Cinema | Entrevista

“Pirandello nos ensinou que a realidade não basta”

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“Pirandello nos ensinou que a realidade não basta” Roberto Andò. Foto: Jacopo Salvi/Divulgação

Nascido em Palermo, o cineasta, roteirista, dramaturgo e escritor italiano Roberto Andò levou para as telas no filme A Estranha Comédia da Vida o universo ficcional e metalinguístico de um honorável conterrâneo igualmente oriundo da Sicília: o escritor, poeta e dramaturgo Luigi Pirandello (1867 – 1936). No longa em cartaz nos cinemas brasileiros, o autor da revolucionária peça teatral Seis Personagens à Procura de um Autor e ganhador do Prêmio Nobel de Literatura de 1934 é interpretado pelo ator Toni Servillo – astro italiano de filmes como O Divo (2008), A Grande Beleza (2013), As Confissões (2016) e A Mão de Deus (2021).

“A Estranha Comédia da Vida” acompanha um autor à procura de personagens

Andò estreou como assistente de direção, trabalhando com grandes cineastas como Francis Ford Coppola, Federico Fellini, Michael Cimino e Francesco Rosi, entre outros. Em 1986, estreou na direção teatral com uma obra de teatro de bonecos baseada em uma história original de Italo Calvino.

Depois de vários documentários, Andò dirigiu seu primeiro longa-metragem de ficção em 2000, Il Manoscritto del Principe, estrelado por Michel Bouquet e Jeanne Moreau e produzido pelo cineasta Giuseppe Tornatore. Seu romance de estreia, Il Trono Vuoto, ganhou o prêmio Campiello de melhor primeira obra, sendo adaptado posteriormente para o cinema no filme Viva a Liberdade (2013) – comédia dramática com roteiro e direção de Andò e que tem Toni Servillo também como protagonista.

Na entrevista exclusiva a seguir, Roberto Andò fala sobre A Estranha Comédia da Vida, o mestre Luigi Pirandello, a parceria com Toni Servillo, a paixão pelo teatro e pela literatura e a relevância dos grandes nomes do cinema italiano: “Se pensarmos em Fellini, ele foi o que Pirandello foi para a literatura. Fellini era a favor do cinema”.

Risi Film/Divulgação

A estrutura de A Estranha Comédia da Vida é complexa e, bem, estranha como indica o título do filme, misturando distintas linhas narrativas, registros dramáticos e abordagens metalinguísticas. Como o projeto e o roteiro do filme foram construídos?

Roberto Andò – É como se, a certa altura, ficasse claro que a única forma de contar o que eu queria contar era com filme que começa no trem, com Pirandello no trem. Em um certo ponto, ele olha pela janela do trem e vê entrando os seis personagens. O espectador pensa que são passageiros do trem, mas, aos poucos, vai entendendo que são a imaginação, a mente de Pirandello. Mas, ao mesmo tempo, ele está fazendo de fato uma viagem, uma viagem real. Portanto, todo o filme traz uma incerteza contínua: onde estamos? A pergunta que se faz é: “Sim, estamos em uma viagem à Sicília. Qual Pirandello ele seria? Ou estamos na mente dele no momento em que ele está tentando se concentrar nessas ideias?”. E eu não saberia dizer por que, não é fácil de conseguir analisar. Mas, a certa altura, ficou muito claro que a estrutura do filme tinha que dar essa sensação de ambiguidade e que, no final, especialmente na última cena final, tinha que ficar claro que os dois personagens que parecem mais reais são, na verdade, fruto de sua imaginação.

Risi Film/Divulgação

Você já dirigiu Toni Servillo, um dos mais versáteis atores italianos da atualidade, diversas vezes. Como foi trabalhar com ele em um tom dramático contido e discreto?

Andò – Em alguns personagens que fez, Toni viveu tipos mais confiantes. Aqui, ele é até humilde e, em certos momentos, quase que desaparece. E ainda assim ele é simpático e nunca é arrogante. Esse também é um aspecto interessante. E nessa fase Pirandello já era um escritor muito famoso. Também é muito importante o jogo que o Pirandello faz de não ser reconhecido. Enfim, para mim é muito fácil trabalhar com o Toni. Há uma harmonia e conversamos muito. Eu pedi que ele lesse livros que eu conhecia, que serviram como um guia para entender todo o mundo de Pirandello. Ele já conhecia o teatro de Pirandello também. Enfim, obviamente tem uma parte de estudo que sempre tem de haver, mas depois no set é muito, muito simples de trabalhar com Toni. Não há conflitos e nem problemas.

Risi Film/Divulgação

Já no outro extremo em termos de atuação, Salvatore Ficarra e Valentino Picone formam uma dupla cômica consagrada e cativante. Conte-nos a respeito do trabalho com esses atores para equilibrar comédia e drama nas suas interpretações, por favor.

