Artes Visuais | Reportagens

Natalia Schul cai para se levantar

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Natalia Schul cai para se levantar

O Centro Cultural da UFRGS exibe até 18 de agosto a exposição Em Queda, de Natalia Schul, reunindo vídeos e fotografias de movimentos de queda, tema de sua pesquisa de mestrado em Artes Visuais. No dia 15 agosto, às 17h, a artista participa de um bate-papo sobre a mostra, que tem curadoria de Pedro Cupertino.

O primeiro conjunto de trabalhos apresentados na Sala Nogueira apresenta vídeos de 2019, quando Natalia explorava quedas do próprio corpo em uma espécie de treinamento, em ambiente fechado, para aprender a tombar em suas videoperformances. Na sequência, a artista apresenta etapas posteriores da pesquisa, realizando quedas na areia e na grama e lançando um olhar para elementos presentes nesses cenários, como areia e sementes, tendo como trilha o som do mar.

Parte da pesquisa, que teve orientação da artista visual e professora da UFRGS Elaine Tedesco, foi desenvolvida durante a pandemia de covid-19. “A queda era o assunto momento, estava ali pairando. Mas talvez também possamos pensar em resiliência, todo o esforço de tornar a subir. Afinal, após a queda, se ainda é possível, nos levantamos, e me parece que é o que viemos fazendo. É justamente disso que se trata o exercício: criar certo preparo do corpo ou da consciência para o desamparo, que vem com a vida”, reflete a artista – leia a entrevista a seguir.

Ao longo do processo de criação dos trabalhos, Natalia dialogou com sua mãe, a bailarina e coreógrafa Eva Schul, e estudou obras de outros artistas que também investigaram a queda em suas produções, como a companhia catarinense de dança contemporânea Cena 11 e nomes das artes visuais como o holandês Bas Jan Ader (1942 – desaparecido em 1975), a gaúcha Cláudia Paim (1961 – 2018) e o francês Yves Klein (1928 – 1962).

“Cair bem exige relaxar e soltar o corpo, largar o controle. E isso, claro, é muito potente em termos filosóficos, o quanto se trata de perder o medo, arriscar e se jogar”, observa a artista, que tem 35 anos e cursou graduação e mestrado em Artes Visuais na UFRGS, onde atualmente é doutoranda em Poéticas Visuais.

“Apesar de a queda ser um tema muito rico e trazer todos esses aspectos interessantes”, pondera, “no final das contas, se trata mesmo é de fazer. Falo, com graça, que eu caio porque eu quero”.

Leia a entrevista com Natalia Schul.

Natalia, nos conta um pouco sobre como surgiu teu interesse em explorar quedas nos teus trabalhos. Ao ler a tua dissertação, me chamou atenção a reflexão sobre o treinamento para perder o medo, e não para evitar a dor.

No início, estava interessada em explorar um movimento repetido em performance para a câmera, uma ação que fosse realizada por mim, experenciada no corpo. Quando comecei a pensar nos movimentos de queda, a questão que surgiu foi como cair, ou ainda, como cair sem se machucar. Todo mundo já vivenciou uma queda, nem que seja quando estava aprendendo a ficar de pé. Você nunca sonhou que caía e então acordou em um susto como se estivesse sentido a queda no corpo? Ou seja, não precisamos aprender a cair, qualquer um faz, é algo natural, o corpo pode perder o equilíbrio e tombar. Agora, existem técnicas de como cair de uma forma menos danosa e isso pode ser aprendido. Assim surgiu a ideia de treinar para cair.

Pensava que se tratava de treinar para cair sem se machucar. Apesar de ter compreendido que, se uso apoios do meu corpo, por exemplo, gero menos impacto, o que realmente precisava desenvolver era a coragem. Tinha medo de me jogar no chão e, quando me protegia, institivamente acabava causando mais lesão – por exemplo, colocando as mãos para frente e machucando os pulsos. Cair bem exige relaxar e soltar o corpo, largar o controle. E isso, claro, é muito potente em termos filosóficos, o quanto se trata de perder o medo, arriscar e se jogar. Então acabei tomando esse caminho.

Você percebe alguma influência da pandemia de covid-19 nessa pesquisa?

Uma parte do trabalho e grande parte da escrita sobre ele se deram durante a pandemia. Também por conta dela passei alguns meses em Capão da Canoa, cenário que influenciou bastante o processo. Mas, principalmente, o assunto da queda é muito rico em metáforas e analogias, e não é difícil fazê-las com relação à uma crise sanitária. Podemos pensar em diversas sensações de queda nos mais amplos campos da vida em sociedade, que vivenciamos mundialmente com a covid-19. Foi um momento de muito medo, insegurança e desamparo.

Quando me pegou, a queda era o assunto do momento, estava ali pairando. Mas talvez também possamos pensar em resiliência, todo o esforço de tornar a subir. Afinal, após a queda, se ainda é possível, nos levantamos, e me parece que é o que viemos fazendo. É justamente disso que se trata o exercício: criar certo preparo do corpo ou da consciência para o desamparo, que vem com a vida.

A artista Natalia Schul. Foto: Arquivo pessoal

Gostaria que você comentasse os momentos “durante a queda” e “após a queda” presentes nos trabalhos.

