Restos e descartes ganham vida nos “Ajuntamentos” de Afonso Tostes
Diante do Guaíba e da silhueta de Porto Alegre que se observa da Fundação Iberê, o mineiro Afonso Tostes teve seu olhar capturado por uma árvore podada na avenida Padre Cacique. A imagem do tronco inspirou uma gravura do artista para a mostra Ajuntamentos, que apresenta uma poética marcada pela atenção aos restos e descartes do cotidiano.
“Ali, como um cadáver, de pé, a irredutível presença de um tronco sem membros me afetou de imediato, pois, além de tudo, ia ao encontro do trabalho que venho desenvolvendo”, conta o artista, que ocupa o andar térreo da Fundação Iberê com esculturas, pinturas e gravuras.
Na instalação Varal, Tostes aproveita a arquitetura do museu para suspender linhas e cordas amarradas a objetos no solo. A obra resulta de viagens pelo país em busca de materiais com potencial para integrar suas obras.
No entorno de Varal, também explorando tensões e equilíbrios, esculturas empilham pedaços de troncos, acompanhados de ripas de madeira e peças esculpidas que o artista chama de “bengalas”.
Em texto publicado no catálogo da exposição, a curadora Luisa Duarte observa que os trabalhos de Tostes rementem ao gesto do escultor romeno Constantin Brâncusi de retirar suas esculturas de pedestais. “Na obra de Tostes, o que se dá não é uma recusa do repertório do cânone ocidental, mas, antes, o encontro entre dois rios. Por um lado, aquele cujas águas formam o conjunto de obras reconhecidas por uma historiografia oficial, por outro, aquele irrigado pelos saberes dos povos tradicionais”, ressalta a curadora.
Na mesma linha, o curador Daniel Rangel define Tostes como um artista que “carrega o popular em si mesmo, em suas experiências e nos caminhos que decidiu trilhar”, ressignificando saberes populares e ressoando produções que vão da arte conceitual brasileira dos anos 1970 à Arte Povera.
Nas palavras do próprio artista, trata-se de buscar “naquilo que está morto alguma vida escondida” e “encontrar beleza na poética mais simples possível”. Essa postura em relação à arte e ao entorno imediato pode ser observada nas obras em que o artista utiliza pó de madeira como pigmento.
Em outros trabalhos, Tostes se apropria de exemplares de uma enciclopédia encontrada em uma calçada do bairro de Copacabana, no Rio de Janeiro. Nas transformações concebidas pelo artista, as páginas de conhecimento catalogado são exploradas sobretudo em sua materialidade, mas também em possibilidades de leitura de textos e imagens, entre as quais se destacam representações da anatomia humana.
Em diálogo com os desenhos do corpo humano nas páginas da enciclopédia, duas xilogravuras verticais e as obras Árvore Grande e Árvore Média permitem associações para além do reino vegetal, evocando formas de artérias, veias e capilares sanguíneos – uma possibilidade de leitura estimulada pelos tons de vermelho que emergem ao longo da exposição.
Nascido em Belo Horizonte em 1965, Afonso Tostes estudou Artes na Escola Guignard, na capital mineira, e na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, no Rio de Janeiro, cidade onde vive. Ao longo de sua trajetória, Tostes se notabilizou com obras tridimensionais, especialmente instalações de grandes dimensões, explorando materiais diversos, com destaque para a madeira, além de objetos e utensílios de trabalho.
Em Porto Alegre, na 5ª Bienal do Mercosul (2005), com curadoria-geral de Paulo Sergio Duarte, o artista exibiu uma instalação constituída por escoras esculpidas em madeira, posicionadas como sustentação de duas paredes externas dos armazéns do Cais do Porto, diante do Guaíba – paisagem à qual Tostes retorna com seus Ajuntamentos.
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“Ajuntamentos”, de Afonso Tostes
Onde: Fundação Iberê (avenida Padre Cacique, 2000 – Cristal – Porto Alegre)
Visitação: até 22 de outubro de 2023
Horários: quinta-feira a domingo, das 14h às 18h | às quintas-feiras, a entrada é gratuita; de sexta a domingo, o ingresso custa entre R$10 e R$ 30