Um museu fotográfico de afetos sobreviventes
Em uma das semanas mais críticas da pandemia do coronavírus, em meados de 2020, o artista visual Leo Caobelli sai de casa para uma caminhada. Ao longo do percurso, se depara com fotografias espalhadas junto a uma lixeira. “É o pior momento para me abaixar e pegar coisas do chão”, reflete o fotógrafo, deixando para trás uma potencial matéria-prima para as suas investigações.
Mas a resignação não dura muito. Mais tarde, quando chega a hora de levar sua cadela para passear, Caobelli lembra das fotos vistas horas antes. “Se ainda estiverem lá, já era”, vislumbra, enquanto coloca a coleira em Fuli. Dito e feito. Tomando os cuidados devidos durante a coleta e, ao chegar em casa, no manuseio dos registros, o fotógrafo amplia o acervo do Museu Particular de Afetos Perdidos, projeto que dá sequência a uma pesquisa de dez anos em torno de imagens das quais se apropria – encontradas em álbuns comprados em feiras, discos rígidos adquiridos junto a vendedores de lixo eletrônico, coleções doadas por amigos e lixeiras de Porto Alegre.
Formado em Jornalismo pela PUCRS, com mestrado em Poéticas Visuais no Instituto de Artes da UFRGS – onde atualmente é doutorando –, Leo Caobelli começou a pesquisar álbuns fotográficos em 2010, numa pós-graduação em Fotografia da Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP), em São Paulo. “Eu tinha um lapso de imagens da minha adolescência, do período em que meus pais pararam de me fotografar – ou em que eu não queira ser mais fotografado – até a compra da minha primeira câmera”, recorda, apontando motivações iniciais que o levaram a colecionar imagens produzidas por desconhecidos.
Um encontro inesperado
Para desenvolver o projeto da pós-graduação, Caobelli traçou o plano de comprar álbuns familiares dos anos 1980 e 1990 nos quais pudesse analisar a idade dos fotografados e a presença ou não de adolescentes. Por sugestão de outros fotógrafos, em viagem ao Uruguai para passar a virada de 2010 para 2011, Caobelli visitou a feira dominical da rua Tristán Narvaja, em Montevidéu, famoso mercado de pulgas onde é possível encontrar desde preciosidades até quinquilharias diversas, incluindo álbuns antigos.
Embora as fotos de famílias fossem o objetivo, Caobelli já havia sido alertado de que “outras coisas aparecem” em Tristán Navarra. Foi o que aconteceu em 2 de janeiro de 2011, na última passada do artista com sua esposa pela feira antes de regressar ao Brasil. O fotógrafo se deparou com um álbum de grandes dimensões que, no entanto, não era de fotografias, e sim de lembranças de viagens realizadas na década de 1970.
De volta a São Paulo, no verão de 2011, Caobelli começou a investigar o álbum e vislumbrar possíveis trabalhos artísticos a partir dele. Tomado pela curiosidade, conseguiu identificar quem havia compilado aquele material: chamava-se Rodolfo Castellano, fora chefe de Catalogação e Métodos do Banco da República do Uruguai e tinha falecido em janeiro daquele ano, 25 dias após o artista encontrar sua coleção de recordações.
A partir do encontro por acaso com as memórias desse (já não tão) desconhecido, Caobelli decidiu refazer a última viagem que integra o álbum, de Montevidéu ao Rio de Janeiro, que resultou no projeto Las Cosas por su Nombre, trabalho de conclusão apresentado pelo artista na FAAP, que traz textos, imagens e materiais coletados enquanto repetia o itinerário de Castellano.
O acaso brindou o fotógrafo novamente quando ele ainda estava na capital uruguaia, prestes a pegar a estrada. A organização do Centro de Fotografia de Montevidéu pediu um favor a Caobelli: levar em seu carro, até o Rio de Janeiro, equipamentos e obras da artista mineira Rosângela Rennó, nome reconhecido por suas pesquisas em torno de arquivos fotográficos. A recompensa pelo traslado foi uma residência artística informal de uma semana no ateliê de Rennó, no Rio de Janeiro.
Do analógico ao digial
Pelotense nascido em 1980, membro do coletivo Planta Estudos Visuais, Leo Caobelli seguiu colecionando imagens nos mais diversos formatos e suportes desde a pesquisa iniciada em 2010. Ao ingressar no mestrado da UFRGS, em 2015, orientado pela artista e professora Elaine Tedesco, dedicou-se a explorar arquivos fotográficos digitais – muitos dos quais encontrados em discos rígidos de computador, comprados por quilo de vendedores de lixo eletrônico.
O colecionismo e a catalogação das imagens encontradas seguiu ganhando corpo até se tornar o Museu Particular de Afetos Perdidos, ao qual Caobelli se dedica no doutorado iniciado há poucos dias na UFRGS. “Fica cada vez mais claro que trabalho com descarte e obsolescência”, conta, sintetizando as questões da pesquisa que desenvolve como artista e pesquisador. “O que eu faço é ressignificar essas imagens de alguma maneira, deixá-las mais tempo no mundo, porque elas iam se decompor”, completa.
As questões éticas em torno do uso de imagens produzidas por terceiros e mostrando outras pessoas é uma reflexão constante de Caobelli – e tema de um dos encontros virtuais que estão sendo realizados ao longo de novembro pela Planta Estudos Visuais (confira abaixo). Em imagens mais recentes, por vezes o artista realiza intervenções para ocultar rostos – ou escolhe ângulos nos quais as faces das pessoas fotografadas não apareçam. Caso alguém se identifique nas apropriações e prefira não ter a imagem utilizada – o que não aconteceu até hoje –, Caobelli garante a devolução e/ou exclusão da fotografia.
[Continua...]