O momento durante a queda é aquele da adrenalina, da emoção. Que causa certa desorientação, que pode – com sorte – inspirar novas orientações. Se tratava de curtir a sensação causada por cair, por esse deslocamento, esse impulso. Aqui é o espaço do risco. É corpo que efetivamente age, cai e levanta em uma repetição que não é idêntica, é recomeço. Mas o que acontece depois da queda? Como mencionei antes, me parece que há duas hipóteses: ou se permanece no chão (a queda como fim) ou se levanta (a queda como processo). Quando acontece, ela nos afeta e permanece, gravamos no corpo a sua sensação e, na nossa memória, fica como aprendizado ou trauma.

Pensar no momento após a queda me levou a um novo trabalho, que também compõe a exposição. É uma sequência de fotografias intitulada Caída – o título faz referência à associação negativa e condenatória do termo com a sexualidade feminina, a mulher caída que perdeu a virgindade, cenário ligado também à “queda do paraíso”. Essas imagens foram tiradas dos vídeos, dos momentos em que estava atirada no chão, entre um movimento e o seguinte, de me levantar. Era o espaço que eu tinha para absorver o que tinha acontecido e recuperar o fôlego para a próxima. Essa etapa era importante, o momento no chão, o ponto em que aceito que algo aconteceu. A queda pode ser uma manobra de desestabilização, mas o instante depois dela é estável novamente.

Poderia nos falar um pouco sobre a educação somática e o papel dela na tua produção?

A educação somática é um conjunto de práticas corporais e métodos educacionais que buscam a consciência do corpo através do movimento. Valorizam o conhecimento que vem da experiência vivida no corpo, e isso se relaciona com a fenomenologia da percepção – uma corrente filosófica pela qual me interesso no meu processo artístico, que vai tratar do sujeito dentro do mundo e o mundo como o que percebemos. Esses exercícios de quedas que fiz buscam autoconhecimento e certa integração entre sensação, ação e sentimento, que vem da educação somática, assim como consciência corporal e relação com o meio, que se relacionam com a experiência de um corpo fenomenal que se move.

Mencionei antes o treinamento que fiz no início do trabalho com a minha mãe, Eva Schul, que é coreógrafa e professora de dança contemporânea. Além de ela me ensinar alguns movimentos de queda, tivemos algumas conversas sobre o assunto. Uma das minhas referências da dança sobre esse tema é a companhia de dança contemporânea catarinense Cena 11, que tem nas quedas um movimente recorrente – espetaculares, duras, de corpo inteiro no chão. É completamente diferente do que eu estava fazendo, pois a linha que minha mãe segue é da somática, que ensina a buscar os melhores apoios no corpo para ele não chegar com impacto no chão. Buscava um movimento do corpo saudável e consciente, uma queda fluída, natural ao relaxamento do corpo, um soltar-se.

Como você vê essas reflexões em relação aos sentidos culturais de “queda”?

Culturalmente, a queda é associada a fracasso, declínio, perda. Também é associada ao medo. Temos medo de errar, de falhar, coisas naturais à vida. Só para dar alguns exemplos, podemos pensar em recessão econômica, declínio nos níveis de emprego, quedas de valores. No cenário brasileiro, podemos pensar em crise política, enfraquecimento das instituições públicas, instabilidade jurídica, desmonte da estrutura de amparo estatal, como a saúde e a cultura, e mesmo o enfraquecimento da democracia.

O fato é que esse cenário causa ansiedade sobre o cair e os nossos corpos refletem essa realidade. O que busquei com o trabalho foi um exercício. Se fizesse essas quedas, de forma voluntária, talvez pudesse tirar outro conhecimento e entendimento daquilo. Aprender algo novo, procurando mudar essas concepções de que para cima é bom, para baixo é ruim, o fracasso é uma derrota etc. Então busquei, através daquelas sensações do meu corpo, uma nova percepção e uma nova perspectiva.

Por fim, o que você leva dessas reflexões para outros trabalhos?

O principal que levo desses processos é uma questão um pouco teórica ou filosófica, que vou buscar resumir. Apesar de a queda ser um tema muito rico e trazer todos esses aspectos interessantes que conversamos aqui, para mim, no final das contas, se trata mesmo é de fazer. Falo, com graça, que eu caio porque eu quero. As minhas ações têm o sentido nelas mesmas. E nessa gratuidade, de uma ação feita por fazer, se dá algo de absurdo. Entendo que há na arte a possibilidade de se explorar o absurdo.

O gesto da queda no meu trabalho pode ser explicado de diversas formas, por exemplo, pela gravidade e pelo peso, ou por uma escolha artística e de pesquisa etc. Todas essas explicações acrescentam ao gesto, mas não resolvem, não encerram, não satisfazem. Isso ocorre porque é um gesto no qual se exprime uma liberdade. É isso que busco na minha produção artística, que as minhas ações possam levar a algum entendimento sobre mim e o mundo, uma consciência do estar-no-mundo e, principalmente, que articulem liberdade.

Exposição “Em Queda”, de Natalia Schul
Onde:
 Sala Nogueira do Centro Cultural da UFRGS – Campus Central (rua Eng. Luiz Englert, 333 – Farroupilha – Porto Alegre)
Visitação: até 18 de agosto de 2023
Horário: segunda a sexta-feira, das 9h às 19h
Entrada franca

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