Andò – Eles se adoraram, ou seja, desde as primeiras leituras que fizemos antes de começar a filmar, ficou evidente como trabalhavam bem juntos. Porque Toni encontrou dois atores muito importantes. Não são dois atores banais. Então, ele entendeu que eram dois atores fazendo uma coisa diferente aqui. Eles se afinaram como instrumentos musicais, e se entenderam de uma forma maluca. Filmamos uma cena antes de começar a rodar o filme, uma espécie de teste, e ficou ótimo. E eu entendi o que eu tinha que pedir a eles e o que tinha que pedir ao Toni. Então, nesse filme o Toni está ouvindo, ou seja, não é ele quem fala. E está quase sempre ouvindo, ele é, em certa medida, um escritor que espia os outros e, portanto, é um trabalho inteiramente de escuta, de olhares e eu diria de empatia.

Risi Film/Divulgação

Você tem uma íntima ligação com a literatura e o teatro, evidente em sua trajetória artística. Como essas artes narrativas se fazem presentes no seu cinema?

Andò – Esse é verdadeiramente o mistério da minha vida, no sentido de que fiz tudo ao contrário do que normalmente se faz. Normalmente a vida acontece se concentrando em um objeto. Então, a certa altura, eu deveria fazer uma escolha. Mas, em vez disso, os meus interesses diversos
não se excluíam, ou seja, incluíam-se. Comecei escrevendo. Depois, parti para o cinema e, a certa altura, fiz os três. Aliás, passeio de um para o outro. Acabei de terminar um romance que entreguei ao meu editor. E continuo fazendo isso. Às vezes me pergunto se é uma natureza esquizofrênica. Pode ser. Mas me parece algo bom. Não é uma doença que eu queira curar. São coisas que acontecem, mas não sei por quê. E a literatura certamente deve conhecer muito bem os códigos dessas formas de arte, porque são códigos muito diferentes. Então você precisa saber padronizar. Porém, há uma linda história que me foi contada por um amigo que foi produtor de Pasolini. Ele me contou que, quando Pasolini fazia filmes como diretor, de vez em quando ia até ele. O nome dele é Sandy. E Pasolini dizia: “Sandy, estou com vontade de escrever um poema”. Assim, o produtor do filme, de alguma forma, era obrigado a dar a Pasolini a liberdade de se trancar em seu quarto e escrever esse poema. Enquanto isso, toda a equipe o esperava para filmar. Entende? E de vez em quando tenho vontade de escrever um romance, ou de fazer um espetáculo de teatro ou de dirigir uma ópera. E considero isso um privilégio. No início da minha carreira, isso era mal visto, mas depois entenderam que era minha natureza.

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Recentemente, Paolo Taviani rodou Leonora, Adeus, filme nostálgico que gira em torno de vários aspectos da vida e da obra de Luigi Pirandello, inclusive com citações à peça Seis Personagens à Procura de um Autor. De que maneira Pirandello em geral e esse texto antológico em particular permanecem relevantes atualmente?

Andò – Entre tantas coisas, Pirandello nos ensinou que a realidade não basta. Muitas vezes a realidade não é suficiente para traduzir a vida. No real, há outro nível escondido. Hoje, mais do que nunca esse nível é muito importante para entender não só a sua obra, mas também para ver o mundo. Pirandello foi, claro, um gênio, um grande autor. Como diz Verga (Giovanni Verga, escritor, dramaturgo e senador italiano, considerado o maior exponente da corrente literária do verismo) no filme, ele mudou nossa forma de olhar a realidade. E depois de Seis Personagens…, se tornou célebre em todo o mundo. De certa maneira, nos fez entender e nos deu lentes para ver a realidade de forma diferente. A partir daquele momento, o mundo se tornou “pirandelliano”. Essa forma de entender a filosofia que as pessoas do povo, as consideradas mais simples, humildes, também filosofam, e muito, também têm um contato profundo com o impalpável da vida, da natureza humana, é algo atemporal e até mesmo democrática. Por tudo isso, pela universalidade com que olha a natureza humana, ele é atemporal e, mais do que nunca, atual.

O cinema italiano parece estar vivendo um ótimo momento criativo hoje em dia. Como você avalia a atual produção cinematográfica do país?

Andò – Há muitos autores importantes e muito diferentes no cinema italiano. Ao mesmo tempo, há uma grande tradição que é reconhecida mesmo nas novas gerações. Por isso, penso também que o cinema italiano é muito vital e que há autores que são muito apreciados no exterior e que contam a história da Itália. Na minha opinião, na esteira das tradições, há a tradição realista, que sempre foi muito importante na Itália. E há a outra tradição, que é a tradição à qual sinto pertencer, que eu definiria como romanzesca (novelística). Penso que existe um cinema de ficção como o que faço, por exemplo, que Paolo Sorrentino faz e Marco Bellocchio faz também. E que, portanto, dá conta de uma realidade diferente. Não dizemos que é extraído da realidade, mas que também dá conta da realidade oculta. E devo dizer que é o cinema que descende de Fellini. Se pensarmos em Fellini, ele foi o que Pirandello foi para a literatura. Fellini era a favor do cinema.

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