura – e essa, como já sabemos, sempre com os olhos voltados para o miúdo, para aquilo meio desaparecido ainda quando vivo, uma versão possível do infraordinário de Georges Perec. Um presente habitado por essas pequenas personagens cotidianas, como “o senhor que vende doces na esquina do hospital” (p. 45-46), como o seu Pacheco, o porteiro do prédio que “lembra Jacques Brel” (p. 51), como o “velho psiquiatra / da velha clínica”, que o poeta vê atravessando a rua com aquele seu “olhar de desastre / como um tipo de nuvem / que se afasta / se o incêndio já não pode mais / ser evitado” (p. 66-67).

E é nesse acúmulo de mínimos, que lá no início chamei de apenas, que Marco de Menezes faz seus truques de prestidigitação: ajudado por aquelas palavras, vai erigindo toda uma mitologia pessoal em que presente e memória são feitos da mesma matéria – precária – e formam um mesmo lugar – precário –, que é aqui, que é sempre. Os ternos de Charlie Parker e outros poemas são a safra mais recente dessa transformação do apenas em muito. E com pitadas de autoconsciência da parte desse poeta que se coloca como “o rastejador” (p. 74-75):

há seis semanas escrevi por aí
um último poema aceitável
depois disso nada
só fragmentos grosseiros
ideias de araque
maltomadas
a um cenário terrível
paisagens fugazes sem destino ou começo
no rol das inúmeras coisas não numeradas
como um cubo de calcedônia branca
juncado aqui e ali por espasmos
de ágata
que uma criança não compreende
não ser uma bolita

e como pudesse ser possível
voltar a escrever algo que prestasse
ou ao escárnio ou à risada
que fosse
ou ao pêsame ou à arcada de vômito
que fosse
algo que prestasse
ou à injúria ou à ferida
que fosse
resolvi ir

em busca daquela palavra
escondida sob camadas de minério
ou de carne
ou de vegetal estrutura
em busca daquela palavra
atolada nos pântanos
nas sangas
no barro dos bretes
seca afinal
nas madeiras
de um estranho carretão
estacionado em paralelo
ao caminho
mas não nele
rente aos sons que vêm e vão
somente em truque incessante
mas não com eles
esse carretão que é a alma
em dia de esgotamento
em dia de pulverização
em dia de patíbulo e rifa
em dia de fatigada quermesse
que fosse
resolvi
ir
cada vez mais para dentro
do interior
lugar onde, ao que se sabe
alguém pode ser rapidamente assassinado
por gente ordinária
ou alguém pode ser lentamente assassinado
pela morte indiferente

Marco de Menezes, enfim, continua simplesmente um grande poeta.

Diego Grando é professor, poeta e tradutor. Atualmente, é leitor de língua e cultura brasileira (MRE/Instituto Guimarães Rosa) na Università degli Studi “G. d’Annunzio”, em Pescara, na Itália. É integrante do Sarau Elétrico.

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